São Paulo, Domingo, 21 de Março de 1999
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O Kivídeo de um só Godard

GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha

Jean-Luc Godard é antes de tudo um forte, dotado de uma incrível capacidade de criação, hoje mais do que nunca. "Salve-Se Quem Puder - A Vida" é de 1980. Com esse filme a morte do cinema renasce por meio da tecnologia vídeo, embora tenha sido o cinema que salvara a vida dele, ou seja: o amor pelo cinema. É isso o que é dito e redito a partir de "Salve-Se Quem Puder", justamente quando Godard e a cineasta Anne Miéville montam casa para morar, atravessando os "golden eighties" à beira de um lago na Suíça, onde fará cada vez mais sozinho a montagem de seus filmes cósmicos, filmes de locução, sempre a voz dele recitando-o como ator. O tio Godard falando e mostrando coisas inteligentes para ver e ouvir no meio das palavras "imaginário", "medo", "comércio", "música".
De "Salve-Se Quem Puder" a "História(s) do Cinema", de 1998, são 20 anos. Muito estudo, leitura e reflexão geraram alguns filmes extraordinários ("Je Vous Salue Marie", "Detetive", "Nouvelle Vague", "JLG por JLG" etc). Isso é a prova irrefutável de que Jean-Luc Godard está vivo, o mais importante homem do século do cinema, enquanto Pier Paolo Pasolini e Glauber Rocha infelizmente não estão mais aí, morreram em 1975 e 1981, respectivamente. Somente restou Straub.
De família rica, protestante, infância vivida em palacete, tendo um xodó todo especial pelo seu avô, aliás amigo do poeta francês Paul Valéry. Durante os anos 50 Godard larga a família na Suíça e vai para Paris, dizem até que roubando livros e revendendo-os para pagar a entrada nos cinemas, reencontrando uma nova família na revista "Cahiers du Cinéma" e na patota cinematográfica Nouvelle Vague. Quem trabalhou com ele fazendo câmera, montagem, som conhece por dentro: é impossível gostar do jovem Godard e não gostar do velho e "dernier" Godard. Como Fernando Pessoa, o que existe é um só Godard, de "Acossado" (1959) a "História(s) do Cinema".
Por exemplo: os últimos quartetos de Beethoven do filme "Prenome Carmen" (1982) já estavam na acústica de "O Demônio das Onze Horas" (1965), assim como, antes de aparecer "For Ever Mozart", a curtição mozartiana era o filme "Weekend à Francesa", de 1967. Pouca gente sabe que em "Le Vent d'Est" (1969, realização do grupo Dziga Vertog) Glauber Rocha é filmado a cores com os braços abertos, como Cristo ou Courisco de "Deus e o Diabo na Terra do Sol".
Esse mesmo plano surgirá em "História(s) do Cinema: a primeira parte dedicada a Glauber Rocha, cujo nome aparece junto com o norte-americano John Cassavetes. Lembrei-me de 1980, numa dessas revistas precárias boladas pelo Tasso de Castro, vendo as fotos de Godard e de "Sauve-Se Quem Puder", em que Glauber Rocha comentava com júbilo o desbunde do cineasta que não estava mais de saco cheio da beleza e da poesia, sem o menor constrangimento de assumir o gênio do cinema. Do cinema brasileiro a única referência em "História(s) do Cinema" é o plano de Godard sobre Glauber, em que este escreve no "Século do Cinema" (1980) que viu ali como ator a colonização morta. O renascimento de "Salve-Se Quem Puder" se faz acompanhar da reflexão sobre o cristianismo da imagem ressuscitada: imagem é ressurreição.
Da década de 80 em diante, Jean-Luc Godard, o Montaigne do cinema francês, é o ensaísta do século 20, ainda que seu nome tenha sido recusado pelo Collège de France, o centro acadêmico dos medalhões das letras. Inclusive de nada adiantou a batalha de Pierre Bourdieu para querer fazê-lo entrar no famoso Collège (instituição onde palestraram Barthes, Foucault e outros), o que o impediu, portanto, de ter um salário para pensar, escrever e filmar.
"Cada palavra não é um movimento criado no ar?" Essa é a bela pergunta que sintetiza o cinema de Godard a partir da década de 80. A energia da memória contra o domínio da TV, filmando a natureza, a água, a terra, o sol, a matéria de renovação energética permanente na luz da fotografia e das imagens. Inimigo maníaco e obstinado da TV e do cinema falado, Godard utiliza, no entanto, o vídeo para a análise da fotografia, antenado no estágio da ciência e da tecnologia no final deste milênio. São 4 horas de audiovisual e 4 livros de crítica de cultura, 972 páginas de puríssima filosofia.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (Ed. Espaço e Tempo), entre outros.



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