São Paulo, domingo, 21 de março de 2004

Texto Anterior | Índice

Ponto de fuga

O enterro dos velhos

Em "Cowboys do Espaço", Clint Eastwood mostrava quatro velhos chegando muito perto da morte. Eram audaciosos, porém, e faziam o heroísmo sobreviver em tempos mesquinhos. Encerravam gloriosamente a vida longa, melhores, mais fortes, mais hábeis que os moços. Últimos portadores de grandeza, com eles extinguia-se um passado de bravos. Isso aconteceu quando o milênio despontava, há apenas quatro anos, que parecem muito mais.
Hoje, estão em cartaz três filmes que, embora díspares, diversos no tom e feitos em países muito diferentes, contam a mesma história. São eles: o alemão "Adeus, Lênin!", de Wolfgang Becker; o canadense "Invasões Bárbaras", de Denys Arcand, e o americano "Peixe Grande", de Tim Burton. Neles, filhos preparam os pais para a morte. Nada de dramáticos confrontos, como nos tempos da psicanálise. Antes, reconciliações nas quais os jovens suavizam os últimos dias dos moribundos. Nos três casos, esse acompanhamento final impõe a maquiagem do mundo. Aos filhos cabem as "realidades" atuais; aos velhos, velhas crenças e velhas fantasias. Sonhos antigos, pareciam verdades na época recuada em que eram moços. Os filhos demonstram sentimentos intensos. Compreendem a importância das ilusões vindas do passado e, no presente, passam a alimentá-las. O gesto é de afeto piedoso.
Tal coincidência das três situações centrais sugere um sintoma contemporâneo de perda, nada amargo, porém. Eram histórias de vida em tempos antigos, tempos de convicções heróicas. Enterram-se as ilusões com os iludidos, cheios de generosa ingenuidade. O mundo, agora, é outro.

Ascese - Nenhum criador no século 20 adquiriu tão fortemente o papel de clássico quanto Hitchcock. Entenda-se clássico aqui como o modelo melhor, como a referência almejada e secreta da obra perfeita. Não há pintor, escritor ou músico que tenha assim se imposto às gerações seguintes nesse pedestal canônico. Ninguém tenta refazer "Guernica", o "Pierrot Lunaire" ou "Em Busca do Tempo Perdido". Em 1998, no entanto, Gus van Sant filmou de novo "Psicose", buscando o rigor das mesmas tomadas e da mesma montagem. Um exercício cujo caráter é disciplinar, determinado pela busca dos processos e, sem dúvida, pela emulação.
É outra coisa, e bem diversa, daquilo que ocorre nos filmes de Brian de Palma. Neste caso, Hitchcock surge como fecundador, como o estimulante a modos livres, como trampolim para a invenção que dá magníficos saltos ornamentais. Gus van Sant tem ambição de outro tipo: quer entrar na pele do criador, tentando assim roubar seus segredos.
"O Pagamento", de John Woo, para quem Hitchcock é também a fonte inspiradora, oferece impressão semelhante. De um modo próximo ao de Gus van Sant, há nele um espírito estrito e ascético, como se o cineasta quisesse por em cheque o caráter "barroco", tão espetacular em seus primeiros filmes. Tudo possui ironia e finura. Muito do que ele mostra parece mais importante para o diretor do que para o público, o que solicita delicada cumplicidade, feita de matizes.

Fraternidade - Talvez uma contradição de superfície tenha atenuado a indulgência da crítica. Embora se destine a grandes audiências, "O Pagamento" é uma obra confidencial. Não se movimenta com facilidade ao contar sua história mirabolante. Mas isso também parece fazer parte das regras e dos limites de um jogo. Como o princípio estrito da imitação, passo a passo, que Gus van Sant fez de "Psicose". Nos créditos de "Psicose", Gus van Sant agradece a John Woo por ter emprestado a faca de cozinha usada pelo assassino.

Sonhos ruins - "Pânico na Floresta", de Rob Schmidt, com poucos recursos e poucos efeitos especiais, é apavorante. O tom de pesadelo e de delírio culmina em estranha caçada humana que se passa no alto de árvores. A angústia torna-se então regressiva, como num retorno aos primitivos terrores dos primatas. Filme de referências, é um híbrido de "Delivrance" e de "O Massacre da Serra Elétrica". Pode lembrar ainda, pelo caráter maléfico da floresta, "Evil Dead" ("Uma Noite Alucinante"), de Sam Raimi.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


Texto Anterior: + cinema: A recriação de uma mitologia
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.