São Paulo, domingo, 21 de agosto de 2005

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A formação da Europa em livros de Jacques le Goff e Robert Darnton aponta as raízes da vontade que, com avanços e recuos, moldou um continente de fronteiras artificiais em um único bloco político e econômico

A utopia no mapa

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

Na conjuntura atual, em que a União Européia vive uma série de dificuldades -incorporação de novos membros, texto constitucional rejeitado pela França e pela Holanda etc.-, vale a pena refletir sobre as origens da Europa. Quando mais não seja para se ter uma perspectiva histórica de um projeto que, com todas as dificuldades, representa a realização de uma bela utopia.
Utilizo dois livros, com esse objetivo. Um deles é de Jacques le Goff ("L'Europe Est-Elle Née au Moyen-Âge?" [A Europa Nasceu na Idade Média?], 2003), um continuador da escola historiográfica francesa reunida em torno da revista "Annales" e um dos maiores medievalistas vivos. O outro livro, com o curioso título de "Os Dentes Falsos de George Washington - Um Guia Não Convencional para o Século 18" (Companhia das Letras), consiste de vários estudos sobre o Iluminismo. Seu autor é Robert Darnton, historiador norte-americano que se notabilizou por seus trabalhos com abordagem microhistórica.
Ambos os textos têm um ponto comum básico: o propósito explícito de sustentar uma tese, sem se refugiar na neutralidade do especialista, qualidade que os dois possuem em alto grau. Le Goff defende a formação da União Européia, a partir de suas raízes, com o mesmo ardor com que Darnton defende o ideário iluminista, vinculando-o aos valores atuais de liberdade, mesmo considerando que o Iluminismo é um típico fenômeno parisiense, de meados do século 18.
Historiador agnóstico, Le Goff sustenta que a Europa surgiu como entidade e tomou forma na Idade Média cristã. De fato, o continente não nasceu feito, por uma imposição geográfica, como as Américas ou a África. Tomado em sentido de continuidade geográfica cercada por massas oceânicas, um continente seria a Eurásia, todo extremamente heterogêneo, de qualquer ponto de vista que se queira encará-lo. Embora os gregos tenham criado a dualidade entre a Europa e a Ásia, diante da ameaça asiática representada pelo vasto Império Persa, ela não teve muito impacto, principalmente dada a criação de outro império, ainda mais vasto, ou seja, o romano. Nessa época -diz Le Goff- ninguém se proclamava europeu, e sim cidadão do Império Romano.
As invasões bárbaras não alteraram esse quadro, em que se destacava a unidade do mundo mediterrâneo, abrangendo a faixa européia em uma das margens e o norte da África, na outra. Os árabes, a partir do século 7º, romperam essa unidade, fazendo com que a Europa ocidental começasse a tomar contornos definidos. Isso, no curso do longo período, contendo épocas muito diversas, que se convencionou chamar de Idade Média.
Le Goff não chega a idealizar em bloco esses tempos, marcados pela fome, as epidemias e a pobreza. Por exemplo, tem palavras condenatórias ao império cristão de Carlos Magno (747-814), primeiro exemplo de uma perversão européia, de uma série de tentativas fracassadas de construir uma Europa baseada num só povo ou num império que passa por Carlos 5º, por Napoleão, e chega a um trágico momento com Hitler. Mas, ao falar especialmente do século 13, Le Goff vê nele os fundamentos da Europa, com a expansão urbana, que se destaca como centro de liberdades, e o surgimento das universidades -núcleo de estudos escolásticos e de uma nova categoria social, os intelectuais.

Estado de espírito
Dando um salto até certo ponto arbitrário no tempo, vamos encontrar o tema da Europa, associado ao cosmopolitismo, no livro citado de Darnton. Tal como Le Goff, Darnton assinala que a Europa não tem fronteiras naturais e pode ser tida, em certo sentido, como um estado de espírito, cujos valores de liberdade e igualdade o Iluminismo promoveu. Para Darnton, longe de estar na origem dos horrores que flagelaram a Europa até a metade do século 20, como sustentam pensadores da escola de Frankfurt, com Theodor Adorno à frente, o Iluminismo -não sem contradições e contracorrentes- constitui o ponto de partida dos princípios básicos que hoje estão no centro da Comunidade Européia.
Em sua época, esse movimento de idéias oferecia uma alternativa ao nacionalismo, que apenas se esboçava, dando conformação a um modo de existência pan-europeu, então chamado de cosmopolitismo. Circunscrito -é bem verdade- às elites, existia um mundo em que as pessoas se reconheciam como européias, não se preocupavam com fronteiras nacionais, não portavam passaportes e tinham no francês uma língua comum.
A partir de fins do século 18 e ao longo do século 19, em suas diversas e contraditórias vertentes, o nacionalismo entrou em cena. De um lado, nutriu o surgimento de novos Estados-nação e a derrubada de muitas cabeças coroadas. Mas, de outro, nutriu a Primeira Guerra Mundial e a irrupção trágica do nazifascismo, fazendo com que a idéia de Europa se eclipsasse e depois explodisse em pedaços, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial.
A perspectiva histórica, esboçada aqui muito sumariamente, indica como a formação de uma Europa unida é uma construção material e simbólica que tem raízes antigas, pontilhada por marchas e contramarchas. Sabemos hoje dos problemas e das dificuldades da União Européia, alguns cuja superação é viável, outros bem mais complicados, seja por força dos vícios internos -veja-se o racismo-, seja por força de ameaças externas, em que avulta o fenômeno do terrorismo.
Mas, pela primeira vez na história, a união da Europa não só se concretizou, como tem condições de se tornar uma realidade estável, pelos anos afora. A conversão em aliados, de dois países como a França e Alemanha -protagonistas do ódio recíproco e de carnificinas das duas últimas décadas do século 19 à Segunda Guerra Mundial- é um eloqüente exemplo do quanto se avançou no continente europeu, no âmbito do processo civilizatório.
Se muitas utopias do século 20 não passavam de miragens totalitárias e salvacionistas -felizmente hoje liqüidadas-, a União Européia representa, com relação a elas, o contraste vivo de uma utopia viável, num mundo marcado por muitas tragédias, num mundo em que, não sem razão, o ceticismo impera.


Boris Fausto é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 1930" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.

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