São Paulo, domingo, 21 de junho de 2009

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Autor de "Histórias da Moda", Didier Grumbach diz que grandes costureiros, como Saint Laurent, foram mais inovadores nas coleções de prêt-à-porter do que na alta-costura

TARCISIO D'ALMEIDA
ESPECIAL PARA A FOLHA,

Quando o prêt-à-porter emergia na cultura e na civilização francesas, no início da década de 1960, Didier Grumbach era adolescente: tinha 17 anos. Formou-se em direito, mas, por um erro de percurso, acabou seduzido pela indústria da moda.
Testemunha de uma época em que a hegemonia da tradição elitista da alta-costura começou a ser confrontada com o olhar criativo e visionário dos estilistas do prêt-à-porter, Grumbach acaba de ter seu livro "Histórias da Moda" publicado no Brasil. Em entrevista à Folha, afirmou que "sem megalomania e criatividade a moda não pode existir".
Em seu livro, a reflexão sobre vestimentas e moda remonta a períodos anteriores à noção moderna de moda, na qual esta se fundamenta a partir do século 19, sobretudo, com a invenção da alta-costura.
Para ele, a moda pode, por isso, colaborar para refletir sobre estruturas do cotidiano, das aparências, dos estilos, dos costumes, das etiquetas, dos gostos e consumo das sociedades. Esses temas, diz, podem contribuir para entender a atual configuração dos mercados de moda no mundo globalizado.
Na entrevista abaixo, ele também advoga em favor do livre espírito criativo da moda.

 

FOLHA - Como podemos pensar a relação entre roupa, moda, arte e sociedade?
DIDIER GRUMBACH
- A comparação constante entre moda e arte, tendo a alta-costura como parâmetro, é muito mais frágil e contestável do que com o prêt-à-porter nos dias atuais. Este último foi organizado como um sistema de franchising, permitindo ao criador se exprimir de maneira muito mais original. Quando a alta-costura era pujante e o prêt-à-porter não existia, cada costureiro tinha sua própria clientela, à qual ele tinha que se adaptar. Yves Saint Laurent era muito mais livre com suas criações, no ano de 1966, exprimindo-se a partir de suas coleções YSL Rive Gauche. Ele teve a possibilidade de inovar muito mais com o prêt-à-porter do que com sua alta-costura, que era destinada a um público burguês. O prêt-à-porter deu liberdade para os criadores da moda, pois o passado não era estimulante.

FOLHA - Quando o sr. fala de passado, quer dizer que não havia diretores de criação?
GRUMBACH
- Sim. Se observarmos os grandes costureiros e tomarmos como exemplo a Maison Jean Patou no seu período áureo, as coleções começavam a ser apresentadas de manhã e seguiam até a noite sem necessariamente terem um diretor artístico. Era normal ela comprar croquis externos, em particular de Christian Dior, e as clientes achavam normal comprar esses modelos de uma "maison" que não tinha diretor artístico. Aliás, esse questionamento era inexistente, pois era uma época em que a empresa era industrial, e não mais uma "maison" de criação. Para se ter uma ideia, em 1925 a Jean Patou tinha cem vendedoras e 30 provadores de roupas. Também podemos citar Madame Carven, que, em 1948, vendeu 9.000 peças de alta-costura -o que pode ser considerado uma produção industrial. Ou seja, a alta-costura sempre foi uma indústria, mas não uma indústria criativa. A idade de ouro da alta-costura é algo que nos apaixona, mas é como um sonho.

FOLHA - Inspirados no sociólogo alemão Norbert Elias (em "Os Estabelecidos e os Outsiders", ed. Jorge Zahar), podemos imaginar um confronto entre a tradição dos costureiros da alta-costura e a atitude visionária dos estilistas do prêt-à-porter?
GRUMBACH
- Hoje a ideia de que alta-costura serve de laboratório para o prêt-à-porter não se sustenta de modo nenhum. "Maisons" como Thierry Mugler, Montana e Jean-Paul Gaultier eram líderes do prêt-à-porter e foi na alta-costura que encontraram problemas com os quais nunca souberam lidar.

FOLHA - O sr. afirmou não existir uma moda de um único país, isto é, "moda da França", "moda do Brasil" etc. Mas, se pensarmos em termos de consumo, a China seria uma aposta para a moda do futuro, até mesmo em termos de criação?
GRUMBACH
- Não, não acredito que a moda chinesa seja a moda do futuro. A dificuldade é que a China não exporta nada, e o Ocidente importa tudo. Seria muito difícil para o mercado chinês concorrer, por exemplo, com a [rede espanhola de "fast fashion"] Zara, por exemplo. E tudo o que se refere à fabricação chinesa é muito complicado, pois é difícil ser, ao mesmo tempo, produtor e fornecedor de produtos baseados em mão de obra barata. Essa mudança de paradigma levaria anos. É o contrário do Japão, por exemplo, que abriu seus mercados ao mundo ocidental nos anos 1950, e a indústria do país pouco a pouco foi se constituindo e crescendo.

FOLHA - No caso do Brasil, quais são as dificuldades e forças em relação a esse mercado?
GRUMBACH
- O Brasil oferece o mesmo nível de dificuldade mecânica no que diz respeito às estações do ano, que não são coincidentes com as de outras regiões do globo. Isso resulta em uma logística complicada. É possível resolver progressivamente esse problema com um certo alinhamento entre as "maisons" por meio de coleções diferenciadas, que guardem uma certa referência a países longínquos -mas sem necessariamente manter uma visão folclórica ou extremamente regionalista de moda. O que é interessante nesse alinhamento é a possibilidade de uma "maison" francesa, por exemplo, poder adquirir produtos ou ter fornecedores e criadores brasileiros que possam desfilar nas semanas de moda de Paris, como foi o caso de Alexandre Herchcovitch. Acredito que em alguns anos, por conta da globalização, isso possa ser realizado, e de forma muito rápida. O que deverá acontecer numa próxima etapa é que criadores da nova geração de todo o mundo -que já entenderam a nova configuração do mercado internacional- poderão contribuir com coleções para Dior, Saint Laurent, Givenchy (e suas criações ficarão relacionadas a essas marcas). Algo que era impensável há alguns anos, mas totalmente possível na atual configuração mundial.

FOLHA - E quais são os desafios para os novos criadores? A moda se pautará pela tecnologia?
GRUMBACH
- A nova geração irá se inserir no mercado de uma maneira rara, pois a moda hoje é um fenômeno tecnológico -não é mais artesanato. Por exemplo, ela pode ser pensada em Paris, desenhada pela internet em outra cidade e produzida em qualquer parte do mundo, como em São Paulo. Isso é algo sensacional! Essa moda irá pautar uma indústria de ponta, pois é um novo modelo de gestão que todos tentam imitar. Trabalhar com criadores hoje é fundamental porque apenas usar o marketing como ferramenta não funciona mais. Um produto que é destinado somente ao mercado brasileiro não poderá ser exportado. Da mesma maneira que um produto direcionado apenas ao mercado francês não será exportado porque a moda é uma indústria de ponta e revolucionária -algo que ela não era há dez anos.

FOLHA - Há possibilidade de algum criador brasileiro desenvolver uma coleção para uma grife internacional, dentro da ideia de globalização, como acontece com o português Felipe Oliveira Baptista?
GRUMBACH
- Eu não estou familiarizado com o parque industrial têxtil brasileiro, mas acredito que é possível fazer várias alianças nesse contexto. Porque o Brasil tem o "savoir-faire" específico em alguns produtos, como moda praia, além do couro e do design de sapatos. Boas alianças podem ser estabelecidas porque existem criadores aptos a aconselhar tanto uma empresa chinesa quanto uma italiana, como a Max Mara -esse é o caso de Felipe Oliveira Baptista. Vivemos a globalização, em que não existem mais nacionalidades, e um brasileiro pode assumir o processo criativo de uma grife internacional, como é o caso de Francisco Costa na Calvin Klein. No mais, ninguém diria que Karl Lagerfeld é alemão e que Alaïa é tunisiano.

TARCISIO D'ALMEIDA é professor de moda na Universidade Anhembi Morumbi (SP). Colaboração e tradução de Marilane Borges .


HISTÓRIAS DA MODA

Autor: Didier Grumbach
Editora: Cosac Naify (tel. 0/xx/11/ 3218-1444)
Quanto: R$ 99 (456 págs.)




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