São Paulo, Domingo, 21 de Março de 1999
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A vida não é tão bela assim

CONTARDO CALLIGARIS
especial para a Folha

"Central do Brasil" e "A Vida É Bela" são aparentemente os mais sérios candidatos ao Oscar para melhor filme estrangeiro. E são comparados constantemente por causa da (falsa) impressão de que teriam uma temática comum. Melhor dito, o "charme" dos dois filmes se originaria, por exemplo, de uma mesma ternura diante do sofrimento infantil. Quase para confirmar essa relação, o destino fez a extraordinária coincidência dos nomes dos protagonistas: dois meninos que se chamam Josué e duas mulheres (mãe ou "ersatz" da mãe) que se chamam Dora.
Ora, o que faz a diferença (grande) entre os dois Josués não é tanto a mãe, quanto o pai. O Josué de "Central do Brasil" passa o filme perdidamente à procura de um pai bêbado, fugidio e sobretudo fantasma. O Josué da "A Vida É Bela" teria, ao que parece, o melhor pai possível, herói protetor do sorriso infantil.
Agora, imagine um pouco. Você chega a uma esquina qualquer de São Paulo, digamos Campinas com a Paulista. Sinal fechado: você pára o carro e eis que se aproxima um grupo de meninos e meninas tentando vender chiclete ou Diamante Negro derretido, ou simplesmente pedindo esmola. São tristes, pobres, eventualmente agressivos. Por acaso você está com suas crianças no carro, fecha rapidamente os vidros elétricos -pensando em todas as histórias, algumas verdadeiras, de navalhas ou cacos de vidro etc.- e olha para frente: nada de se enternecer.
Imagine que suas crianças não sabem nada ainda das desigualdades da sociedade brasileira: como você vai evitar para atrapalhar a utopia tranquila e conciliada em que prospera a felicidade de seus rebentos? Você poderia esconder a feiúra do mundo atrás de uma pequena ficção que seria a prova de seu amor protetor: nessa ficção as crianças lá fora não são pobres, famintas, tristes. Não! é tudo só um jogo. Há o time da esmola e o time da grana. O time da grana não deve abrir mão de nada, o da esmola deve vender chicletes. Parece que no fim de cada ano dá-se um prêmio. Sei lá, se não for um tanque, então um carro blindado.
Naturalmente o pai das crianças de rua lá fora também conta para suas crianças que o país inteiro é de fato o cenário de um grande jogo, melhor do que a própria Disneylândia -para a qual aliás não precisa ir, pois já estamos vivendo em uma gigantesca atração. Ele acrescenta que elas são do time que deve vender chiclete e pedir dinheiro. Portanto não há diferenças sociais cruéis ou mesmo assassinas: se elas moram em um casebre de papelão com ratos e baratas, e a coisa parece um tanto desconfortável, é que o jogo deve ser levado a sério. Por isso, aliás, a gente se diverte tanto.
A analogia com "A Vida É Bela" não é forçada. No filme, há uma cena em que criancinhas alemãs que estão visitando o campo jogam de esconde-esconde. Ora, deve haver ao menos um papai nazista que não quer atrapalhar as jóias da infância com histórias de extermínios e judeus. Para as crianças que achassem o lugar um pouco estranho, ele poderia contar que toda a parafernália de opressão e morte é só o cenário de um jogo, como para Josué.
Que beleza! Os dois pais, fora e dentro do carro (ou então alemães perseguidores e judeu perseguido), vão assim conseguir criar crianças felizes, protegidas da feiúra do mundo. Por cima dos horrores produzidos pelos adultos, as crianças seguem jogando. Não são esses os pais ideais?
O espectador de "A Vida É Bela" sai eventualmente sorrindo do cinema. Mas frequentemente se manifesta um mal-estar indefinido e, creio, justificado. Já seria chato e problemático se o pai fantasioso de "A Vida É Bela" estivesse só protegendo o sorriso de seu filho. Pois, com um pai assim, o filho acaba com um sorriso de cretino. Confinado em um conto de fadas, ele não tem entendimento do mundo. É impedido de odiar os que exterminam sua família e condenado a amar só o pai, grande artífice da mentira feliz que seria a vida.
Pessoalmente, prefiro um pai que permita que o filho tenha acesso à realidade do mundo e que saiba eventualmente aguentar a perspectiva de não ser objeto de um amor filial eterno e babaca. Não é difícil entender que a invenção do jogo poupa ao pai de Josué várias perguntas que seriam menos divertidas do que as investigações sobre os pontos ganhos ou perdidos no dia. Por exemplo, Josué poderia perguntar para seu pai o que ele fez (fora contar piadinhas) para evitar que o mundo se fechasse em horror sobre sua família.
Mas há mais: o pai risonho de Josué está de fato protegendo não seu filho, mas seu próprio assombroso narcisismo, ou seja, está protegendo sua própria infância, da qual nunca saiu e que ele espera prolongar indefinidamente com a ajuda de Josué. O filme, aliás, ganharia interesse ao ser considerado (contra suas intenções) como uma amarga reflexão sobre a violência de um pretenso amor parental que transforma o filho em instrumento do narcisismo do pai. Nele se contempla como, às custas do filho, o pai compra para si uma chance de ir para a morte como se fosse de brincadeira.
Ficaríamos aliviados se, na cena final, a mãe pudesse dizer para Josué: não, meu filho, não ganhamos, de fato apanhamos feio. Estamos salvos só graças a muitos outros, menos palhaços do que teu pai.
Benigni não escapa ao que tem de pior na tradição (se dá para chamá-la assim) da comédia italiana. Segue cultivando a vinheta exótica que, desde os anos 50, parece ter servido aos italianos como imagem aceitável de si mesmos: salvos não pelo gongo, mas pelo ridículo.
Prefiro, decididamente, me perder pelo Nordeste, com o Josué de "Central de Brasil". Com ele, há bem mais chances de encontrar o mundo como é, e talvez de mudá-lo.


Contardo Calligaris é psicanalista e ensaísta, autor de "Hello Brasil" (Escuta) e "Crônicas do Individualismo Cotidiano" (Ática).
E-mail: ccalligari@aol.com




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