São Paulo, Domingo, 21 de Março de 1999
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Debate moderno sobre o "irrepresentável" ressurge em Godard e em "A Vida É Bela", cuja mediocridade não vem da indignidade ética em fabular o horror nazista, mas da falta de ficção do filme
Teologia da imagem

JACQUES RANCIÈRE
especial para a Folha

O lançamento do filme de Roberto Benigni "A Vida É Bela" reavivou a querela sobre o que o cinema e a arte em geral podem ou não podem mostrar sobre o extermínio nazista. O dado ficcional do filme -um pai judeu que logra fazer crer a seu filho que a estada forçada num campo de concentração é uma brincadeira- imita evidentemente, de maneira perturbadora, o argumento negacionista segundo o qual os fatos podem sempre ser interpretados de outro modo.
Além disso, ele reacendeu a polêmica segundo a qual o horror do extermínio não pode ser representado. E essa polêmica em torno do irrepresentável suscitou, por si mesma, a reação daqueles que repudiam a "censura" assim exercida em relação à imagem. Entre estes últimos, Jean-Luc Godard proclamou recentemente que não temos o direito de "impedir as pessoas de filmarem", sob pena de levantar suspeitas fundadas. Num artigo do "Le Monde", Gérard Wacman, psicanalista e autor de uma obra com título significativo, "L'Objet du Siècle" (O Objeto do Século), indagava-se sobre o culto da imagem subjacente a essa reivindicação e reafirmava a posição ilustrada pelas obras e declarações de Claude Lanzmann: ao horror do extermínio nenhuma imagem pode ser adequada. Isso porque a imagem sempre banaliza os extremos e empresta ao crime uma face humana.
Sob a sua aparente clareza, a formulação do debate levanta várias questões e faz com que subsistam várias obscuridades. Uma fórmula de Adorno, enunciada com certa precipitação e glosada de modo um tanto longo, declarava impossível a arte depois de Auschwitz. Vemos hoje como essa culpabilidade da arte diante do horror se deixa interpretar de duas maneiras opostas. Segundo Lanzmann, o cinema é culpável quando quer reproduzir as imagens do Shoah (Holocausto), participando assim de sua banalização. Segundo Godard, ele é culpável por não ter filmado tais imagens, por ter ignorado os campos de concentração e até mesmo por desconhecer que, em suas próprias ficções, havia anunciado a obra da morte. Para um, em suma, faltam imagens ao cinema para tomar o horror em consideração; para o outro, o erro está justamente na falta de imagens. Essas duas visões contraditórias da culpabilidade são, é claro, duas idéias diferentes da relação entre arte e imagem, duas idéias da arte que se fundem, em última instância, em duas teologias da imagem.
Podemos admiti-la, sem dúvida, para Gérard Wacman; a posição de Godard, porém, sublinha algo totalmente diverso da defesa do direito à liberdade das imagens. Ela ressalta, antes, uma concepção propriamente icônica do cinema, que "História(s) do Cinema" ilustra em detalhes. O cinema, diz Godard, não é uma arte nem uma técnica, é um mistério. Esse "mistério" não é outra coisa senão o da encarnação. O cinema não é uma arte da ficção; a imagem cinematográfica não é uma cópia, não é um simulacro. É a marca impressa do verdadeiro, análoga à imagem do Cristo sobre o sudário de Verônica. A imagem é atestado de verdade por ser a própria marca de uma presença. Como houve campos de concentração, deve haver imagens sobre eles. O argumento de Godard, é claro, pode ser lido de trás para frente: é preciso que haja imagens sobre os campos de concentração para que se ateste a verdade da imagem e para que a arte cinematográfica devote-se a seu culto.
Mas será que a denúncia desse culto da imagem é perfeitamente clara? Ela reivindica a unidade de um ponto de vista ético e de um ponto de vista estético: quem quer fazer imagens do horror irrepresentável é punido pela mediocridade estética de seu produto. Mas o que quer dizer, afinal, "fazer imagens"? Lanzmann, em "Shoah", e Benigni, em "A Vida É Bela", fazem, tanto um como outro, imagens em movimento. O que difere é a função dessas imagens, o fim que elas buscam e a maneira que o cineasta as compõe para ordená-la com esse fim.
Lanzmann propõe-se a atestar a realidade de um processo a partir da própria tentativa de apagar seus traços de maneira programática. Isso quer dizer que a imagem não pode reproduzir o que desapareceu. Ela tem de fazer outra coisa, duas coisas ao mesmo tempo: mostrar como os traços foram apagados e abrir espaço à voz de testemunhas e historiadores que reconstituem, por meio de palavras, a lógica do aniquilamento realizado nas linhas de combate: a lógica do extermínio e sua dissimulação. Ao subordinar, de acordo com essa lógica, a imagem às palavras que a fazem falar, Lanzmann redescobre o paradoxo estético anunciado por Burke há mais de dois séculos, ao comparar os poderes da poesia com os da pintura: as palavras são sempre mais adequadas que as imagens para traduzir toda a grandeza, seja do sublime ou do horror que ultrapassa as medidas. Mais adequadas justamente porque elas nos dispensam de ver aquilo que nos descrevem.
Para "mostrar" o horror da última viagem rumo à morte, a análise dos itinerários e a fria explicação do mecanismo das "reduções de grupo", consentidas pela Reichsbahn, serão sempre superiores a toda reconstituição do rebanho humano conduzido ao abatedouro, e isso por duas razões, que só aparentemente são contraditórias: porque elas nos oferecem uma representação mais exata da "máquina" de morte ao nos impedir de ver e imaginar o sofrimento dessas vítimas.
Em suma, o projeto de Lanzmann impõe um certo tipo de arte, um certo tipo de "ficção", ou seja, de agenciamento de palavras e imagens. O projeto de Benigni é claramente diverso. Em vista do extermínio, ele não tem pruridos nem de atestá-lo nem de negá-lo. Ele o toma como uma situação própria para levar ao paroxismo a lógica constitutiva de seu personagem. Todo o filme, de fato, é construído sobre um único dado: a capacidade de um personagem em operar milagres a cada minuto e transfigurar toda a realidade. Ele é igualmente incapaz de negar a realidade dos campos de concentração e de dizer algo sobre eles.
A mediocridade do filme não vem da indignidade ética que haveria em fabular o horror nazista, tornando-o motivo de riso. Ela vem, ao contrário, da falta de ficção. Autor-ator como Benigni, Chaplin assumira o risco e ganhara a aposta de fazer rir de Hitler em seu "O Grande Ditador" (1940). Os sucessivos equívocos que transformam o herói de Benigni em rei da Itália ou em inspetor fascista evocam, evidentemente, aquele outro equívoco que, no final de "O Grande Ditador", fez tomar o barbeiro em fuga pelo Führer conquistador. Só falta uma coisa, que é tudo: o pequeno tremor que se apossou do barbeiro no momento de tomar o lugar, na tribuna, de seu sósia, a fim de deixar falar o cineasta. Esse pequeno tremor resumia, de fato, todo o trabalho de uma encenação. Para fabular a pessoa de Hitler, Chaplin pagara um preço caríssimo: consentira em quebrar a unidade da forma-Charlot, em representar os papéis inversos do ditador e de sua vítima e em despojá-los, tanto a um como a outro, para falar em seu próprio nome. Com isso ele pusera em cena o deslocamento de seu personagem sobre a tribuna do Führer.
Já o diretor Benigni é incapaz de fabular o deslocamento do ator Benigni. Incapaz de fabulá-lo, capaz somente de repetir ao infinito a gesticulação ilusionista. As cenas do campo de concentração não são ruins porque fornecem imagens daquilo que não pode ou não deve ser posto em imagens. Elas são ruins porque não têm mais nem menos razão de ser do que aquelas que as precedem.
O problema centra-se então na capacidade ficcional da encenação, e não na dignidade ou na indignidade da imagem. E tampouco nas capacidades ou incapacidades. O argumento da "banalização" pela imagem é ele próprio equívoco, quando visto sob o prisma da eficácia, pois o fato de atestar um acontecimento excepcional presta-se a um risco duplo. Subtraí-lo, em nome de sua excepcionalidade, às condições ordinárias da representação dos acontecimentos é tão perigoso quanto banalizá-lo, representando-o segundo as mesmas regras que todos os outros. É preciso cogitar, então, que os inimigos da imagem, tal como seus devotos, conferem ao tema um valor diverso.
Ao criticar o caráter redentor que Godard, como discípulo de São Paulo, empresta à imagem, Gérard Wacman defende-se de querer impor uma outra teologia da imagem: a proibição mosaica da representação. Mas, se não é a sacralidade da lei que está em jogo aqui, poderia muito bem ser uma outra, a da arte. É preciso que o extermínio prescinda de "imagens" para que se ateste a missão sagrada da arte. O argumento do irrepresentável assegura a equivalência entre um projeto moderno da arte e uma missão histórica. Segundo essa lógica, o "Quadrado Negro sobre Fundo Branco", de Malevich (1878-1935), ao destruir o princípio figurativo, daria à arte moderna o seu verdadeiro tema: a ausência. Para atestar o mistério da imagem, Godard deveria divisar no campo de concentração de "O Grande Ditador" ou na caça ao coelho e na dança dos mortos de "A Regra do Jogo" (1939), de Jean Renoir, algumas profecias de extermínio futuro.
Para atestar a missão da arte, seu crítico deve pôr em ação a mesma lógica, divisar nos manifestos anti-representativos dos anos 10 a antecipação profética, pela arte moderna, de sua vocação: dar conta do "objeto do século", o extermínio. Uma teologia da modernidade artística se oporá então a uma teologia da imagem redentora. Não é certo que esse combate faça jus àquilo que é exposto pelos filmes, sejam eles bons ou maus.


Jacques Rancière é filósofo e professor da Universidade de Paris 8 (França). É autor de "O Desentendimento" (Ed. 34) e "A Noite dos Proletários" (Cia das Letras), entre outros.
Tradução de José Marcos Macedo.




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