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A vida não é tão bela assim
CONTARDO CALLIGARIS
especial para a Folha
"Central do Brasil" e "A Vida É
Bela" são aparentemente os mais
sérios candidatos ao Oscar para
melhor filme estrangeiro. E são
comparados constantemente por
causa da (falsa) impressão de que
teriam uma temática comum. Melhor dito, o "charme" dos dois
filmes se originaria, por exemplo,
de uma mesma ternura diante do
sofrimento infantil. Quase para
confirmar essa relação, o destino
fez a extraordinária coincidência
dos nomes dos protagonistas: dois
meninos que se chamam Josué e
duas mulheres (mãe ou "ersatz"
da mãe) que se chamam Dora.
Ora, o que faz a diferença (grande) entre os dois Josués não é tanto a mãe, quanto o pai. O Josué de
"Central do Brasil" passa o filme
perdidamente à procura de um pai
bêbado, fugidio e sobretudo fantasma. O Josué da "A Vida É Bela" teria, ao que parece, o melhor
pai possível, herói protetor do sorriso infantil.
Agora, imagine um pouco. Você
chega a uma esquina qualquer de
São Paulo, digamos Campinas
com a Paulista. Sinal fechado: você
pára o carro e eis que se aproxima
um grupo de meninos e meninas
tentando vender chiclete ou Diamante Negro derretido, ou simplesmente pedindo esmola. São
tristes, pobres, eventualmente
agressivos. Por acaso você está
com suas crianças no carro, fecha
rapidamente os vidros elétricos
-pensando em todas as histórias,
algumas verdadeiras, de navalhas
ou cacos de vidro etc.- e olha para frente: nada de se enternecer.
Imagine que suas crianças não
sabem nada ainda das desigualdades da sociedade brasileira: como
você vai evitar para atrapalhar a
utopia tranquila e conciliada em
que prospera a felicidade de seus
rebentos? Você poderia esconder a
feiúra do mundo atrás de uma pequena ficção que seria a prova de
seu amor protetor: nessa ficção as
crianças lá fora não são pobres, famintas, tristes. Não! é tudo só um
jogo. Há o time da esmola e o time
da grana. O time da grana não deve abrir mão de nada, o da esmola
deve vender chicletes. Parece que
no fim de cada ano dá-se um prêmio. Sei lá, se não for um tanque,
então um carro blindado.
Naturalmente o pai das crianças
de rua lá fora também conta para
suas crianças que o país inteiro é
de fato o cenário de um grande jogo, melhor do que a própria Disneylândia -para a qual aliás não
precisa ir, pois já estamos vivendo
em uma gigantesca atração. Ele
acrescenta que elas são do time
que deve vender chiclete e pedir
dinheiro. Portanto não há diferenças sociais cruéis ou mesmo assassinas: se elas moram em um casebre de papelão com ratos e baratas, e a coisa parece um tanto desconfortável, é que o jogo deve ser
levado a sério. Por isso, aliás, a
gente se diverte tanto.
A analogia com "A Vida É Bela" não é forçada. No filme, há
uma cena em que criancinhas alemãs que estão visitando o campo
jogam de esconde-esconde. Ora,
deve haver ao menos um papai nazista que não quer atrapalhar as
jóias da infância com histórias de
extermínios e judeus. Para as
crianças que achassem o lugar um
pouco estranho, ele poderia contar que toda a parafernália de
opressão e morte é só o cenário de
um jogo, como para Josué.
Que beleza! Os dois pais, fora e
dentro do carro (ou então alemães
perseguidores e judeu perseguido), vão assim conseguir criar
crianças felizes, protegidas da
feiúra do mundo. Por cima dos
horrores produzidos pelos adultos, as crianças seguem jogando.
Não são esses os pais ideais?
O espectador de "A Vida É Bela" sai eventualmente sorrindo do
cinema. Mas frequentemente se
manifesta um mal-estar indefinido e, creio, justificado. Já seria
chato e problemático se o pai fantasioso de "A Vida É Bela" estivesse só protegendo o sorriso de
seu filho. Pois, com um pai assim,
o filho acaba com um sorriso de
cretino. Confinado em um conto
de fadas, ele não tem entendimento do mundo. É impedido de odiar
os que exterminam sua família e
condenado a amar só o pai, grande
artífice da mentira feliz que seria a
vida.
Pessoalmente, prefiro um pai
que permita que o filho tenha
acesso à realidade do mundo e que
saiba eventualmente aguentar a
perspectiva de não ser objeto de
um amor filial eterno e babaca.
Não é difícil entender que a invenção do jogo poupa ao pai de Josué
várias perguntas que seriam menos divertidas do que as investigações sobre os pontos ganhos ou
perdidos no dia. Por exemplo, Josué poderia perguntar para seu pai
o que ele fez (fora contar piadinhas) para evitar que o mundo se
fechasse em horror sobre sua família.
Mas há mais: o pai risonho de Josué está de fato protegendo não
seu filho, mas seu próprio assombroso narcisismo, ou seja, está
protegendo sua própria infância,
da qual nunca saiu e que ele espera
prolongar indefinidamente com a
ajuda de Josué. O filme, aliás, ganharia interesse ao ser considerado (contra suas intenções) como
uma amarga reflexão sobre a violência de um pretenso amor parental que transforma o filho em
instrumento do narcisismo do pai.
Nele se contempla como, às custas
do filho, o pai compra para si uma
chance de ir para a morte como se
fosse de brincadeira.
Ficaríamos aliviados se, na cena
final, a mãe pudesse dizer para Josué: não, meu filho, não ganhamos, de fato apanhamos feio. Estamos salvos só graças a muitos
outros, menos palhaços do que
teu pai.
Benigni não escapa ao que tem
de pior na tradição (se dá para
chamá-la assim) da comédia italiana. Segue cultivando a vinheta
exótica que, desde os anos 50, parece ter servido aos italianos como
imagem aceitável de si mesmos:
salvos não pelo gongo, mas pelo
ridículo.
Prefiro, decididamente, me perder pelo Nordeste, com o Josué de
"Central de Brasil". Com ele, há
bem mais chances de encontrar o
mundo como é, e talvez de mudá-lo.
Contardo Calligaris é psicanalista e ensaísta,
autor de "Hello Brasil" (Escuta) e "Crônicas do
Individualismo Cotidiano" (Ática).
E-mail: ccalligari@aol.com
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