São Paulo, Domingo, 21 de Março de 1999 |
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O diretor Nelson Pereira dos Santos, diretor de "Vidas Secas", conta sua trajetória de 50 anos no cinema brasileiro Cinco décadas de Brasil
JOSÉ GERALDO COUTO ALCINO LEITE NETO enviados especiais ao Rio
Aos 70 anos de idade e quase 50 de
carreira, o mais importante cineasta brasileiro vivo continua enfrentando dificuldades para exercer seu ofício.
Folha - O sr. conheceu Graciliano Ramos? Pereira dos Santos - Não. Em 1952, eu vim para o Rio e houve um almoço dos intelectuais para o Jorge Amado, que estava voltando do exílio. Fui lá e vi o Graciliano, só que não tive coragem de conversar com ele, nem de chegar perto. Tenho contudo uma história com o Graciliano, que é a seguinte: quando eu estava trabalhando em "O Saci", o Ruy Santos, que era do partido, me perguntou: "Você quer fazer um filme de livro do Graciliano"? Eu disse que sim: "São Bernardo". Ele ligou para o Graciliano, no interior de São Paulo, que concordou com a adaptação. Lá pelas tantas, eu me apaixonei pela Madalena, a mulher do Paulo Honório no livro, e achei que ela não podia morrer. Tomei essa decisão: ela vai fugir, vai abandonar o Paulo Honório. Aí o Ruy Santos falou: "Escreve uma carta para ver se o Graciliano concorda, porque ele é meio duro aí nas coisas". Então, escrevi uma carta, propondo essa modificação. A resposta foi, na primeira parte, muito dura: "Ou vocês fazem o meu romance, ou vocês esquecem, façam um filme aí com a história de vocês, não mexam na minha história". Mas a segunda parte era mais ou menos assim: "Vocês estão vivendo os dias de hoje, então não são capazes de compreender a posição de uma mulher como a Madalena nos anos 30, uma mulher que queria educar o cabra, fazer o cabra aprender a ler e a escrever. Não havia condição para ela se expandir, viver a sua vida do jeito que pensava. Os caminhos estavam fechados para ela. Então, ela se suicida, e o suicídio faz com que Paulo Honório pare tudo e comece uma grande especulação sobre si mesmo, que é a origem do livro. Se ela não tivesse se matado, ele não teria parado para pensar e não teria pensado em escrever um livro, eu não teria escrito o livro e você também não teria a idéia de fazer um filme". Folha - Em "Vidas Secas", sua primeira adaptação de Graciliano Ramos, o sr. vai praticamente consolidar um modelo de fotografia para o cinema brasileiro. Pereira dos Santos - Até quando fiz "Mandacaru Vermelho" (1959), o esquema fotográfico ainda era aquele do mexicano Gabriel Figueroa, de Hollywood, o uso de filtros etc. Você colocava o filtro e fazia aquelas nuvens enormes. Veio então o Luiz Carlos Barreto, com toda a novidade: lente nua, sem filtro, direto. Ele era fotógrafo da revista "O Cruzeiro", em que também trabalhava o francês Jean Manzon, que tinha trazido com ele toda a escola fotográfica do Cartier-Bresson. Eu colocava as minhas dificuldades encontradas durante o "Mandacaru" e o Luiz Carlos tinha resposta para isso. "Então, vamos experimentar?", ele dizia. "Fica o céu sem nuvem nenhuma, um branco." Basicamente, é fotografar a luz, não é? Não iluminar um objeto para ser fotografado; fotografar a própria luz tal como ela se dá ali, como ela se apresenta -isso exigia um trabalho mais requintado de mise-en-scène: onde colocar as pessoas? E a caatinga é um ambiente feito para isso, porque é possível encontrar uma gradação infinita do preto até o branco estourado, passando por cinzas, pretos e brancos. Então, foi essa a idéia inicial do trabalho e deu certo. Folha - Outro elemento importante em "Vidas Secas" é o uso do silêncio, quase que uma espécie de contraponto do subdesenvolvimento à incomunicabilidade de corte existencialista do cinema de Antonioni. O que o sr. quis dizer com esses tempos "mortos", quando nada se fala, e também com a escassez de música no filme? Pereira dos Santos - Quando fiz "Mandacaru Vermelho", tive condições de viver no sertão um bom período de tempo e de sentir isso. Esse processo de eliminação do lugar-comum, não é? O homem do Sul -eu como paulista, então, mais ainda- via o nordestino de uma forma bem folclórica. A gente confundia muito o nordestino com o baião. No próprio filme do Lima Barreto, "O Cangaceiro", quando o cara não está dando tiro, ele dança o baião e tem uma pessoa cantando. Em "Vidas Secas", o Fabiano fala muito pouco, troca palavras raramente. E isso eu acho que é o grande retrato do despossuído. Ele é despossuído também da palavra. A mesma coisa com relação à mulher. A mulher não tinha naquela época o poder do discurso. Outra coisa: a música do sertão. Não existe tanto baião assim, tanta festa. É coisa rara. O som predominante é o som da natureza. O vento na caatinga é uma orquestra naqueles galhos todos, que combinam as folhas mais altas, mais baixas, os bichos, o tropel do gado, o galopar, o carro de boi... Quando montei o filme, a gente achava que tinha a obrigação de fazer uma música de cabo a rabo. Mas não tinha a menor relação. Uma orquestra, seria impossível. Eu tinha gravado o som de um carro de boi e pensei: "Esse vai ser o som da abertura e do final do filme". Folha - O sr. montou o "Barravento", primeiro longa de Glauber Rocha. Qual foi o seu pensamento mais sincero quando apareceu "Deus e o Diabo na Terra do Sol"? Pereira dos Santos - Ah! Foi realmente uma noite memorável. Aquilo pareceu transbordar a Terra. "Deus e o Diabo" ficou pronto em 64. Já era esperado que fosse uma revelação, uma sensação... Porque "Barravento" já tinha alguma coisa, e "Deus e Diabo", visto por alguns no copião, já era objeto de comentários antes da estréia. Acho que, com esse filme, Glauber se firma como realizador e como inventor de uma linguagem. Glauber fez uma síntese. Tinha muito Eisenstein na montagem. E tinha a Nouvelle Vague e Godard no "travelling", no movimento de câmera, no movimento circular. O "travelling" é uma questão de moral, dizia Godard. Foi realmente uma demonstração de poder de originalidade de Glauber Rocha, de sua capacidade de compor com todos esses estilos conhecidos. Folha - Como se sente sendo chamado de "pai do cinema novo"? Pereira dos Santos - Num debate recente, eu disse: "Não tenho nada com isso, porque fui cooptado por vocês. Já entrei no cinema novo, não fiz o cinema novo". O cinema novo foi mostrado diferentemente por vários criadores, cada um com o seu potencial de linguagem, de influência. Foi um cinema muito misturado, de muitas tendências, muito rico. "cinema novo" ficou sendo aquele rótulo para fora. Folha - O sr. diz "rótulo para fora" porque foi um cinema que vendeu uma imagem do Brasil no exterior? Pereira dos Santos - Exato. E também para o próprio Brasil. Foi o efeito bumerangue: foi para o exterior e voltou. Disseram: "Ah! existe cinema no Brasil". O que eu acho é que os diretores do cinema novo e eu, todos bebemos na mesma fonte. O cinema não vive só do cinema, vive de um contexto cultural mais amplo. Nós todos estávamos embebidos daquela geração anterior dos escritores, dos romancistas, da Semana de Arte Moderna, dos grandes pintores, Di Cavalcanti, Pancetti, de Villa-Lobos, tudo isso estava na cabeça da gente, sem falar em Euclides da Cunha, Gilberto Freyre etc. Era a permanente busca dessa identidade brasileira. O cinema novo cumpriu uma função histórica, que foi a de juntar essa herança cultural com o domínio da linguagem universal do cinema. Quer dizer, de um jeito ou de outro, cada um de nós sabia usar a linguagem, de uma forma moderna, original. Essa linguagem foi colocada a serviço da tradição cultural do modernismo, vamos dizer assim. O cinema novo é o modernismo no cinema. Em outras palavras também significa descolonização em todos os sentidos. Folha - O que o sr. levantaria como os pontos positivos e os pontos negativos do cinema novo? Pereira dos Santos - Fazendo assim uma piada, brincando, eu acho que os filmes são as coisas boas. Agora, as entrevistas dos diretores, a teorização... Acho que a coisa positiva do cinema novo foi descolonizar o cinema. Hoje o jovem que vai fazer filme não precisa mais enfrentar aquela montanha de preconceitos e bobagens em relação ao cinema brasileiro. Meus alunos riem quando eu digo que naquele tempo diziam assim: "O português não é uma língua cinematográfica" ou "o povo brasileiro não é cinematográfico". Isso escondia aquele preconceito racial: não pode ter crioulo na tela, não pode ter mulata e não sei o quê. Hoje, nenhum jovem diretor precisa trabalhar primeiro contra isso para depois fazer o filme. O cinema novo teve esse aspecto liberador, mas também originou uma produção de filmes chamados autorais, que era o exagero da posição autoral. Veio uma porção de filmes com aquele discurso autoritário do diretor. Um cinema sem condição de dialogar, de discutir com o outro. Folha - O sr. veria no seu próprio cinema algum exemplo disso? Pereira dos Santos - Não, acho que não. Tive uma atitude mais de ironia, não é? Filmes como "Fome de Amor", "Azyllo Muito Louco", "Quem é Beta", eu os vejo como um passeio, uma licença que me dei para fazer uma especulação com a linguagem de cinema. Folha - Uma das críticas que se faz hoje em dia ao cinema novo é que ele acabou virando uma "panela", um grupo que isolou ou discriminou outras tendências. Uma das brigas mais notórias foi com os chamados "undergrounds" ou marginais. Como foi a sua relação com esse cinema, que surgiu no fim dos anos 60 já como uma reação ao cinema novo? Pereira dos Santos - Quando apareceu o primeiro filme do Julinho (Bressane), conversei com ele entusiasmado. Sempre fui muito receptivo ao que aparece, até hoje, porque o cinema brasileiro tem que engrossar seus fronts. Até por uma questão de autodefesa e por admirar aquele que escolhe esse "métier" e que o realiza de uma forma brilhante, inteligente. Em Turim, dois anos atrás, houve uma grande retrospectiva do cinema novo e do cinema "underground" e surgiu essa questão da briga. Eu disse: "Olha, eu estou por fora, só agora é que estou sabendo que brigaram entre eles". A questão é a seguinte: eu tenho dez anos a mais do que a patota do Glauber. Do que esses outros, eu sou ainda dez anos mais velho. Não havia possibilidade de uma relação conflituosa. Folha - Mas não havia um espírito corporativo no cinema novo? Não havia uma discriminação em relação a quem não era da turma? Pereira dos Santos - O que aconteceu foi natural. Quem "distribuía a carteirinha" do cinema novo era o Glauber. Era dada para todo mundo, porque ele sempre achava que quanto mais melhor, mais força a gente tinha. Mas havia uma exigência muito forte. O Glauber me desculpe, lá no céu, mas ele era um pouco inflexível. Tem muita gente que se sente excluída e que, na realidade, acho que fez filmes que estavam perfeitamente de acordo com o cinema novo. Lembro de filmes muito bons que não foram incluídos. Folha - O sr. falou de seu entusiasmo pelo primeiro Bressane. E Rogério Sganzerla? Pereira dos Santos - "O Bandido da Luz Vermelha" é um clássico. Revi recentemente e continua atualíssimo, impressionante. E com que liberdade ele realizou o filme. Não tem nenhum convencionalismo, nenhuma adesão, nenhuma visão oficial da história do crime. É muito interessante até hoje, ele é atual por isso. Não é maniqueísta, tem uma visão humana profunda. Folha - O cinema que o sr. fez a partir do final dos anos 60 e começo dos 70 também fugia bastante do ideário inicial do cinema novo. É uma fase menos engajada e mais delirante, alegórica, erótica. Essa atitude era uma maneira de reagir à falta de canais políticos? O sr. participou daquele processo de liberação dos costumes, de abertura das "portas da percepção"? Pereira dos Santos - Ah! Isso veio depois. Era uma situação-limite. Existia uma censura violenta, eu não tinha muita saída para continuar aquele cinema de "Vidas Secas" e, por outro lado, eu já estava muito condicionado. Tinha que ter o prazer de fazer um filme que fosse realmente uma saída para a minha cabeça, para o meu íntimo. Nessa situação, veio "Fome de Amor", que era uma adaptação literária do conto de Guilherme Figueiredo. Na mesma época, recebi uma bolsa para ir aos Estados Unidos e ficar dois meses lá, conhecendo o país. Quando comecei a filmar, tinha conhecido toda aquela turma do "underground", o Jonas Meklas, o Stan Brakhage. Pena que o trailer de "Fome de Amor" tenha se perdido. Eu fiz o trailer com cortes assim, de feitio "underground", ele tinha no máximo oito fotogramas. Bem, nessa ida aos EUA, conheci a contracultura americana, a droga, a luta contra a Guerra do Vietnã... Toda aquela revolta da juventude, aquela incongruência de uma juventude vivendo numa sociedade riquíssima e lendo Mao Tse-tung. A linha de "Fome de Amor" é isso. Folha - Nessa época, o sr. "desbundou", como se dizia? Pereira dos Santos - Não, o "Fome de Amor" era ainda a época do álcool. As drogas ainda eram uma coisa muito reduzida. Uma parte da equipe e tal utilizava, mas ainda não era geral. Depois teve o "Azyllo Muito Louco", e a coisa começou a aparecer. Folha - Qual era a droga que se consumia? Pereira dos Santos - Maconha. Mas eu, pessoalmente, já estava velho, carcomido, para tanto. Folha - O sr. chegou a experimentar LSD? Pereira dos Santos - Não, não tomei. Folha - O sr. se apaixonou por alguma atriz de seus filmes? Pereira dos Santos - Faz tanto tempo que eu já esqueci. Você tem que ter uma relação muito boa, muito correta de trabalho, não é? Distinguir um trabalho profissional dessa relação de companheirismo, de "jouissance" -como diz o francês com essa palavra muito chique-, de "jouissance" da vida. Mas em geral a relação permanecia na esfera do trabalho. Elas eram companheiras... Puxa, a Leila Diniz. Foi um prazer enorme trabalhar com ela. Texto Anterior: Contardo Calligaris: A vida não é tão bela assim Próximo Texto: Os filmes Índice |
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