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+ cinema
"A Paixão de Cristo" repropõe a imagem dos judeus e dos Evangelhos que os
cristãos construíram para si no processo de se tornarem religião dominante
A recriação de uma mitologia
Gabriel Bolaffi
especial para a Folha
Quando eu era menino, com seis
anos de idade, em 1940, um vizinho coetâneo me perguntou:
"Por que você matou Cristo?".
Ele era filho de uma família educada,
com o qual eu brincava todos os dias. O
episódio nunca mais me saiu da mente,
ainda que demorasse para que eu me
desse conta de quanto era significativo.
A verdade é que, até o início dos anos
1960, quando, por razões que tentarei
apontar mais adiante, as coisas começariam a mudar, as relações entre cristãos e
judeus sempre foram as piores possíveis.
Para constatar a atitude dos primeiros
com relação aos últimos, basta consultar
qualquer dicionário da língua portuguesa ou de qualquer outra.
Quanto aos judeus, sempre se referiram pejorativamente aos "não-judeus",
chamando-os de "goy", "arel", "sheiquez" (gentios e não-circuncisos) e outros pejorativos. O antagonismo e mesmo o ódio entre os dois grupos são históricos, datando desde os primeiros séculos da era cristã até o passado muito recente. Aliás, qualquer pessoa razoavelmente informada da minha geração sabe
disso muito bem, e não deveriam ser necessárias mais explicações, não fosse pelo tolo esforço revisionista de tantos historiadores ou funcionários deste ou daquele lobby. Mas, como a onda revisionista é tão avassaladora, lembremos os
eventos e os fatos principais.
Dissidência
Como afirma Léon Poliakóv, na sua memorável "História do
Anti-Semitismo" (ed. Perspectiva, 1978,
quatro volumes), ainda no final do primeiro século da era cristã o cristianismo
começaria a se propagar como uma dissidência do judaísmo. A princípio uma
dissidência muito tênue. Como diria o
apóstolo Paulo: "Com os judeus, procedi
como judeu...; com aqueles que estão
sem lei, (procedi) a fim de ganhar os que
estão sem lei. Eu era fraco para com os
fracos, a fim de ganhar os fracos" ("Primeira Epístola aos Coríntios", apud Poliakóv, op. cit.). A princípio, o proselitismo cristão se daria principalmente entre
as colônias judaicas da diáspora, mas logo se estenderia aos gentios.
Ora, diz Poliakóv, "judeus e cristãos
reivindicam ambos o deus de Abraão,
pretendendo ambos ser fiéis de suas vontades, venerando ambos o mesmo livro
sagrado, mas cada um interpretando-o à
sua maneira. Acrescentemos que as autoridades romanas parecem não ter feito, no início, muita distinção entre uns e
outros (os textos romanos mais antigos
os confundem pura e simplesmente).
Poucas vezes se viu um estado de coisas
tão propício para suscitar animosidades
irredutíveis" (Op. cit., vol. 1, "De Cristo
aos Judeus da Corte", pág. 17). Em síntese, as duas religiões, à medida que se propagavam pelas margens do Mediterrâneo, se tornaram rivais, competindo
acirradamente pelos novos prosélitos.
Dessa competição e da posterior supremacia cristã, posto que durante vários
séculos o judaísmo continuou a ser visto
como uma crença rival, resultariam o
ódio, o anti-semitismo e a acusação feita
aos judeus de terem sido "deicidas". Poliakóv está muito bem documentado e,
como ele mesmo afirma, nesse contexto,
qualquer discussão sobre a "historicidade" dos Evangelhos se torna irrelevante.
Em seu filme tão controvertido, Mel
Gibson nada mais fez do que retratar a
imagem dos judeus e dos Evangelhos
que, certa ou errada, os cristãos sempre
construíram para si próprios no processo de se tornarem religião dominante na
Europa e mesmo depois disso. Aliás, tudo indica que ele retratou a imagem que
recebeu da sua família e que sempre teve
desde a sua infância. Não é por outra razão que seu filme está sendo tão bem-sucedido entre a audiência de seu país, em
que pese toda a controvérsia. Já não se vê
o filme com a animosidade de antanho,
mas se reconhece nele o que sempre se
aprendeu.
Nisso tudo, o mais surpreendente é a
reação de diversos establishments. Como se alguma das suas lideranças tivesse
esquecido um passado tão recente, como
se jamais tivessem visto uma "malhação
de judas" ou seus equivalentes de outros
países.
É verdade que as coisas mudaram. A
Segunda Guerra Mundial, o Holocausto,
a imigração de judeus para os EUA e sua
rápida ascensão social e intelectual, a secularização do mundo europeu, tudo isso e eventos correlatos contribuíram para uma forte mitigação do "ódio antico"
(cfe. Cesare Mannucci, Mondadori, Milão, 1993). Na verdade, já não persiste o
antigo ódio. Mel Gibson, ao soprar as
brasas que restaram, mostra apenas que
é um oportunista maligno e insensato.
Gama variada
Mas não serão oportunistas todas as hierarquias de cultos
fundamentalistas, que insistem em fazer
de conta que a humanidade ainda não
passou pelo Iluminismo e pela "idade da
razão"? George W. Bush? Os neo-evangélicos do nosso pobre Brasil? Osama bin
Laden? As direitas religiosas de tantos
países? Ou tantos outros, iguais a Mel
Gibson, que andam por aí?
Quanto aos aspectos cinematográficos
do filme, ainda que não sejam objeto
desse texto, não posso deixar de registrar
que, se Mel Gibson realmente tivesse
querido ser fiel aos Evangelhos, poderia
ter criado um Cristo e demais personagens mais fiéis aos seus conhecidos fenótipos. Mas oportunismo insensato e logro o levaram a preferir uma concepção
"aggiornata" de Cecil B. de Mille e de
Hollywood.
Gabriel Bolaffi é sociólogo e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, autor de
"A Saga da Comida" (ed. Record), entre outros.
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