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O Kivídeo de um só Godard
GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha
Jean-Luc Godard é antes de tudo
um forte, dotado de uma incrível
capacidade de criação, hoje mais
do que nunca. "Salve-Se Quem
Puder - A Vida" é de 1980. Com
esse filme a morte do cinema renasce por meio da tecnologia vídeo, embora tenha sido o cinema
que salvara a vida dele, ou seja: o
amor pelo cinema. É isso o que é
dito e redito a partir de "Salve-Se
Quem Puder", justamente quando Godard e a cineasta Anne Miéville montam casa para morar,
atravessando os "golden eighties" à beira de um lago na Suíça,
onde fará cada vez mais sozinho a
montagem de seus filmes cósmicos, filmes de locução, sempre a
voz dele recitando-o como ator. O
tio Godard falando e mostrando
coisas inteligentes para ver e ouvir
no meio das palavras "imaginário", "medo", "comércio",
"música".
De "Salve-Se Quem Puder" a
"História(s) do Cinema", de
1998, são 20 anos. Muito estudo,
leitura e reflexão geraram alguns
filmes extraordinários ("Je Vous
Salue Marie", "Detetive",
"Nouvelle Vague", "JLG por
JLG" etc). Isso é a prova irrefutável de que Jean-Luc Godard está
vivo, o mais importante homem
do século do cinema, enquanto
Pier Paolo Pasolini e Glauber Rocha infelizmente não estão mais
aí, morreram em 1975 e 1981, respectivamente. Somente restou
Straub.
De família rica, protestante, infância vivida em palacete, tendo
um xodó todo especial pelo seu
avô, aliás amigo do poeta francês
Paul Valéry. Durante os anos 50
Godard larga a família na Suíça e
vai para Paris, dizem até que roubando livros e revendendo-os para pagar a entrada nos cinemas,
reencontrando uma nova família
na revista "Cahiers du Cinéma" e
na patota cinematográfica Nouvelle Vague. Quem trabalhou com
ele fazendo câmera, montagem,
som conhece por dentro: é impossível gostar do jovem Godard e
não gostar do velho e "dernier"
Godard. Como Fernando Pessoa,
o que existe é um só Godard, de
"Acossado" (1959) a "História(s) do Cinema".
Por exemplo: os últimos quartetos de Beethoven do filme "Prenome Carmen" (1982) já estavam
na acústica de "O Demônio das
Onze Horas" (1965), assim como,
antes de aparecer "For Ever Mozart", a curtição mozartiana era o
filme "Weekend à Francesa", de
1967. Pouca gente sabe que em
"Le Vent d'Est" (1969, realização
do grupo Dziga Vertog) Glauber
Rocha é filmado a cores com os
braços abertos, como Cristo ou
Courisco de "Deus e o Diabo na
Terra do Sol".
Esse mesmo plano surgirá em
"História(s) do Cinema: a primeira parte dedicada a Glauber Rocha, cujo nome aparece junto com
o norte-americano John Cassavetes. Lembrei-me de 1980, numa
dessas revistas precárias boladas
pelo Tasso de Castro, vendo as fotos de Godard e de "Sauve-Se
Quem Puder", em que Glauber
Rocha comentava com júbilo o
desbunde do cineasta que não estava mais de saco cheio da beleza e
da poesia, sem o menor constrangimento de assumir o gênio do cinema. Do cinema brasileiro a única referência em "História(s) do
Cinema" é o plano de Godard sobre Glauber, em que este escreve
no "Século do Cinema" (1980)
que viu ali como ator a colonização morta. O renascimento de
"Salve-Se Quem Puder" se faz
acompanhar da reflexão sobre o
cristianismo da imagem ressuscitada: imagem é ressurreição.
Da década de 80 em diante,
Jean-Luc Godard, o Montaigne do
cinema francês, é o ensaísta do século 20, ainda que seu nome tenha
sido recusado pelo Collège de
France, o centro acadêmico dos
medalhões das letras. Inclusive de
nada adiantou a batalha de Pierre
Bourdieu para querer fazê-lo entrar no famoso Collège (instituição onde palestraram Barthes,
Foucault e outros), o que o impediu, portanto, de ter um salário
para pensar, escrever e filmar.
"Cada palavra não é um movimento criado no ar?" Essa é a bela
pergunta que sintetiza o cinema
de Godard a partir da década de
80. A energia da memória contra o
domínio da TV, filmando a natureza, a água, a terra, o sol, a matéria de renovação energética permanente na luz da fotografia e das
imagens. Inimigo maníaco e obstinado da TV e do cinema falado,
Godard utiliza, no entanto, o vídeo para a análise da fotografia,
antenado no estágio da ciência e
da tecnologia no final deste milênio. São 4 horas de audiovisual e 4
livros de crítica de cultura, 972 páginas de puríssima filosofia.
Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor
de ciências sociais da Universidade Federal de
Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da
Moeda" (Ed. Espaço e Tempo), entre outros.
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