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Debate moderno sobre o "irrepresentável" ressurge em Godard e em "A Vida É Bela", cuja mediocridade não vem da indignidade ética em fabular o horror nazista, mas da falta de ficção do filme
Teologia da imagem
JACQUES RANCIÈRE
especial para a Folha
O lançamento do filme de Roberto Benigni "A Vida É Bela"
reavivou a querela sobre o que o
cinema e a arte em geral podem ou
não podem mostrar sobre o extermínio nazista. O dado ficcional do
filme -um pai judeu que logra fazer crer a seu filho que a estada
forçada num campo de concentração é uma brincadeira- imita evidentemente, de maneira perturbadora, o argumento negacionista
segundo o qual os fatos podem
sempre ser interpretados de outro
modo.
Além disso, ele reacendeu a polêmica segundo a qual o horror do
extermínio não pode ser representado. E essa polêmica em torno do
irrepresentável suscitou, por si
mesma, a reação daqueles que repudiam a "censura" assim exercida em relação à imagem. Entre
estes últimos, Jean-Luc Godard
proclamou recentemente que não
temos o direito de "impedir as
pessoas de filmarem", sob pena
de levantar suspeitas fundadas.
Num artigo do "Le Monde", Gérard Wacman, psicanalista e autor
de uma obra com título significativo, "L'Objet du Siècle" (O Objeto
do Século), indagava-se sobre o
culto da imagem subjacente a essa
reivindicação e reafirmava a posição ilustrada pelas obras e declarações de Claude Lanzmann: ao horror do extermínio nenhuma imagem pode ser adequada. Isso porque a imagem sempre banaliza os
extremos e empresta ao crime
uma face humana.
Sob a sua aparente clareza, a formulação do debate levanta várias
questões e faz com que subsistam
várias obscuridades. Uma fórmula
de Adorno, enunciada com certa
precipitação e glosada de modo
um tanto longo, declarava impossível a arte depois de Auschwitz.
Vemos hoje como essa culpabilidade da arte diante do horror se
deixa interpretar de duas maneiras
opostas. Segundo Lanzmann, o cinema é culpável quando quer reproduzir as imagens do Shoah
(Holocausto), participando assim
de sua banalização. Segundo Godard, ele é culpável por não ter filmado tais imagens, por ter ignorado os campos de concentração e
até mesmo por desconhecer que,
em suas próprias ficções, havia
anunciado a obra da morte. Para
um, em suma, faltam imagens ao
cinema para tomar o horror em
consideração; para o outro, o erro
está justamente na falta de imagens. Essas duas visões contraditórias da culpabilidade são, é claro, duas idéias diferentes da relação entre arte e imagem, duas
idéias da arte que se fundem, em
última instância, em duas teologias da imagem.
Podemos admiti-la, sem dúvida,
para Gérard Wacman; a posição
de Godard, porém, sublinha algo
totalmente diverso da defesa do
direito à liberdade das imagens.
Ela ressalta, antes, uma concepção
propriamente icônica do cinema,
que "História(s) do Cinema"
ilustra em detalhes. O cinema, diz
Godard, não é uma arte nem uma
técnica, é um mistério. Esse "mistério" não é outra coisa senão o da
encarnação. O cinema não é uma
arte da ficção; a imagem cinematográfica não é uma cópia, não é
um simulacro. É a marca impressa
do verdadeiro, análoga à imagem
do Cristo sobre o sudário de Verônica. A imagem é atestado de verdade por ser a própria marca de
uma presença. Como houve campos de concentração, deve haver
imagens sobre eles. O argumento
de Godard, é claro, pode ser lido
de trás para frente: é preciso que
haja imagens sobre os campos de
concentração para que se ateste a
verdade da imagem e para que a
arte cinematográfica devote-se a
seu culto.
Mas será que a denúncia desse
culto da imagem é perfeitamente
clara? Ela reivindica a unidade de
um ponto de vista ético e de um
ponto de vista estético: quem quer
fazer imagens do horror irrepresentável é punido pela mediocridade estética de seu produto. Mas
o que quer dizer, afinal, "fazer
imagens"? Lanzmann, em
"Shoah", e Benigni, em "A Vida
É Bela", fazem, tanto um como
outro, imagens em movimento. O
que difere é a função dessas imagens, o fim que elas buscam e a
maneira que o cineasta as compõe
para ordená-la com esse fim.
Lanzmann propõe-se a atestar a
realidade de um processo a partir
da própria tentativa de apagar seus
traços de maneira programática.
Isso quer dizer que a imagem não
pode reproduzir o que desapareceu. Ela tem de fazer outra coisa,
duas coisas ao mesmo tempo:
mostrar como os traços foram
apagados e abrir espaço à voz de
testemunhas e historiadores que
reconstituem, por meio de palavras, a lógica do aniquilamento
realizado nas linhas de combate: a
lógica do extermínio e sua dissimulação. Ao subordinar, de acordo com essa lógica, a imagem às
palavras que a fazem falar, Lanzmann redescobre o paradoxo estético anunciado por Burke há mais
de dois séculos, ao comparar os
poderes da poesia com os da pintura: as palavras são sempre mais
adequadas que as imagens para
traduzir toda a grandeza, seja do
sublime ou do horror que ultrapassa as medidas. Mais adequadas
justamente porque elas nos dispensam de ver aquilo que nos descrevem.
Para "mostrar" o horror da última viagem rumo à morte, a análise dos itinerários e a fria explicação do mecanismo das "reduções
de grupo", consentidas pela
Reichsbahn, serão sempre superiores a toda reconstituição do rebanho humano conduzido ao abatedouro, e isso por duas razões,
que só aparentemente são contraditórias: porque elas nos oferecem
uma representação mais exata da
"máquina" de morte ao nos impedir de ver e imaginar o sofrimento dessas vítimas.
Em suma, o projeto de Lanzmann impõe um certo tipo de arte,
um certo tipo de "ficção", ou seja, de agenciamento de palavras e
imagens. O projeto de Benigni é
claramente diverso. Em vista do
extermínio, ele não tem pruridos
nem de atestá-lo nem de negá-lo.
Ele o toma como uma situação
própria para levar ao paroxismo a
lógica constitutiva de seu personagem. Todo o filme, de fato, é construído sobre um único dado: a capacidade de um personagem em
operar milagres a cada minuto e
transfigurar toda a realidade. Ele é
igualmente incapaz de negar a realidade dos campos de concentração e de dizer algo sobre eles.
A mediocridade do filme não
vem da indignidade ética que haveria em fabular o horror nazista,
tornando-o motivo de riso. Ela
vem, ao contrário, da falta de ficção. Autor-ator como Benigni,
Chaplin assumira o risco e ganhara a aposta de fazer rir de Hitler em
seu "O Grande Ditador" (1940).
Os sucessivos equívocos que
transformam o herói de Benigni
em rei da Itália ou em inspetor fascista evocam, evidentemente,
aquele outro equívoco que, no final de "O Grande Ditador", fez
tomar o barbeiro em fuga pelo
Führer conquistador. Só falta uma
coisa, que é tudo: o pequeno tremor que se apossou do barbeiro
no momento de tomar o lugar, na
tribuna, de seu sósia, a fim de deixar falar o cineasta. Esse pequeno
tremor resumia, de fato, todo o
trabalho de uma encenação. Para
fabular a pessoa de Hitler, Chaplin
pagara um preço caríssimo: consentira em quebrar a unidade da
forma-Charlot, em representar os
papéis inversos do ditador e de sua
vítima e em despojá-los, tanto a
um como a outro, para falar em
seu próprio nome. Com isso ele
pusera em cena o deslocamento de
seu personagem sobre a tribuna
do Führer.
Já o diretor Benigni é incapaz de
fabular o deslocamento do ator
Benigni. Incapaz de fabulá-lo, capaz somente de repetir ao infinito
a gesticulação ilusionista. As cenas
do campo de concentração não
são ruins porque fornecem imagens daquilo que não pode ou não
deve ser posto em imagens. Elas
são ruins porque não têm mais
nem menos razão de ser do que
aquelas que as precedem.
O problema centra-se então na
capacidade ficcional da encenação, e não na dignidade ou na indignidade da imagem. E tampouco nas capacidades ou incapacidades. O argumento da "banalização" pela imagem é ele próprio
equívoco, quando visto sob o prisma da eficácia, pois o fato de atestar um acontecimento excepcional
presta-se a um risco duplo. Subtraí-lo, em nome de sua excepcionalidade, às condições ordinárias
da representação dos acontecimentos é tão perigoso quanto banalizá-lo, representando-o segundo as mesmas regras que todos os
outros. É preciso cogitar, então,
que os inimigos da imagem, tal como seus devotos, conferem ao tema um valor diverso.
Ao criticar o caráter redentor
que Godard, como discípulo de
São Paulo, empresta à imagem,
Gérard Wacman defende-se de
querer impor uma outra teologia
da imagem: a proibição mosaica
da representação. Mas, se não é a
sacralidade da lei que está em jogo
aqui, poderia muito bem ser uma
outra, a da arte. É preciso que o
extermínio prescinda de "imagens" para que se ateste a missão
sagrada da arte. O argumento do
irrepresentável assegura a equivalência entre um projeto moderno
da arte e uma missão histórica. Segundo essa lógica, o "Quadrado
Negro sobre Fundo Branco", de
Malevich (1878-1935), ao destruir
o princípio figurativo, daria à arte
moderna o seu verdadeiro tema: a
ausência. Para atestar o mistério
da imagem, Godard deveria divisar no campo de concentração de
"O Grande Ditador" ou na caça
ao coelho e na dança dos mortos
de "A Regra do Jogo" (1939), de
Jean Renoir, algumas profecias de
extermínio futuro.
Para atestar a missão da arte, seu
crítico deve pôr em ação a mesma
lógica, divisar nos manifestos anti-representativos dos anos 10 a
antecipação profética, pela arte
moderna, de sua vocação: dar
conta do "objeto do século", o
extermínio. Uma teologia da modernidade artística se oporá então
a uma teologia da imagem redentora. Não é certo que esse combate
faça jus àquilo que é exposto pelos
filmes, sejam eles bons ou maus.
Jacques Rancière é filósofo e professor da Universidade de Paris 8 (França). É autor de "O Desentendimento" (Ed. 34) e "A Noite dos Proletários" (Cia das Letras), entre outros.
Tradução de José Marcos Macedo.
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