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+ política
Risos nas CPIs revelam que há luta política também no humor, e função social no deboche
Qual é a graça?
RENATO ESSENFELDER
EDITOR-ASSISTENTE DE SUPLEMENTOS
Do que riem Suas Excelências os parlamentares que
investigam o escândalo do
"mensalão" em Brasília? O
espectador, já atônito, redobra seu
espanto ao constatar os risos e gargalhadas que fatalmente irrompem,
sessão a sessão. Afinal, onde está a
comicidade da CPI?
Se para os espectadores a dúvida
permanece, entre parlamentares o
risível se renova a cada depoimento.
Delúbio Soares, ex-tesoureiro do PT,
chegou a ser chamado de "crucificado sorridente". Além de rir, ele causou risos com suas declarações, bem
como Jacinto Lamas, ex-tesoureiro
do PL, e Emerson Palmieri, "tesoureiro informal" do PTB.
Os protagonistas dessa comédia só
para iniciados, os deputados Roberto Jefferson (PTB) e José Dirceu
(PT), também tiveram seus momentos de "descontração". Jefferson gargalhou após citar a canção "Nervos
de Aço", de Lupicínio Rodrigues. E
fez piada sobre a possibilidade de
merecer -ou não- ir para o céu.
Dirceu riu dos próprios trejeitos
após gritar: "É mentira!", ao ver, pela
TV, o depoimento da ex-secretária
Fernanda Karina Sommagio, que o
incriminava. E, por sua vez, ouviu as
perturbadoras risadas de uma platéia que não aceitou sua declaração
de humildade: "Nunca fui arrogante
quando era ministro", disse, no
Conselho de Ética da Câmara.
Exemplos não faltam. Mas as provações de um "mar de lama", em tese, não são cômicas. Quando avaliamos os danos que a corrupção traz
ao país, as reações podem ir da ira às
lágrimas, passando longe do riso.
Essa é, contudo, uma avaliação
emotiva do problema. Henri Bergson (1859-1941) escreveu que comicidade e emoção são antagonistas:
não é possível rir do que nos causa
compaixão ou constrangimento.
Efetivamente, se considerarmos a
corrupção como crime, não riremos. Frios, analíticos, mais atentos a
questões regimentais e eleitorais, os
parlamentares estão liberados para a
comédia. E abusam dessa liberdade.
Espetacularização
O próprio constrangimento de
aparecer diante das câmeras rindo e
fazendo rir foi extinto. A obsessão da
sociedade contemporânea pelo riso
minou a capacidade subversiva do
ato. Em "História do Riso e do Escárnio" (ed. Unesp), Georges Minois
relata como, no século 20, "os meios
políticos conseguem exterminar o
cômico, tornando-se eles próprios
cômicos". Nessa história da comicidade, a lição dos monarcas aos políticos é a de não se sacralizarem para
não atraírem zombarias alheias.
Quando certos políticos, prossegue Minois, parecem mais grotescos
que suas marionetes, a força explosiva do humor se perde. Para ficar em
apenas um exemplo local, é como se
o presidente da Câmara, Severino
Cavalcanti (PP-PE), fosse ele mesmo
superior a qualquer paródia ao se
autoparodiar com suas declarações
e atos. Assim, se alguns o condenam
e vêem nele um drama, muitos outros o qualificam de "autêntico" e
"simpático", um personagem natural da comédia humana.
Ao contrário do que apregoam os
humoristas, existe, pois, humor a favor do establishment, que, zombando do poder que bem sabe zombar
de si, contribui para legitimá-lo.
Os risos são freqüentemente desejáveis, mas não gratuitos. É preciso
que alguém, ou algo, os provoque.
Bergson estabelece três condições
para que o riso frutifique: 1) Não há
comicidade fora daquilo que é humano em essência ou aparência; 2) o
riso se dirige à inteligência pura, é
inimigo da emoção; 3) o riso é um fenômeno social, precisa de um eco.
Para que o riso então se manifeste,
vale a regra de ouro: é cômica toda
situação em que uma rigidez excessiva de corpo, espírito ou caráter
contrastar com a elasticidade exigida pela sociedade. Nesse sentido, o
riso é um castigo que a sociedade
oferece aos membros que a ameaçam por sua incapacidade de agirem
como seres sociais. Não é um fenômeno, portanto, puramente estético, pois tem um objetivo pragmático: o de aperfeiçoar o grupo.
O episódio em que Dirceu declara
que nunca foi arrogante é esclarecedor. Após depoimento firme, permeado por expressões como "é
mentira, eu nego, não é verdade, eu
repilo", os parlamentares riem para
castigá-lo. Já quando Dirceu grita "é
mentira!" e ri da fala de Fernanda
Karina, ri da própria estultice, da rigidez dos próprios atos de fala.
Cabe lembrar que a comicidade
nada deve ao reino da moral. Seu
domínio é exclusivamente social.
Pouco importa se os investigados
mentem ou não, importa apenas o
fato de agirem como seres isolados.
Bergson também classifica de cômico todo incidente que chame nossa atenção para o físico de uma pessoa quando o que está em questão é
a moral. Por isso rimos de Roberto
Jefferson quando ele chega com o
olho roxo à CPI. Ou da ex-secretária
que deseja posar nua para financiar
o debate político de suas idéias.
Outros estratagemas, como repetições, inversões de papéis e transposições de idéias/situações de um tom
para outro, provocam o riso. As
CPIs abusam desse último recurso. É
o que fazem Delúbio Soares e Marcos Valério ao usar o eufemismo "dinheiro não-contabilizado" no lugar
de caixa-dois. "Exprimir honestamente uma idéia desonesta é geralmente cômico", sentencia Bergson.
Jefferson brinca com a inversão de
papéis -o acusado acusador- e
transpõe um enunciado popular, como a canção de Lupicínio, para o
contexto do "mar de lama". Por isso
a platéia ri, ora dele (castigado), ora
com ele (castigador).
Para Suas Excelências que estão
nessa platéia, rir é proveitoso por
"descolar" suas pessoas dos investigados. Riem dos corruptos os honestos, pois só o belo ri do feio.
Para os que não participam diretamente das comissões, a própria configuração da CPI, um mecanismo inserido na natureza, uma regulamentação automática da sociedade (orquestrada aos gritos de "pela ordem,
senhor presidente!"), pode ser engraçada quando despistamos a emoção e apelamos à razão. Podemos rir
sem culpa. Só não cabe permitir que
a banalização da comédia das CPIs
resulte em nada além de triste piada.
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