São Paulo, domingo, 21 de fevereiro de 2010

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Clara evidência

NA ENCRUZILHADA DO JORNALISMO COM A HISTÓRIA E A LITERATURA, O INGLÊS TIMOTHY GARTON ASH FAZ UM RETRATO PRECISO E CONTUNDENTE, EM NOVO LIVRO, DA PRIMEIRA DÉCADA DO SÉCULO 21

GEORGE BROCK

Mais ou menos a cada dez anos, o estudioso de "revoluções de veludo" Timothy Garton Ash reúne seus ensaios e reportagens analíticas dos dez anos anteriores. "Facts Are Subversive" [Fatos São Subversivos, ed. Atlantic Books, 496 págs., °25, R$ 73] é a terceira coletânea desse tipo e a primeira a viajar amplamente fora da Europa, o continente onde consolidou seu estilo e sua reputação em traçar lúcidos retratos analíticos dos tempos atuais.
Na introdução à sua coletânea anterior, "History of the Present" [História do Presente], Garton Ash [professor de estudos europeus na Universidade de Oxford, no Reino Unido] se posicionou na intersecção do jornalismo com a história e a literatura. Se não chega exatamente a ser uma terra de ninguém, esse território de fronteira é esparsamente povoado; poucos escritores conseguem realizar o equilíbrio delicado necessário para trabalhar ali.
Um ensaio longo sobre a Ucrânia, Mianmar ou o antieuropeanismo nos EUA começa com pesquisas feitas à mesa de trabalho, seguidas por entrevistas de campo, enquanto uma ou duas palestras são feitas no país escolhido.

Cheiros e sons
De volta a Oxford ou Stanford [EUA], reflexões e escrita completam o processo. Garton Ash diz que se orgulha de considerar-se um repórter. Mas o que faz é reportagem de tipo raro, como admite com discrição modesta algumas linhas depois: "Se tenho uma vantagem em relação aos correspondentes regulares de jornais, cujo trabalho admiro profundamente, é que posso dispor de mais tempo para coletar informações sobre uma matéria ou questão."
A ênfase nos fatos sublinhada no título do livro é plenamente justificada: Garton Ash viaja e testemunha, faz perguntas, toma nota dos cheiros e dos sons. Ele pode não ter a distância temporal dos fatos que requer a correção histórica atual, mas pode responder a essa acusação, defendendo-se com o argumento de que foi testemunha do que descreve.

"Cabeça vazia"
Mas a ênfase nos fatos também induz um pouco ao engano, pois a essência de sua técnica consiste na fusão de reportagem e avaliação, uma coisa reforçando a outra. Conta uma história que prende a atenção, mas os bocados de fato sempre são alinhados com o argumento, para resultar em um quadro geral claro.
Oito anos após o acontecimento, podemos ler seu relato de como foi convidado à Casa Branca para dar um "briefing" a George W. Bush antes da primeira viagem importante do presidente à Europa, em 2001. O tema da narrativa -que, mesmo antes do 11 de Setembro, Bush não parecia estar preparado para o cargo- não chega a provocar polêmica. Os detalhes da era hoje quase esquecida em que Bush ainda estava à procura de uma política externa fascinam e são apresentados com cuidado- mas são inseparáveis de uma visão derivada dos fatos: "Sobre a maioria das questões relacionadas à Europa, ele parecia ter cabeça aberta, para não dizer vazia."
Como é compreensível, os escritores de não ficção querem ancorar em fatos sua autoridade e a confiança do leitor: evidências verificáveis formam uma base sólida, enquanto interpretações são mais passíveis de contestação. Um artigo curto e contundente parabenizando os cidadãos espanhóis por não terem feito os muçulmanos de bodes expiatórios após o ataque contra a estação ferroviária de Atocha, em Madri, em 2004, é alicerçado na observação breve, mas pungente, do memorial da estação e das ruas do bairro do qual vieram os atacantes.
Já um ensaio mais longo sobre o Irã é organizado em torno de uma pergunta: que forças poderiam aumentar as chances de uma mudança pacífica de regime? A caminho de sua conclusão, ele faz a observação irônica de que, em um país comandado por Mahmoud Ahmadinejad, que não usa gravata, os jovens persas a usam em sinal de rebeldia.
Assim como as revoluções Russa (1917) e Francesa (1789), diz ele, a Revolução Iraniana (1979) está devorando seus próprios filhos. "Um dia, os netos da revolução irão devorá-la." À luz do levante popular violentamente reprimido de 2009, a observação parece totalmente pertinente. Sua conclusão não é surpreendente, mas é obtida com uma apresentação tão paciente e completa de evidências que, quando você chega a ela, ela já carrega a força do tempo. O estilo Garton Ash plenamente amadurecido é calmo, gentil, deliberativo e claro.
Garton Ash admira George Orwell [1903-50], mas não compartilha o que descreve, com elegância, como o "charme áspero" do escritor. Ele despreza a ideia de que o jornalismo às vezes possa exagerar ou simplificar demasiadamente. "Seu ponto fraco como jornalista", escreve sobre Orwell, "é o pendor por violentas afirmações exageradas, mal fundamentadas, demasiado amplas".
A cordialidade de Garton Ash vem da empatia humana e de uma abertura à beleza que ocasionalmente interrompem reflexões sobre geopolítica. Ele se sente especialmente atraído pelo Brasil e por Mianmar [na Ásia meridional]. Na era dos blogueiros destemperados que disparam vituperações pelas redes, Garton Ash defende não apenas a inconveniência renitente dos fatos, mas também o uso esclarecedor da reflexão. Padrões são apreendidos a partir dos fatos, e o sentido destes é captado com rigor evidente.
No momento em que a tecnologia movimenta o conhecimento em velocidades cada vez maiores, esses valores têm importância cada vez maior. O livro tem dois centros morais. Avançando além da Europa, o autor formula a pergunta que vem fazendo desde que registrou a queda dos regimes comunistas da Europa central, em 1989: como separar mudanças políticas e violência? As pistas apresentadas nestes ensaios não são encorajadoras. Suas obras anteriores sobre as revoluções de 1989 fazem parte das listas de leitura dos governantes e policiais secretos de China, Irã e Mianmar.
Ele deixa subentender uma visão que explicitou em dois ensaios publicados desde que o livro saiu: que as circunstâncias que permitiram que as mudanças de regime na Europa central se dessem de maneira quase inteiramente pacífica foram específicas daqueles tempo, contexto e lugar.

Cultura e religião
Mas o coração do livro é composto dos capítulos sobre islã, terror e liberdade. Aqui, a aliança entre precisão cuidadosa e curiosidade irrestrita se manifesta plenamente. Esses artigos deveriam ser lidos por qualquer político, clérigo ou autoridade que se preocupe com a coexistência de crenças conflitantes em sociedades abertas. Garton Ash não é especialmente otimista quanto ao futuro dessa convivência. Cada ensaio é um estudo de caso de Justiça que não camufla as opiniões de um secularista liberal. O autor discorda da escola de ateísmo de Richard Dawkins [biólogo britânico] não pelo que ela diz sobre Deus, mas pelo que diz sobre o cristianismo e sua história.
"Parece-me evidente que não teríamos a civilização europeia que temos hoje sem o legado do cristianismo, do judaísmo e (em medida menor, sobretudo na Idade Média) do islã, legado esse que, conscientemente ou não, abriu caminho para o iluminismo."
O ensaio mais longo dessa série é baseado em "Murder in Amsterdam" [Assassinato em Amsterdã], de Ian Buruma, dissecando o que esteve por trás da morte do cineasta holandês Theo van Gogh [em 2004] e, especialmente, as "personalidades divididas" culturalmente dos muçulmanos que vivem na Europa. Aqui, nem mesmo a precisão de Garton Ash conseguiu livrá-lo de problemas.
Ash descreveu intelectuais europeus e muçulmanos que se opõem ao fundamentalismo islâmico como "fundamentalistas iluministas". Isso provocou uma pequena tempestade de reações, na qual tanto Garton Ash quanto Buruma foram atacados com o argumento -evidentemente absurdo- de que estariam afirmando uma equivalência moral entre fundamentalismo islâmico associado a terrorismo e fundamentalismo iluminista. Garton Ash não se retrata, mas reconhece, em uma nota de rodapé tímida, que "abandonou a frase há muito tempo".
Poderíamos fazer algumas queixas menores sobre este livro. É curioso que um leitor tão constante do filósofo Isaiah Berlin [1909-97] preste relativamente pouca atenção ao nacionalismo e suas raízes. O tema merece uma menção no ensaio sobre o Irã, mas não chega a estar no centro dos argumentos. Poderíamos descrever estes artigos como "o primeiro rascunho da história". Mas não devemos esquecer que ainda não sabemos se os historiadores que vão fornecer os rascunhos posteriores de fato estiveram nos lugares onde a história foi feita.

GEORGE BROCK é professor e chefe do departamento de jornalismo da City University, em Londres. A íntegra deste texto foi publicada no "Times Literary Supplement". Tradução de Clara Allain .


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