São Paulo, domingo, 21 de agosto de 2005

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+ política

Risos nas CPIs revelam que há luta política também no humor, e função social no deboche

Qual é a graça?

RENATO ESSENFELDER
EDITOR-ASSISTENTE DE SUPLEMENTOS

Do que riem Suas Excelências os parlamentares que investigam o escândalo do "mensalão" em Brasília? O espectador, já atônito, redobra seu espanto ao constatar os risos e gargalhadas que fatalmente irrompem, sessão a sessão. Afinal, onde está a comicidade da CPI?
Se para os espectadores a dúvida permanece, entre parlamentares o risível se renova a cada depoimento. Delúbio Soares, ex-tesoureiro do PT, chegou a ser chamado de "crucificado sorridente". Além de rir, ele causou risos com suas declarações, bem como Jacinto Lamas, ex-tesoureiro do PL, e Emerson Palmieri, "tesoureiro informal" do PTB.
Os protagonistas dessa comédia só para iniciados, os deputados Roberto Jefferson (PTB) e José Dirceu (PT), também tiveram seus momentos de "descontração". Jefferson gargalhou após citar a canção "Nervos de Aço", de Lupicínio Rodrigues. E fez piada sobre a possibilidade de merecer -ou não- ir para o céu.
Dirceu riu dos próprios trejeitos após gritar: "É mentira!", ao ver, pela TV, o depoimento da ex-secretária Fernanda Karina Sommagio, que o incriminava. E, por sua vez, ouviu as perturbadoras risadas de uma platéia que não aceitou sua declaração de humildade: "Nunca fui arrogante quando era ministro", disse, no Conselho de Ética da Câmara.
Exemplos não faltam. Mas as provações de um "mar de lama", em tese, não são cômicas. Quando avaliamos os danos que a corrupção traz ao país, as reações podem ir da ira às lágrimas, passando longe do riso.
Essa é, contudo, uma avaliação emotiva do problema. Henri Bergson (1859-1941) escreveu que comicidade e emoção são antagonistas: não é possível rir do que nos causa compaixão ou constrangimento. Efetivamente, se considerarmos a corrupção como crime, não riremos. Frios, analíticos, mais atentos a questões regimentais e eleitorais, os parlamentares estão liberados para a comédia. E abusam dessa liberdade.

Espetacularização
O próprio constrangimento de aparecer diante das câmeras rindo e fazendo rir foi extinto. A obsessão da sociedade contemporânea pelo riso minou a capacidade subversiva do ato. Em "História do Riso e do Escárnio" (ed. Unesp), Georges Minois relata como, no século 20, "os meios políticos conseguem exterminar o cômico, tornando-se eles próprios cômicos". Nessa história da comicidade, a lição dos monarcas aos políticos é a de não se sacralizarem para não atraírem zombarias alheias.
Quando certos políticos, prossegue Minois, parecem mais grotescos que suas marionetes, a força explosiva do humor se perde. Para ficar em apenas um exemplo local, é como se o presidente da Câmara, Severino Cavalcanti (PP-PE), fosse ele mesmo superior a qualquer paródia ao se autoparodiar com suas declarações e atos. Assim, se alguns o condenam e vêem nele um drama, muitos outros o qualificam de "autêntico" e "simpático", um personagem natural da comédia humana.
Ao contrário do que apregoam os humoristas, existe, pois, humor a favor do establishment, que, zombando do poder que bem sabe zombar de si, contribui para legitimá-lo.
Os risos são freqüentemente desejáveis, mas não gratuitos. É preciso que alguém, ou algo, os provoque. Bergson estabelece três condições para que o riso frutifique: 1) Não há comicidade fora daquilo que é humano em essência ou aparência; 2) o riso se dirige à inteligência pura, é inimigo da emoção; 3) o riso é um fenômeno social, precisa de um eco.
Para que o riso então se manifeste, vale a regra de ouro: é cômica toda situação em que uma rigidez excessiva de corpo, espírito ou caráter contrastar com a elasticidade exigida pela sociedade. Nesse sentido, o riso é um castigo que a sociedade oferece aos membros que a ameaçam por sua incapacidade de agirem como seres sociais. Não é um fenômeno, portanto, puramente estético, pois tem um objetivo pragmático: o de aperfeiçoar o grupo.
O episódio em que Dirceu declara que nunca foi arrogante é esclarecedor. Após depoimento firme, permeado por expressões como "é mentira, eu nego, não é verdade, eu repilo", os parlamentares riem para castigá-lo. Já quando Dirceu grita "é mentira!" e ri da fala de Fernanda Karina, ri da própria estultice, da rigidez dos próprios atos de fala.
Cabe lembrar que a comicidade nada deve ao reino da moral. Seu domínio é exclusivamente social. Pouco importa se os investigados mentem ou não, importa apenas o fato de agirem como seres isolados.
Bergson também classifica de cômico todo incidente que chame nossa atenção para o físico de uma pessoa quando o que está em questão é a moral. Por isso rimos de Roberto Jefferson quando ele chega com o olho roxo à CPI. Ou da ex-secretária que deseja posar nua para financiar o debate político de suas idéias.
Outros estratagemas, como repetições, inversões de papéis e transposições de idéias/situações de um tom para outro, provocam o riso. As CPIs abusam desse último recurso. É o que fazem Delúbio Soares e Marcos Valério ao usar o eufemismo "dinheiro não-contabilizado" no lugar de caixa-dois. "Exprimir honestamente uma idéia desonesta é geralmente cômico", sentencia Bergson.
Jefferson brinca com a inversão de papéis -o acusado acusador- e transpõe um enunciado popular, como a canção de Lupicínio, para o contexto do "mar de lama". Por isso a platéia ri, ora dele (castigado), ora com ele (castigador).
Para Suas Excelências que estão nessa platéia, rir é proveitoso por "descolar" suas pessoas dos investigados. Riem dos corruptos os honestos, pois só o belo ri do feio.
Para os que não participam diretamente das comissões, a própria configuração da CPI, um mecanismo inserido na natureza, uma regulamentação automática da sociedade (orquestrada aos gritos de "pela ordem, senhor presidente!"), pode ser engraçada quando despistamos a emoção e apelamos à razão. Podemos rir sem culpa. Só não cabe permitir que a banalização da comédia das CPIs resulte em nada além de triste piada.


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