São Paulo, domingo, 21 de março de 2004

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+ cinema

"A Paixão de Cristo" repropõe a imagem dos judeus e dos Evangelhos que os cristãos construíram para si no processo de se tornarem religião dominante

A recriação de uma mitologia

Gabriel Bolaffi
especial para a Folha

Quando eu era menino, com seis anos de idade, em 1940, um vizinho coetâneo me perguntou: "Por que você matou Cristo?". Ele era filho de uma família educada, com o qual eu brincava todos os dias. O episódio nunca mais me saiu da mente, ainda que demorasse para que eu me desse conta de quanto era significativo. A verdade é que, até o início dos anos 1960, quando, por razões que tentarei apontar mais adiante, as coisas começariam a mudar, as relações entre cristãos e judeus sempre foram as piores possíveis. Para constatar a atitude dos primeiros com relação aos últimos, basta consultar qualquer dicionário da língua portuguesa ou de qualquer outra. Quanto aos judeus, sempre se referiram pejorativamente aos "não-judeus", chamando-os de "goy", "arel", "sheiquez" (gentios e não-circuncisos) e outros pejorativos. O antagonismo e mesmo o ódio entre os dois grupos são históricos, datando desde os primeiros séculos da era cristã até o passado muito recente. Aliás, qualquer pessoa razoavelmente informada da minha geração sabe disso muito bem, e não deveriam ser necessárias mais explicações, não fosse pelo tolo esforço revisionista de tantos historiadores ou funcionários deste ou daquele lobby. Mas, como a onda revisionista é tão avassaladora, lembremos os eventos e os fatos principais.

Dissidência
Como afirma Léon Poliakóv, na sua memorável "História do Anti-Semitismo" (ed. Perspectiva, 1978, quatro volumes), ainda no final do primeiro século da era cristã o cristianismo começaria a se propagar como uma dissidência do judaísmo. A princípio uma dissidência muito tênue. Como diria o apóstolo Paulo: "Com os judeus, procedi como judeu...; com aqueles que estão sem lei, (procedi) a fim de ganhar os que estão sem lei. Eu era fraco para com os fracos, a fim de ganhar os fracos" ("Primeira Epístola aos Coríntios", apud Poliakóv, op. cit.). A princípio, o proselitismo cristão se daria principalmente entre as colônias judaicas da diáspora, mas logo se estenderia aos gentios. Ora, diz Poliakóv, "judeus e cristãos reivindicam ambos o deus de Abraão, pretendendo ambos ser fiéis de suas vontades, venerando ambos o mesmo livro sagrado, mas cada um interpretando-o à sua maneira. Acrescentemos que as autoridades romanas parecem não ter feito, no início, muita distinção entre uns e outros (os textos romanos mais antigos os confundem pura e simplesmente). Poucas vezes se viu um estado de coisas tão propício para suscitar animosidades irredutíveis" (Op. cit., vol. 1, "De Cristo aos Judeus da Corte", pág. 17). Em síntese, as duas religiões, à medida que se propagavam pelas margens do Mediterrâneo, se tornaram rivais, competindo acirradamente pelos novos prosélitos. Dessa competição e da posterior supremacia cristã, posto que durante vários séculos o judaísmo continuou a ser visto como uma crença rival, resultariam o ódio, o anti-semitismo e a acusação feita aos judeus de terem sido "deicidas". Poliakóv está muito bem documentado e, como ele mesmo afirma, nesse contexto, qualquer discussão sobre a "historicidade" dos Evangelhos se torna irrelevante. Em seu filme tão controvertido, Mel Gibson nada mais fez do que retratar a imagem dos judeus e dos Evangelhos que, certa ou errada, os cristãos sempre construíram para si próprios no processo de se tornarem religião dominante na Europa e mesmo depois disso. Aliás, tudo indica que ele retratou a imagem que recebeu da sua família e que sempre teve desde a sua infância. Não é por outra razão que seu filme está sendo tão bem-sucedido entre a audiência de seu país, em que pese toda a controvérsia. Já não se vê o filme com a animosidade de antanho, mas se reconhece nele o que sempre se aprendeu. Nisso tudo, o mais surpreendente é a reação de diversos establishments. Como se alguma das suas lideranças tivesse esquecido um passado tão recente, como se jamais tivessem visto uma "malhação de judas" ou seus equivalentes de outros países. É verdade que as coisas mudaram. A Segunda Guerra Mundial, o Holocausto, a imigração de judeus para os EUA e sua rápida ascensão social e intelectual, a secularização do mundo europeu, tudo isso e eventos correlatos contribuíram para uma forte mitigação do "ódio antico" (cfe. Cesare Mannucci, Mondadori, Milão, 1993). Na verdade, já não persiste o antigo ódio. Mel Gibson, ao soprar as brasas que restaram, mostra apenas que é um oportunista maligno e insensato.

Gama variada
Mas não serão oportunistas todas as hierarquias de cultos fundamentalistas, que insistem em fazer de conta que a humanidade ainda não passou pelo Iluminismo e pela "idade da razão"? George W. Bush? Os neo-evangélicos do nosso pobre Brasil? Osama bin Laden? As direitas religiosas de tantos países? Ou tantos outros, iguais a Mel Gibson, que andam por aí?
Quanto aos aspectos cinematográficos do filme, ainda que não sejam objeto desse texto, não posso deixar de registrar que, se Mel Gibson realmente tivesse querido ser fiel aos Evangelhos, poderia ter criado um Cristo e demais personagens mais fiéis aos seus conhecidos fenótipos. Mas oportunismo insensato e logro o levaram a preferir uma concepção "aggiornata" de Cecil B. de Mille e de Hollywood.


Gabriel Bolaffi é sociólogo e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, autor de "A Saga da Comida" (ed. Record), entre outros.


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