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+Sociedade
Clara evidência
NA ENCRUZILHADA DO JORNALISMO COM A HISTÓRIA
E A LITERATURA, O INGLÊS TIMOTHY GARTON ASH
FAZ UM RETRATO PRECISO E CONTUNDENTE, EM NOVO LIVRO, DA PRIMEIRA DÉCADA DO SÉCULO 21
GEORGE BROCK
Mais ou menos a
cada dez anos, o
estudioso de
"revoluções de
veludo" Timothy Garton Ash reúne seus
ensaios e reportagens analíticas dos dez anos anteriores.
"Facts Are Subversive" [Fatos
São Subversivos, ed. Atlantic
Books, 496 págs., °25, R$ 73] é
a terceira coletânea desse tipo
e a primeira a viajar amplamente fora da Europa, o continente onde consolidou seu estilo e sua reputação em traçar
lúcidos retratos analíticos dos
tempos atuais.
Na introdução à sua coletânea anterior, "History of the
Present" [História do Presente], Garton Ash [professor de
estudos europeus na Universidade de Oxford, no Reino Unido] se posicionou na intersecção do jornalismo com a história e a literatura.
Se não chega exatamente a
ser uma terra de ninguém, esse
território de fronteira é esparsamente povoado; poucos escritores conseguem realizar o
equilíbrio delicado necessário
para trabalhar ali.
Um ensaio longo sobre a
Ucrânia, Mianmar ou o antieuropeanismo nos EUA começa
com pesquisas feitas à mesa de
trabalho, seguidas por entrevistas de campo, enquanto uma
ou duas palestras são feitas no
país escolhido.
Cheiros e sons
De volta a Oxford ou Stanford [EUA], reflexões e escrita
completam o processo. Garton
Ash diz que se orgulha de considerar-se um repórter.
Mas o que faz é reportagem
de tipo raro, como admite com
discrição modesta algumas linhas depois:
"Se tenho uma vantagem em
relação aos correspondentes
regulares de jornais, cujo trabalho admiro profundamente, é
que posso dispor de mais tempo para coletar informações sobre uma matéria ou questão."
A ênfase nos fatos sublinhada
no título do livro é plenamente
justificada: Garton Ash viaja e
testemunha, faz perguntas, toma nota dos cheiros e dos sons.
Ele pode não ter a distância
temporal dos fatos que requer a
correção histórica atual, mas
pode responder a essa acusação, defendendo-se com o argumento de que foi testemunha do que descreve.
"Cabeça vazia"
Mas a ênfase nos fatos também induz um pouco ao engano, pois a essência de sua técnica consiste na fusão de reportagem e avaliação, uma coisa reforçando a outra. Conta uma
história que prende a atenção,
mas os bocados de fato sempre
são alinhados com o argumento, para resultar em um quadro
geral claro.
Oito anos após o acontecimento, podemos ler seu relato
de como foi convidado à Casa
Branca para dar um "briefing" a
George W. Bush antes da primeira viagem importante do
presidente à Europa, em 2001.
O tema da narrativa -que,
mesmo antes do 11 de Setembro, Bush não parecia estar preparado para o cargo- não chega a provocar polêmica.
Os detalhes da era hoje quase
esquecida em que Bush ainda
estava à procura de uma política externa fascinam e são apresentados com cuidado- mas
são inseparáveis de uma visão
derivada dos fatos:
"Sobre a maioria das questões relacionadas à Europa, ele
parecia ter cabeça aberta, para
não dizer vazia."
Como é compreensível, os
escritores de não ficção querem ancorar em fatos sua autoridade e a confiança do leitor:
evidências verificáveis formam
uma base sólida, enquanto interpretações são mais passíveis
de contestação.
Um artigo curto e contundente parabenizando os cidadãos espanhóis por não terem
feito os muçulmanos de bodes
expiatórios após o ataque contra a estação ferroviária de Atocha, em Madri, em 2004, é alicerçado na observação breve,
mas pungente, do memorial da
estação e das ruas do bairro do
qual vieram os atacantes.
Já um ensaio mais longo sobre o Irã é organizado em torno
de uma pergunta: que forças
poderiam aumentar as chances
de uma mudança pacífica de regime? A caminho de sua conclusão, ele faz a observação irônica de que, em um país comandado por Mahmoud Ahmadinejad, que não usa gravata, os jovens persas a usam em
sinal de rebeldia.
Assim como as revoluções
Russa (1917) e Francesa (1789),
diz ele, a Revolução Iraniana
(1979) está devorando seus
próprios filhos. "Um dia, os netos da revolução irão devorá-la." À luz do levante popular
violentamente reprimido de
2009, a observação parece totalmente pertinente.
Sua conclusão não é surpreendente, mas é obtida com
uma apresentação tão paciente
e completa de evidências que,
quando você chega a ela, ela já
carrega a força do tempo. O estilo Garton Ash plenamente
amadurecido é calmo, gentil,
deliberativo e claro.
Garton Ash admira George
Orwell [1903-50], mas não
compartilha o que descreve,
com elegância, como o "charme
áspero" do escritor. Ele despreza a ideia de que o jornalismo às
vezes possa exagerar ou simplificar demasiadamente.
"Seu ponto fraco como jornalista", escreve sobre Orwell, "é
o pendor por violentas afirmações exageradas, mal fundamentadas, demasiado amplas".
A cordialidade de Garton Ash
vem da empatia humana e de
uma abertura à beleza que ocasionalmente interrompem reflexões sobre geopolítica. Ele se
sente especialmente atraído
pelo Brasil e por Mianmar [na
Ásia meridional].
Na era dos blogueiros destemperados que disparam vituperações pelas redes, Garton
Ash defende não apenas a inconveniência renitente dos fatos, mas também o uso esclarecedor da reflexão. Padrões são
apreendidos a partir dos fatos,
e o sentido destes é captado
com rigor evidente.
No momento em que a tecnologia movimenta o conhecimento em velocidades cada vez
maiores, esses valores têm importância cada vez maior.
O livro tem dois centros morais. Avançando além da Europa, o autor formula a pergunta
que vem fazendo desde que registrou a queda dos regimes comunistas da Europa central,
em 1989: como separar mudanças políticas e violência?
As pistas apresentadas nestes ensaios não são encorajadoras. Suas obras anteriores sobre
as revoluções de 1989 fazem
parte das listas de leitura dos
governantes e policiais secretos de China, Irã e Mianmar.
Ele deixa subentender uma
visão que explicitou em dois
ensaios publicados desde que o
livro saiu: que as circunstâncias
que permitiram que as mudanças de regime na Europa central se dessem de maneira quase inteiramente pacífica foram
específicas daqueles tempo,
contexto e lugar.
Cultura e religião
Mas o coração do livro é composto dos capítulos sobre islã,
terror e liberdade. Aqui, a aliança entre precisão cuidadosa e
curiosidade irrestrita se manifesta plenamente.
Esses artigos deveriam ser lidos por qualquer político, clérigo ou autoridade que se preocupe com a coexistência de
crenças conflitantes em sociedades abertas.
Garton Ash não é especialmente otimista quanto ao futuro dessa convivência. Cada ensaio é um estudo de caso de
Justiça que não camufla as opiniões de um secularista liberal.
O autor discorda da escola de
ateísmo de Richard Dawkins
[biólogo britânico] não pelo
que ela diz sobre Deus, mas pelo que diz sobre o cristianismo
e sua história.
"Parece-me evidente que não
teríamos a civilização europeia
que temos hoje sem o legado do
cristianismo, do judaísmo e
(em medida menor, sobretudo
na Idade Média) do islã, legado
esse que, conscientemente ou
não, abriu caminho para o iluminismo."
O ensaio mais longo dessa série é baseado em "Murder in
Amsterdam" [Assassinato em
Amsterdã], de Ian Buruma, dissecando o que esteve por trás
da morte do cineasta holandês
Theo van Gogh [em 2004] e, especialmente, as "personalidades divididas" culturalmente
dos muçulmanos que vivem na
Europa.
Aqui, nem mesmo a precisão
de Garton Ash conseguiu livrá-lo de problemas.
Ash descreveu intelectuais
europeus e muçulmanos que se
opõem ao fundamentalismo islâmico como "fundamentalistas iluministas".
Isso provocou uma pequena
tempestade de reações, na qual
tanto Garton Ash quanto Buruma foram atacados com o argumento -evidentemente absurdo- de que estariam afirmando uma equivalência moral entre fundamentalismo islâmico
associado a terrorismo e fundamentalismo iluminista.
Garton Ash não se retrata,
mas reconhece, em uma nota
de rodapé tímida, que "abandonou a frase há muito tempo".
Poderíamos fazer algumas
queixas menores sobre este livro. É curioso que um leitor tão
constante do filósofo Isaiah
Berlin [1909-97] preste relativamente pouca atenção ao nacionalismo e suas raízes.
O tema merece uma menção
no ensaio sobre o Irã, mas não
chega a estar no centro dos argumentos.
Poderíamos descrever estes
artigos como "o primeiro rascunho da história".
Mas não devemos esquecer
que ainda não sabemos se os
historiadores que vão fornecer
os rascunhos posteriores de fato estiveram nos lugares onde a
história foi feita.
GEORGE BROCK é professor e chefe do departamento de jornalismo da City University, em Londres. A íntegra deste texto foi publicada no "Times Literary Supplement".
Tradução de Clara Allain .
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