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O LEGADO DE DEUS
DA REDAÇÃO
Levar o que os índios dizem sobre o mundo em seus mitos até
suas últimas conseqüências lógicas significa, diz Viveiros de
Castro, romper com a idéia ocidental de que há várias culturas e uma só
natureza, sobre a qual a ciência teria
acesso privilegiado.
Essa concepção de uma natureza
única, unificada, defende o antropólogo, é a decorrência, no lado da
criatura, da crença em um Deus único e criador. "A noção de natureza,
tal como ela funciona dentro da cultura científica contemporânea" é "o
resultado histórico de Deus".
Folha - Falar numa filosofia dos índios é dizer que eles são conscientes
do conteúdo dos mitos?
Eduardo Viveiros de Castro - Na verdade, estou interessado no solo pré-filosófico, nas intuições inaugurais
do pensamento indígena. Toda conceitualidade está enraizada num solo pré-conceitual de intuições e experiências fundamentais do pensamento humano. Estou interessado
em construir, projetar uma conceitualidade que corresponda a esse solo pré-conceitual indígena. Pensar
qual filosofia seria construída se os
índios tivessem tempo e interesse
em fazê-la (e que espero venham a
fazer). Qual é a conceitualidade virtual que está contida na experiência,
radicalmente diversa da nossa, dos
povos ameríndios?
Folha - Mas é só virtual? Ela não se
atualiza no mito?
Viveiros de Castro - Não é só virtual,
ela se atualiza no mito, mas certamente que o mito não é uma teoria
lógica, com axiomas, proposições
etc. A primeira coisa que tenho como questão é tentar repensar a noção de mito. Porque o mito é uma
noção filosófica. Mito é uma noção
criada pelos filósofos. É a filosofia
que se constitui contraproduzindo
um não-filosófico, que seria o mito.
É o discurso do "logos", da razão,
contra o "muthos", o mito, discurso
supostamente da não-razão, da revelação oracular, da autoridade mágica, fala monológica e monocrática,
enquanto a filosofia seria argumentativa, dialógica, democrática, política. Esse é o "mito" de origem da razão como se distinguindo do mito.
Vai junto com isso uma idéia curiosa -mas compartilhada igualmente por filósofos e antropólogos- de que a filosofia é uma característica do Ocidente. Ela tem carteira de identidade, certidão de nascimento, paisagem natal, berço
-Grécia, a pólis, por volta do século
5º. É essencialmente dali e desde então. Ao passo que o mito, ao contrário, seria consubstancial ao pensamento humano. O mito é de todos
(por isso não vale muito); a razão, só
de alguns (por isso é tão preciosa). O
mito teria surgido com o homem; a
filosofia com os gregos. E os ocidentais somos gregos.
Eu duvido dessa idéia. De que o
conceito de mito produzido pela filosofia grega possa ser transportado
tal qual para caracterizar todos os
"mitos" de todos os povos. Diria o
seguinte: se a filosofia grega produziu um conceito filosófico (e negativo) de mito, eu quero saber qual é o
conceito (positivo) de filosofia que o
mito ameríndio produziria.
Folha - Dá para dizer que é justamente isso que o conceito de mito na
filosofia sempre proibia? Não é como
se ela (nós) dissesse sempre do mito
(os outros): "Eles não sabem o que dizem"?
Viveiros de Castro - Sim... Nós sabemos que eles não sabem: perdoai-os,
senhores...
Folha - A própria antropologia faz
seu caminho por aí. Como se dissesse:
"Há uma lógica nesse mito desses primitivos, que maravilha, mas..."
Viveiros de Castro - Ela [essa lógica]
lhes escaparia, esse é o argumento-condição. Essa idéia de que os homens não sabem o que dizem quando contam os mitos, não é que ela seja falsa, o problema é que ela não é
geral o suficiente. É verdade, mas os
homens não sabem o que dizem
quando contam qualquer coisa, inclusive os filósofos e os antropólogos. Dizer que o mito exprime mais
o inconsciente do que o exprime a filosofia -me parece que esse é o
problema. Eu quero ver o contrário:
o que é que os índios querem dizer
quando contam os mitos, e não o
que dizem "sem querer" quando os
contam. Quero saber o que os mitos
dizem para eles (e não apenas para
nós) sobre o mundo, e não apenas
sobre os homens que os contam
-porque os mitos falam do mundo
e das coisas, é o que lhes interessa,
então é o que me interessa.
Folha - E sobre o mundo inclusive
nesses registros: teoria do conhecimento, ontologia?
Viveiros de Castro - Ontologias, por
favor, no plural deliberadamente
provocativo. Você pode falar de
epistemologias no plural, como se
fala de culturas no plural, mas "ontologia" é como "natureza", só tem
uma: é a Realidade, com "r" maiúsculo, e essa não tem plural. Não há
ontologias, só há uma realidade, e o
discurso ontológico é o discurso do
Um. Ora, eu quero saber como funcionaria o conceito de ontologia dos
"multiversos" sem Um das cosmologias indígenas.
Folha - Daí o sr. dizer que a própria
palavra "ontologia", sendo uma provocação, tem um problema, porque o
Ser não é o modelo, mas o Haver?
Viveiros de Castro - Evoquei aí uma
passagem particularmente curiosa
de um pensador [francês] hoje obscuro, mas que está sendo redescoberto, que é Gabriel Tarde [1843-1904]. Há um ensaio em que ele diz
que o problema da filosofia ocidental é o problema do verbo "ser", que
é um verbo solipsista, intransitivo.
Se tivéssemos começado com o "haver" -o "avoir", que é o "ter" ou
"haver", em francês-, em vez de
com o "ser", uma porção de dificuldades teriam sido evitadas. Quando
você diz ser, "eu sou", você não diz
mais nada. Quando você diz "eu tenho", coloca imediatamente a questão: tenho o quê? Pode-se ser sem
mais (é mesmo o modo eminente de
ser), mas não se pode ter-haver sem
ter alguma coisa. E portanto com o
Haver o outro já está dado. O ter coloca imediatamente a multiplicidade, enquanto o ser coloca apenas o
eu, perdido, isolado -que tem que
dar um pulo enorme para chegar ao
outro. Tarde dizia então que o "haver" daria uma metafísica mais interessante. Mas mesmo assim uso a
palavra "ontologia" para brecar uma
manobra freqüentemente usada
contra o pensamento indígena -de
que aquilo é uma fantasia, uma representação que não diz respeito à
Realidade, algo sobre o qual apenas
a ciência tem acesso.
O jogo é sempre de dois contra
um. Temos a natureza e a cultura,
eles têm só a cultura. Eles vêem as
coisas por meio de lentes culturais, e
a natureza deles é uma fantasia cultural. Nós temos a nossa cultura, temos nossas lentes mas também temos a nossa natureza, que é independente dela. Para evitar isso, falo
em ontologia, para enfatizar a noção
de realidade, de produção de realidade que o pensamento indígena
possui.
Folha - Dá a impressão que tudo aí é
parentesco.
Viveiros de Castro - Parentesco é a
palavra que damos na nossa tradição para a relacionalidade fundamental, digamos assim, a base fundamental da relacionalidade humana. É do parentesco que saem todas
as nossas metáforas da relação: a paternidade, a fraternidade, a terra-mãe, o rei-pai, o patrão, o padrinho,
o padroeiro, Adão, o genoma.
E quando você chega diante de sociedades para as quais tudo é relação
social, você fica com a impressão de
que tudo, inclusive o que nós mandaríamos para o departamento de física ou de zoologia, é questão de parentesco.
Folha - No texto do AmaZone o sr.
trata de Deus, de como ele continuou
entre nós depois de sua "morte", e de
como nunca esteve entre os índios, e
de sua relação com essas duas formas
distintas de pensamento.
Viveiros de Castro - Entendo a noção de natureza, tal como ela funciona dentro da cultura científica contemporânea, como o resultado histórico de Deus. É preciso que tenha
havido um grande Um Só do lado
"de lá", da sobrenatureza, para que a
natureza "do lado de cá" pudesse se
constituir como unidade. A distinção entre criador e criatura, que foi
fundamental na nossa tradição,
constitui o universo, o mundo da
criatura, como um mundo unificado, a natureza.
Num mundo que nunca teve Deus,
você tampouco terá essa natureza
una, unificada, e racionalizada. A
ciência é filha do monoteísmo. Os
politeísmos ou, mais ainda, os "poliateísmos" indígenas projetam multi-versos, eles são refratários à idéia
de um uni-verso, precisamente, que
correspondesse a um Criador. De fato, Deus desapareceu da ideologia
dominante, da ideologia científica,
mas é porque no fundo ele não precisa mais estar aí. Sua missão está
cumprida, do ponto de vista histórico-filosófico: ele constituiu a natureza como domínio do cognoscível, do
racionalizável, a natureza una, total e
transcendente.
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