São Paulo, Domingo, 21 de Março de 1999
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O diretor Nelson Pereira dos Santos, diretor de "Vidas Secas", conta sua trajetória de 50 anos no cinema brasileiro
Cinco décadas de Brasil

Patrícia Santos/Folha Imagem
O diretor de cinema Nelson Rodrigues dos Santos, que está preparando um filme baseado na vida de Castro Alves, em seu escritório, no centro do Rio de Janeiro


JOSÉ GERALDO COUTO
ALCINO LEITE NETO
enviados especiais ao Rio

Aos 70 anos de idade e quase 50 de carreira, o mais importante cineasta brasileiro vivo continua enfrentando dificuldades para exercer seu ofício.
Até nisso Nelson Pereira dos Santos está em simbiose com o cinema brasileiro, no qual entrou profissionalmente em 1951, como assistente de direção de Rodolfo Nanni em "O Saci". Na última semana, seu filme "Vidas Secas" (1963) foi escolhido por 24 críticos, em eleição feita pela Folha, como o segundo melhor filme brasileiro de todos os tempos (o primeiro escolhido foi "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha).
Depois de presenciar a experiência da Vera Cruz, participar do apogeu das chanchadas, viver a aventura do cinema novo, adaptar Graciliano Ramos e Jorge Amado, mergulhar no psicodelismo e na contracultura, encontrar um cinema popular "autêntico" na umbanda e na música caipira, representar o Brasil num sem-número de festivais internacionais -depois de tudo isso, o diretor de "Memórias do Cárcere" busca recursos para filmar seu 17º longa-metragem, "Guerra e Liberdade - Castro Alves em São Paulo".
O filme marcará o retorno de Nelson Pereira a várias origens: à cidade de São Paulo, onde nasceu, à Faculdade de Direito do largo São Francisco, onde estudou e militou pelo Partido Comunista, e à literatura, sua permanente fonte de inspiração.
Nesta entrevista, realizada no escritório do diretor, no centro velho do Rio, ele falou à Folha sobre comunismo, drogas, Glauber Rocha e o sonho obstinado de fazer do cinema brasileiro uma atividade viável e prazerosa.

Folha - O sr. nasceu no Brás, em 1928, na época um bairro operário da cidade de São Paulo. Seu pai era um alfaiate. O que chegou primeiro em sua vida, o cinema ou o comunismo?
Nelson Pereira dos Santos -
Ah, os filmes vieram antes. Segundo a mitologia familiar, eu fui ao cinema ainda na barriga da minha mãe. No Brás, a alfaiataria de meu pai ficava em frente a um grande cinema, o Colombo, bem antigo, com frisas, camarotes... Eu frequentava bastante esse cinema. Meus pais eram uma espécie de cinéfilos, embora a palavra talvez não existisse, ou de "cinemeiros". Meu nome, inclusive, se deve a um filme sobre o almirante inglês Nelson que impressionou meu pai.
Folha - Qual é a sua lembrança mais remota de um filme?
Pereira dos Santos -
É a de um western, um filme fantástico que me impressionou muito. Eu era uma criança, não me recordo do título, mas me lembro da história. O herói passava por uma série de aventuras até chegar a um deserto que ele deveria atravessar para atingir a cidade onde havia deixado sua namorada. Quase morrendo, com sede, ele alcança um local que tem um poço d'água, com uma caveira, onde havia uma inscrição: "Quem beber desta água morrerá em poucas horas". Ele pára, e resolve beber da água, porque queria encontrar a mulher de seus sonhos, mesmo que morresse após. Ele bebe e chega à cidade, exaurido. É um domingo e há uma grande festa na igreja. O que ele vê, ali? Vê a namorada dele, a mesma por causa de quem tomou a água envenenada, e ela está casando-se com um outro homem. O herói então aproxima-se dela e morre aos pés da moça. É um melodrama extraordinário.
Folha - Como o sr. chegou ao cinema mesmo, ao estudo e à realização cinematográficos?
Pereira dos Santos -
Interessei-me pelo cinema mesmo antes de entrar para a Faculdade de Direito do largo São Francisco. No fim da Segunda Guerra, ressurgiram os clubes de cinema. A grande atividade cultural da época era o Clube de Cinema São Paulo, cujas vedetes eram Rubem Biáfora, Paulo Emilio e outros mais. Entrei no partido quase na mesma época, em 45, 46, com cerca de 17 anos. Pertencia à juventude comunista e, em decorrência da convivência com os grupos culturais dentro do partido, fui desenvolvendo afinidades com as artes, sobretudo o cinema. Logo cinema e comunismo se imbricaram.
Meu primeiro trabalho profissional no cinema foi como assistente de direção em "O Saci" (filme dirigido por Rodolfo Nanni em 1951-53). Mas antes eu havia feito um documentário, para mandar para o Congresso da Juventude, em 1950, que o partido organizara. Não havia no entanto muita relação entre o cinema e o Partido Comunista. O partido era uma militância, digamos, igual para todo mundo. O cinema seria mais uma coisa pessoal. Eu tinha também uma relação com o teatro. Participei do Grupo de Artistas Amadores, dirigido por Madalena Nicol, que revelou o Paulo Autran, e também do Grupo Experimental de Teatro, de Decio de Almeida Prado. Essas eram atividades não ligadas ao partido.
Em 1949, eu larguei a escola de direito e fui para Paris com uma bolsa de estudos do governo francês. O tempo em que eu fiquei em Paris, alguns meses, eu frequentava a Cinemateca Francesa. E era engraçado, porque o Paulo Emilio estava lá na cinemateca, mas era proibido falar com ele, porque ele era trotskista.
Folha - O sr. era stalinista?
Pereira dos Santos -
Era. Eu não sei direito o que eu era, mas eu recebia ordens assim... Trotskista é um perigo, diziam. Depois, contei para o Paulo Emilio sobre isso. Rimos muito. Acabei fazendo na cinemateca um curso de "realismo francês". Mas já em 49 o neo-realismo estava no auge, e era visto em São Paulo. Esse momento foi muito importante dentro do cinema. Foi uma revelação.
Folha - Em que sentido?
Pereira dos Santos -
Era a grande revelação de uma nova dimensão humana, que não se conhecia. A dieta do cinema americano era única, na época. De repente apareceu aquilo, e foi violento. Além disso, foi um momento de despertar para a possibilidade de fazer cinema no Brasil. Até então a idéia de ter que fazer cinema era muito complicada. Pensava-se que se deveria construir estúdio, importar grandes equipamentos, grandes técnicos e ter muito dinheiro. O neo-realismo demonstrava que o cinema emana das ruas, do próprio povo, e tal como ele é.
Folha - O sr. praticamente funda o neo-realismo no Brasil, com "Rio 40 Graus" e "Rio Zona Norte".
Pereira dos Santos -
"Rio Zona Norte" é um filme musical, é a história de um compositor do povo. Só que o filme já chegou ao neo-realismo, sim. Tinha muita influência, mas havia também uma outra relação. Em 49, conheci o Joris Ivens, cujos documentários eu admirava muito. Na minha cabeça, estava pensando em fazer cinema documentário. Ocorreu no entanto que, quando eu fiquei no Rio, depois de fazer "Agulha no Palheiro" (dirigido por Alex Viany em 1952), fui realizar o filme "Balança, Mas Não Cai" (de Paulo Vanderley, 1953), que era uma produção independente, e o estúdio ficava no bairro do Jacarezinho, onde existia a maior favela do Rio na época.
A produção teve problemas de recursos e parou. Fui obrigado a morar no estúdio, a dormir lá. Criei então amizade com o pessoal dali, os eletricistas, maquinistas que moravam no morro. Na solidariedade, eles me convidavam muitas vezes para matar a fome lá, comer um cabrito no fim-de-semana. Então, comecei a conviver com eles e pensei: "Mas eis o filme". Eu era um paulista na favela. O meu olhar era quase de um estranho, um estrangeiro. Eu disse: "Vou fazer um filme a partir daí, e a chave é o cinema italiano". Foi assim que surgiu "Rio 40 Graus".
Folha - É evidente que, na hora em que o sr. decidiu filmar esse universo da favela e utilizar as fontes do neo-realismo, pensou também sobre a dificuldade que seria registrar essa parte do Brasil de uma forma diferente da dos italianos. O sr. conseguiria reconstituir qual foi sua reflexão naquele momento sobre essa questão?
Pereira dos Santos -
Muito da minha descoberta do mundo, nos anos de juventude, passou pela literatura. O Brasil, para um paulista como eu, era um mundo muito pequeno, fechado, de relações familiares, amizades... Era por meio da literatura que a gente tinha uma visão do Brasil. Evidentemente, a grande verdade de tudo isso é Jorge Amado, na época um escritor proibido por causa da política e do sexo. Mas desde criança tive relações próximas com pessoas de outra camada social, não tinha problemas para me relacionar com... como é que a gente chama? Houve tantas variações, até chegar ao politicamente correto...
Folha - O povo, ou pobres, ou proletários, ou excluídos sociais...
Pereira dos Santos -
Isso, os ex-escravos, não tinha dificuldade em me relacionar com eles.
Folha - O mundo da pobreza paulista de então, meio proletária, não estaria mais próximo do universo do neo-realismo italiano do que aquele de uma favela carioca?
Pereira dos Santos -
Bem mais parecido, claro. A favela era um gueto cercado. A partir de dez da noite tinha polícia nas entradas do morro. E a favela estava também cercada pelos preconceitos da classe média, para a qual era um lugar onde só moravam marginais. Tanto que a minha surpresa foi descobrir que ali se encontravam famílias, trabalhadores e tal.
Folha - Não fora filmada nenhuma favela antes no Brasil?
Pereira dos Santos -
Sim, fora, mas favela de estúdio, um pouco romantizada pelo samba. Eu tinha esse desejo de mostrar que quem mora na favela é gente tão moralmente organizada quanto as pessoas que moram fora da favela. Essa era a idéia que me movia. Tanto é que "Rio Zona Norte" conta a história de quê? De um casamento, porque eu tenho, por exemplo, dois personagens: um é o marginal de tendência, tende a ser marginal, e o outro é o operário organizado etc. Naquela época, a favela era um ambiente semi-rural. Você pode reparar no filme que todas as casas têm um espaço, não estão grudadas umas nas outras. A maioria das casas tinha sempre um quintal, com alguma criação, uma hortaliça. As pessoas estavam reproduzindo condições de existência que tinham no campo, fora da cidade.
Folha - O sr. acha que, caso filmasse hoje numa favela, no Rio de Janeiro ou em outra cidade, encontraria que universo, que situação brasileira? Seria possível valer-se daquele lirismo social que se encontra em seu filme?
Pereira dos Santos -
Tenho a impressão de que eu encontraria a mesma realidade urbana, só que multiplicada. O tipo de preconceito contra o favelado também foi multiplicado hoje. Mas no fundo a favela é um lugar onde moram a família, os trabalhadores, que procuram resolver seu problema de moradia por conta própria, já que o Estado não resolve isso.
Quando filmei "Rio 40 Graus" a população de favelados era de 200 mil no Rio de Janeiro, na cidade inteira. Hoje, o Rio de Janeiro tem 13 milhões de habitantes, dos quais, acho, mais de 2 milhões vivem nessa situação, são oficialmente favelados. A globalização do crime, por meio do tráfico de drogas, também aumentou. A quantidade de marginais também aumentou, e com isso a violência policial. Mas já naquele tempo a favela era tratada como um gueto.
Às dez horas da noite, para entrar em favela, você tinha que mostrar documento, provar que tinha trabalho, exibir um contrato assinado por um patrão, carimbo, selo... Mas certamente não existem 2,5 milhões de bandidos nas favelas do Rio de Janeiro. E hoje as próprias comunidades faveladas têm as suas organizações, sem falar na presença das igrejas, não só a igreja protestante, mas a católica, fora os cultos das religiões populares também. Tudo isso, essas atitudes comunitárias e religiosas também contribuem, em alguma coisa, para o aperfeiçoamento do homem.
Folha - Como foi sua ruptura com o Partido Comunista?
Pereira dos Santos -
Foi um processo longo, que culminou por ocasião da minha descoberta do relatório Krushev, que revelou os crimes na URSS, e do qual eu tomei conhecimento em viagem à então Tchecoslováquia, que já vivia o período de degelo e onde vi a estátua de Stálin sendo desmontada. Coisa que o partido no Brasil dizia que era mentiroso, que era uma invenção da imprensa.
Em 56, as coisas se aceleraram e o que aconteceu? A "Imprensa Popular" começou a publicar cartas, depoimentos, entrevistas, mas essa discussão foi cortada, foi abortada pela direção geral. Um grupo grande se manifestou contra o fechamento da discussão. O comitê central, então, e foi o último contato que eu tive, disse: vamos estudar o caso e vocês serão convocados para uma nova reunião. Nunca mais fui convocado. E nunca mais apareci no partido... Mas fiquei com o estigma de pertencer ao partido. Passei 20 anos de ditadura com essa marca.


"Naquele tempo diziam assim: "O português não é uma língua cinematográfica' ou "o povo brasileiro não é cinematográfico'; era o preconceito racial: não podia ter crioulo na tela"



Folha - O sr. conheceu Graciliano Ramos?
Pereira dos Santos -
Não. Em 1952, eu vim para o Rio e houve um almoço dos intelectuais para o Jorge Amado, que estava voltando do exílio. Fui lá e vi o Graciliano, só que não tive coragem de conversar com ele, nem de chegar perto.
Tenho contudo uma história com o Graciliano, que é a seguinte: quando eu estava trabalhando em "O Saci", o Ruy Santos, que era do partido, me perguntou: "Você quer fazer um filme de livro do Graciliano"? Eu disse que sim: "São Bernardo". Ele ligou para o Graciliano, no interior de São Paulo, que concordou com a adaptação. Lá pelas tantas, eu me apaixonei pela Madalena, a mulher do Paulo Honório no livro, e achei que ela não podia morrer. Tomei essa decisão: ela vai fugir, vai abandonar o Paulo Honório. Aí o Ruy Santos falou: "Escreve uma carta para ver se o Graciliano concorda, porque ele é meio duro aí nas coisas". Então, escrevi uma carta, propondo essa modificação. A resposta foi, na primeira parte, muito dura: "Ou vocês fazem o meu romance, ou vocês esquecem, façam um filme aí com a história de vocês, não mexam na minha história".
Mas a segunda parte era mais ou menos assim: "Vocês estão vivendo os dias de hoje, então não são capazes de compreender a posição de uma mulher como a Madalena nos anos 30, uma mulher que queria educar o cabra, fazer o cabra aprender a ler e a escrever. Não havia condição para ela se expandir, viver a sua vida do jeito que pensava. Os caminhos estavam fechados para ela. Então, ela se suicida, e o suicídio faz com que Paulo Honório pare tudo e comece uma grande especulação sobre si mesmo, que é a origem do livro. Se ela não tivesse se matado, ele não teria parado para pensar e não teria pensado em escrever um livro, eu não teria escrito o livro e você também não teria a idéia de fazer um filme".
Folha - Em "Vidas Secas", sua primeira adaptação de Graciliano Ramos, o sr. vai praticamente consolidar um modelo de fotografia para o cinema brasileiro.
Pereira dos Santos -
Até quando fiz "Mandacaru Vermelho" (1959), o esquema fotográfico ainda era aquele do mexicano Gabriel Figueroa, de Hollywood, o uso de filtros etc. Você colocava o filtro e fazia aquelas nuvens enormes. Veio então o Luiz Carlos Barreto, com toda a novidade: lente nua, sem filtro, direto. Ele era fotógrafo da revista "O Cruzeiro", em que também trabalhava o francês Jean Manzon, que tinha trazido com ele toda a escola fotográfica do Cartier-Bresson. Eu colocava as minhas dificuldades encontradas durante o "Mandacaru" e o Luiz Carlos tinha resposta para isso. "Então, vamos experimentar?", ele dizia. "Fica o céu sem nuvem nenhuma, um branco." Basicamente, é fotografar a luz, não é?
Não iluminar um objeto para ser fotografado; fotografar a própria luz tal como ela se dá ali, como ela se apresenta -isso exigia um trabalho mais requintado de mise-en-scène: onde colocar as pessoas? E a caatinga é um ambiente feito para isso, porque é possível encontrar uma gradação infinita do preto até o branco estourado, passando por cinzas, pretos e brancos. Então, foi essa a idéia inicial do trabalho e deu certo.
Folha - Outro elemento importante em "Vidas Secas" é o uso do silêncio, quase que uma espécie de contraponto do subdesenvolvimento à incomunicabilidade de corte existencialista do cinema de Antonioni. O que o sr. quis dizer com esses tempos "mortos", quando nada se fala, e também com a escassez de música no filme?
Pereira dos Santos -
Quando fiz "Mandacaru Vermelho", tive condições de viver no sertão um bom período de tempo e de sentir isso. Esse processo de eliminação do lugar-comum, não é? O homem do Sul -eu como paulista, então, mais ainda- via o nordestino de uma forma bem folclórica. A gente confundia muito o nordestino com o baião. No próprio filme do Lima Barreto, "O Cangaceiro", quando o cara não está dando tiro, ele dança o baião e tem uma pessoa cantando.
Em "Vidas Secas", o Fabiano fala muito pouco, troca palavras raramente. E isso eu acho que é o grande retrato do despossuído. Ele é despossuído também da palavra. A mesma coisa com relação à mulher. A mulher não tinha naquela época o poder do discurso. Outra coisa: a música do sertão. Não existe tanto baião assim, tanta festa. É coisa rara. O som predominante é o som da natureza. O vento na caatinga é uma orquestra naqueles galhos todos, que combinam as folhas mais altas, mais baixas, os bichos, o tropel do gado, o galopar, o carro de boi...
Quando montei o filme, a gente achava que tinha a obrigação de fazer uma música de cabo a rabo. Mas não tinha a menor relação. Uma orquestra, seria impossível. Eu tinha gravado o som de um carro de boi e pensei: "Esse vai ser o som da abertura e do final do filme".
Folha - O sr. montou o "Barravento", primeiro longa de Glauber Rocha. Qual foi o seu pensamento mais sincero quando apareceu "Deus e o Diabo na Terra do Sol"?
Pereira dos Santos -
Ah! Foi realmente uma noite memorável. Aquilo pareceu transbordar a Terra. "Deus e o Diabo" ficou pronto em 64. Já era esperado que fosse uma revelação, uma sensação... Porque "Barravento" já tinha alguma coisa, e "Deus e Diabo", visto por alguns no copião, já era objeto de comentários antes da estréia. Acho que, com esse filme, Glauber se firma como realizador e como inventor de uma linguagem. Glauber fez uma síntese. Tinha muito Eisenstein na montagem. E tinha a Nouvelle Vague e Godard no "travelling", no movimento de câmera, no movimento circular. O "travelling" é uma questão de moral, dizia Godard. Foi realmente uma demonstração de poder de originalidade de Glauber Rocha, de sua capacidade de compor com todos esses estilos conhecidos.
Folha - Como se sente sendo chamado de "pai do cinema novo"?
Pereira dos Santos -
Num debate recente, eu disse: "Não tenho nada com isso, porque fui cooptado por vocês. Já entrei no cinema novo, não fiz o cinema novo". O cinema novo foi mostrado diferentemente por vários criadores, cada um com o seu potencial de linguagem, de influência. Foi um cinema muito misturado, de muitas tendências, muito rico. "cinema novo" ficou sendo aquele rótulo para fora.
Folha - O sr. diz "rótulo para fora" porque foi um cinema que vendeu uma imagem do Brasil no exterior?
Pereira dos Santos -
Exato. E também para o próprio Brasil. Foi o efeito bumerangue: foi para o exterior e voltou. Disseram: "Ah! existe cinema no Brasil". O que eu acho é que os diretores do cinema novo e eu, todos bebemos na mesma fonte. O cinema não vive só do cinema, vive de um contexto cultural mais amplo. Nós todos estávamos embebidos daquela geração anterior dos escritores, dos romancistas, da Semana de Arte Moderna, dos grandes pintores, Di Cavalcanti, Pancetti, de Villa-Lobos, tudo isso estava na cabeça da gente, sem falar em Euclides da Cunha, Gilberto Freyre etc. Era a permanente busca dessa identidade brasileira. O cinema novo cumpriu uma função histórica, que foi a de juntar essa herança cultural com o domínio da linguagem universal do cinema. Quer dizer, de um jeito ou de outro, cada um de nós sabia usar a linguagem, de uma forma moderna, original. Essa linguagem foi colocada a serviço da tradição cultural do modernismo, vamos dizer assim. O cinema novo é o modernismo no cinema. Em outras palavras também significa descolonização em todos os sentidos.
Folha - O que o sr. levantaria como os pontos positivos e os pontos negativos do cinema novo?
Pereira dos Santos -
Fazendo assim uma piada, brincando, eu acho que os filmes são as coisas boas. Agora, as entrevistas dos diretores, a teorização... Acho que a coisa positiva do cinema novo foi descolonizar o cinema. Hoje o jovem que vai fazer filme não precisa mais enfrentar aquela montanha de preconceitos e bobagens em relação ao cinema brasileiro. Meus alunos riem quando eu digo que naquele tempo diziam assim: "O português não é uma língua cinematográfica" ou "o povo brasileiro não é cinematográfico". Isso escondia aquele preconceito racial: não pode ter crioulo na tela, não pode ter mulata e não sei o quê. Hoje, nenhum jovem diretor precisa trabalhar primeiro contra isso para depois fazer o filme.
O cinema novo teve esse aspecto liberador, mas também originou uma produção de filmes chamados autorais, que era o exagero da posição autoral. Veio uma porção de filmes com aquele discurso autoritário do diretor. Um cinema sem condição de dialogar, de discutir com o outro.
Folha - O sr. veria no seu próprio cinema algum exemplo disso?
Pereira dos Santos -
Não, acho que não. Tive uma atitude mais de ironia, não é? Filmes como "Fome de Amor", "Azyllo Muito Louco", "Quem é Beta", eu os vejo como um passeio, uma licença que me dei para fazer uma especulação com a linguagem de cinema.
Folha - Uma das críticas que se faz hoje em dia ao cinema novo é que ele acabou virando uma "panela", um grupo que isolou ou discriminou outras tendências. Uma das brigas mais notórias foi com os chamados "undergrounds" ou marginais. Como foi a sua relação com esse cinema, que surgiu no fim dos anos 60 já como uma reação ao cinema novo?
Pereira dos Santos -
Quando apareceu o primeiro filme do Julinho (Bressane), conversei com ele entusiasmado. Sempre fui muito receptivo ao que aparece, até hoje, porque o cinema brasileiro tem que engrossar seus fronts. Até por uma questão de autodefesa e por admirar aquele que escolhe esse "métier" e que o realiza de uma forma brilhante, inteligente.
Em Turim, dois anos atrás, houve uma grande retrospectiva do cinema novo e do cinema "underground" e surgiu essa questão da briga. Eu disse: "Olha, eu estou por fora, só agora é que estou sabendo que brigaram entre eles". A questão é a seguinte: eu tenho dez anos a mais do que a patota do Glauber. Do que esses outros, eu sou ainda dez anos mais velho. Não havia possibilidade de uma relação conflituosa.
Folha - Mas não havia um espírito corporativo no cinema novo? Não havia uma discriminação em relação a quem não era da turma?
Pereira dos Santos -
O que aconteceu foi natural. Quem "distribuía a carteirinha" do cinema novo era o Glauber. Era dada para todo mundo, porque ele sempre achava que quanto mais melhor, mais força a gente tinha. Mas havia uma exigência muito forte. O Glauber me desculpe, lá no céu, mas ele era um pouco inflexível. Tem muita gente que se sente excluída e que, na realidade, acho que fez filmes que estavam perfeitamente de acordo com o cinema novo. Lembro de filmes muito bons que não foram incluídos.
Folha - O sr. falou de seu entusiasmo pelo primeiro Bressane. E Rogério Sganzerla?
Pereira dos Santos -
"O Bandido da Luz Vermelha" é um clássico. Revi recentemente e continua atualíssimo, impressionante. E com que liberdade ele realizou o filme. Não tem nenhum convencionalismo, nenhuma adesão, nenhuma visão oficial da história do crime. É muito interessante até hoje, ele é atual por isso. Não é maniqueísta, tem uma visão humana profunda.
Folha - O cinema que o sr. fez a partir do final dos anos 60 e começo dos 70 também fugia bastante do ideário inicial do cinema novo. É uma fase menos engajada e mais delirante, alegórica, erótica. Essa atitude era uma maneira de reagir à falta de canais políticos? O sr. participou daquele processo de liberação dos costumes, de abertura das "portas da percepção"?
Pereira dos Santos -
Ah! Isso veio depois. Era uma situação-limite. Existia uma censura violenta, eu não tinha muita saída para continuar aquele cinema de "Vidas Secas" e, por outro lado, eu já estava muito condicionado. Tinha que ter o prazer de fazer um filme que fosse realmente uma saída para a minha cabeça, para o meu íntimo. Nessa situação, veio "Fome de Amor", que era uma adaptação literária do conto de Guilherme Figueiredo. Na mesma época, recebi uma bolsa para ir aos Estados Unidos e ficar dois meses lá, conhecendo o país. Quando comecei a filmar, tinha conhecido toda aquela turma do "underground", o Jonas Meklas, o Stan Brakhage. Pena que o trailer de "Fome de Amor" tenha se perdido. Eu fiz o trailer com cortes assim, de feitio "underground", ele tinha no máximo oito fotogramas. Bem, nessa ida aos EUA, conheci a contracultura americana, a droga, a luta contra a Guerra do Vietnã... Toda aquela revolta da juventude, aquela incongruência de uma juventude vivendo numa sociedade riquíssima e lendo Mao Tse-tung. A linha de "Fome de Amor" é isso.
Folha - Nessa época, o sr. "desbundou", como se dizia?
Pereira dos Santos -
Não, o "Fome de Amor" era ainda a época do álcool. As drogas ainda eram uma coisa muito reduzida. Uma parte da equipe e tal utilizava, mas ainda não era geral. Depois teve o "Azyllo Muito Louco", e a coisa começou a aparecer.
Folha - Qual era a droga que se consumia?
Pereira dos Santos -
Maconha. Mas eu, pessoalmente, já estava velho, carcomido, para tanto.
Folha - O sr. chegou a experimentar LSD?
Pereira dos Santos -
Não, não tomei.
Folha - O sr. se apaixonou por alguma atriz de seus filmes?
Pereira dos Santos -
Faz tanto tempo que eu já esqueci. Você tem que ter uma relação muito boa, muito correta de trabalho, não é? Distinguir um trabalho profissional dessa relação de companheirismo, de "jouissance" -como diz o francês com essa palavra muito chique-, de "jouissance" da vida. Mas em geral a relação permanecia na esfera do trabalho. Elas eram companheiras... Puxa, a Leila Diniz. Foi um prazer enorme trabalhar com ela.


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