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A formação da Europa em livros de Jacques le Goff e Robert Darnton aponta as raízes da vontade que, com avanços e recuos, moldou um continente de fronteiras artificiais em um único bloco político e econômico
A utopia no mapa
BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA
Na conjuntura atual, em
que a União Européia vive
uma série de dificuldades
-incorporação de novos
membros, texto constitucional rejeitado pela França e pela Holanda
etc.-, vale a pena refletir sobre as
origens da Europa. Quando mais
não seja para se ter uma perspectiva
histórica de um projeto que, com todas as dificuldades, representa a realização de uma bela utopia.
Utilizo dois livros, com esse objetivo. Um deles é de Jacques le Goff
("L'Europe Est-Elle Née au Moyen-Âge?" [A Europa Nasceu na Idade
Média?], 2003), um continuador da
escola historiográfica francesa reunida em torno da revista "Annales" e
um dos maiores medievalistas vivos.
O outro livro, com o curioso título
de "Os Dentes Falsos de George
Washington - Um Guia Não Convencional para o Século 18" (Companhia das Letras), consiste de vários estudos sobre o Iluminismo.
Seu autor é Robert Darnton, historiador norte-americano que se notabilizou por seus trabalhos com abordagem microhistórica.
Ambos os textos têm um ponto
comum básico: o propósito explícito
de sustentar uma tese, sem se refugiar na neutralidade do especialista,
qualidade que os dois possuem em
alto grau. Le Goff defende a formação da União Européia, a partir de
suas raízes, com o mesmo ardor
com que Darnton defende o ideário
iluminista, vinculando-o aos valores
atuais de liberdade, mesmo considerando que o Iluminismo é um típico
fenômeno parisiense, de meados do
século 18.
Historiador agnóstico, Le Goff
sustenta que a Europa surgiu como
entidade e tomou forma na Idade
Média cristã. De fato, o continente
não nasceu feito, por uma imposição geográfica, como as Américas
ou a África. Tomado em sentido de
continuidade geográfica cercada por
massas oceânicas, um continente seria a Eurásia, todo extremamente
heterogêneo, de qualquer ponto de
vista que se queira encará-lo. Embora os gregos tenham criado a dualidade entre a Europa e a Ásia, diante
da ameaça asiática representada pelo vasto Império Persa, ela não teve
muito impacto, principalmente dada a criação de outro império, ainda
mais vasto, ou seja, o romano. Nessa
época -diz Le Goff- ninguém se
proclamava europeu, e sim cidadão
do Império Romano.
As invasões bárbaras não alteraram esse quadro, em que se destacava a unidade do mundo mediterrâneo, abrangendo a faixa européia
em uma das margens e o norte da
África, na outra. Os árabes, a partir
do século 7º, romperam essa unidade, fazendo com que a Europa ocidental começasse a tomar contornos
definidos. Isso, no curso do longo
período, contendo épocas muito diversas, que se convencionou chamar
de Idade Média.
Le Goff não chega a idealizar em
bloco esses tempos, marcados pela
fome, as epidemias e a pobreza. Por
exemplo, tem palavras condenatórias ao império cristão de Carlos
Magno (747-814), primeiro exemplo
de uma perversão européia, de uma
série de tentativas fracassadas de
construir uma Europa baseada num
só povo ou num império que passa
por Carlos 5º, por Napoleão, e chega
a um trágico momento com Hitler.
Mas, ao falar especialmente do século 13, Le Goff vê nele os fundamentos
da Europa, com a expansão urbana,
que se destaca como centro de liberdades, e o surgimento das universidades -núcleo de estudos escolásticos e de uma nova categoria social,
os intelectuais.
Estado de espírito
Dando um salto até certo ponto arbitrário no tempo, vamos encontrar
o tema da Europa, associado ao cosmopolitismo, no livro citado de
Darnton. Tal como Le Goff, Darnton
assinala que a Europa não tem fronteiras naturais e pode ser tida, em
certo sentido, como um estado de
espírito, cujos valores de liberdade e
igualdade o Iluminismo promoveu.
Para Darnton, longe de estar na origem dos horrores que flagelaram a
Europa até a metade do século 20,
como sustentam pensadores da escola de Frankfurt, com Theodor
Adorno à frente, o Iluminismo
-não sem contradições e contracorrentes- constitui o ponto de
partida dos princípios básicos que
hoje estão no centro da Comunidade Européia.
Em sua época, esse movimento de
idéias oferecia uma alternativa ao
nacionalismo, que apenas se esboçava, dando conformação a um modo
de existência pan-europeu, então
chamado de cosmopolitismo. Circunscrito -é bem verdade- às elites, existia um mundo em que as
pessoas se reconheciam como européias, não se preocupavam com
fronteiras nacionais, não portavam
passaportes e tinham no francês
uma língua comum.
A partir de fins do século 18 e ao
longo do século 19, em suas diversas
e contraditórias vertentes, o nacionalismo entrou em cena. De um lado, nutriu o surgimento de novos
Estados-nação e a derrubada de
muitas cabeças coroadas. Mas, de
outro, nutriu a Primeira Guerra
Mundial e a irrupção trágica do nazifascismo, fazendo com que a idéia
de Europa se eclipsasse e depois explodisse em pedaços, com a eclosão
da Segunda Guerra Mundial.
A perspectiva histórica, esboçada
aqui muito sumariamente, indica
como a formação de uma Europa
unida é uma construção material e
simbólica que tem raízes antigas,
pontilhada por marchas e contramarchas. Sabemos hoje dos problemas e das dificuldades da União Européia, alguns cuja superação é viável, outros bem mais complicados,
seja por força dos vícios internos
-veja-se o racismo-, seja por força de ameaças externas, em que
avulta o fenômeno do terrorismo.
Mas, pela primeira vez na história,
a união da Europa não só se concretizou, como tem condições de se tornar uma realidade estável, pelos
anos afora. A conversão em aliados,
de dois países como a França e Alemanha -protagonistas do ódio recíproco e de carnificinas das duas últimas décadas do século 19 à Segunda Guerra Mundial- é um eloqüente exemplo do quanto se avançou no
continente europeu, no âmbito do
processo civilizatório.
Se muitas utopias do século 20 não
passavam de miragens totalitárias e
salvacionistas -felizmente hoje liqüidadas-, a União Européia representa, com relação a elas, o contraste vivo de uma utopia viável,
num mundo marcado por muitas
tragédias, num mundo em que, não
sem razão, o ceticismo impera.
Boris Fausto é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A
Revolução de 1930" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente na seção
"Autores", do Mais!.
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