São Paulo, domingo, 21 de agosto de 2005

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O LEGADO DE DEUS

DA REDAÇÃO

Levar o que os índios dizem sobre o mundo em seus mitos até suas últimas conseqüências lógicas significa, diz Viveiros de Castro, romper com a idéia ocidental de que há várias culturas e uma só natureza, sobre a qual a ciência teria acesso privilegiado.
Essa concepção de uma natureza única, unificada, defende o antropólogo, é a decorrência, no lado da criatura, da crença em um Deus único e criador. "A noção de natureza, tal como ela funciona dentro da cultura científica contemporânea" é "o resultado histórico de Deus".

 

Folha - Falar numa filosofia dos índios é dizer que eles são conscientes do conteúdo dos mitos?
Eduardo Viveiros de Castro -
Na verdade, estou interessado no solo pré-filosófico, nas intuições inaugurais do pensamento indígena. Toda conceitualidade está enraizada num solo pré-conceitual de intuições e experiências fundamentais do pensamento humano. Estou interessado em construir, projetar uma conceitualidade que corresponda a esse solo pré-conceitual indígena. Pensar qual filosofia seria construída se os índios tivessem tempo e interesse em fazê-la (e que espero venham a fazer). Qual é a conceitualidade virtual que está contida na experiência, radicalmente diversa da nossa, dos povos ameríndios?

Folha - Mas é só virtual? Ela não se atualiza no mito?
Viveiros de Castro -
Não é só virtual, ela se atualiza no mito, mas certamente que o mito não é uma teoria lógica, com axiomas, proposições etc. A primeira coisa que tenho como questão é tentar repensar a noção de mito. Porque o mito é uma noção filosófica. Mito é uma noção criada pelos filósofos. É a filosofia que se constitui contraproduzindo um não-filosófico, que seria o mito. É o discurso do "logos", da razão, contra o "muthos", o mito, discurso supostamente da não-razão, da revelação oracular, da autoridade mágica, fala monológica e monocrática, enquanto a filosofia seria argumentativa, dialógica, democrática, política. Esse é o "mito" de origem da razão como se distinguindo do mito.
Vai junto com isso uma idéia curiosa -mas compartilhada igualmente por filósofos e antropólogos- de que a filosofia é uma característica do Ocidente. Ela tem carteira de identidade, certidão de nascimento, paisagem natal, berço -Grécia, a pólis, por volta do século 5º. É essencialmente dali e desde então. Ao passo que o mito, ao contrário, seria consubstancial ao pensamento humano. O mito é de todos (por isso não vale muito); a razão, só de alguns (por isso é tão preciosa). O mito teria surgido com o homem; a filosofia com os gregos. E os ocidentais somos gregos.
Eu duvido dessa idéia. De que o conceito de mito produzido pela filosofia grega possa ser transportado tal qual para caracterizar todos os "mitos" de todos os povos. Diria o seguinte: se a filosofia grega produziu um conceito filosófico (e negativo) de mito, eu quero saber qual é o conceito (positivo) de filosofia que o mito ameríndio produziria.

Folha - Dá para dizer que é justamente isso que o conceito de mito na filosofia sempre proibia? Não é como se ela (nós) dissesse sempre do mito (os outros): "Eles não sabem o que dizem"?
Viveiros de Castro -
Sim... Nós sabemos que eles não sabem: perdoai-os, senhores...

Folha - A própria antropologia faz seu caminho por aí. Como se dissesse: "Há uma lógica nesse mito desses primitivos, que maravilha, mas..."

Viveiros de Castro - Ela [essa lógica] lhes escaparia, esse é o argumento-condição. Essa idéia de que os homens não sabem o que dizem quando contam os mitos, não é que ela seja falsa, o problema é que ela não é geral o suficiente. É verdade, mas os homens não sabem o que dizem quando contam qualquer coisa, inclusive os filósofos e os antropólogos. Dizer que o mito exprime mais o inconsciente do que o exprime a filosofia -me parece que esse é o problema. Eu quero ver o contrário: o que é que os índios querem dizer quando contam os mitos, e não o que dizem "sem querer" quando os contam. Quero saber o que os mitos dizem para eles (e não apenas para nós) sobre o mundo, e não apenas sobre os homens que os contam -porque os mitos falam do mundo e das coisas, é o que lhes interessa, então é o que me interessa.

Folha - E sobre o mundo inclusive nesses registros: teoria do conhecimento, ontologia?
Viveiros de Castro -
Ontologias, por favor, no plural deliberadamente provocativo. Você pode falar de epistemologias no plural, como se fala de culturas no plural, mas "ontologia" é como "natureza", só tem uma: é a Realidade, com "r" maiúsculo, e essa não tem plural. Não há ontologias, só há uma realidade, e o discurso ontológico é o discurso do Um. Ora, eu quero saber como funcionaria o conceito de ontologia dos "multiversos" sem Um das cosmologias indígenas.

Folha - Daí o sr. dizer que a própria palavra "ontologia", sendo uma provocação, tem um problema, porque o Ser não é o modelo, mas o Haver?
Viveiros de Castro -
Evoquei aí uma passagem particularmente curiosa de um pensador [francês] hoje obscuro, mas que está sendo redescoberto, que é Gabriel Tarde [1843-1904]. Há um ensaio em que ele diz que o problema da filosofia ocidental é o problema do verbo "ser", que é um verbo solipsista, intransitivo. Se tivéssemos começado com o "haver" -o "avoir", que é o "ter" ou "haver", em francês-, em vez de com o "ser", uma porção de dificuldades teriam sido evitadas. Quando você diz ser, "eu sou", você não diz mais nada. Quando você diz "eu tenho", coloca imediatamente a questão: tenho o quê? Pode-se ser sem mais (é mesmo o modo eminente de ser), mas não se pode ter-haver sem ter alguma coisa. E portanto com o Haver o outro já está dado. O ter coloca imediatamente a multiplicidade, enquanto o ser coloca apenas o eu, perdido, isolado -que tem que dar um pulo enorme para chegar ao outro. Tarde dizia então que o "haver" daria uma metafísica mais interessante. Mas mesmo assim uso a palavra "ontologia" para brecar uma manobra freqüentemente usada contra o pensamento indígena -de que aquilo é uma fantasia, uma representação que não diz respeito à Realidade, algo sobre o qual apenas a ciência tem acesso.
O jogo é sempre de dois contra um. Temos a natureza e a cultura, eles têm só a cultura. Eles vêem as coisas por meio de lentes culturais, e a natureza deles é uma fantasia cultural. Nós temos a nossa cultura, temos nossas lentes mas também temos a nossa natureza, que é independente dela. Para evitar isso, falo em ontologia, para enfatizar a noção de realidade, de produção de realidade que o pensamento indígena possui.

Folha - Dá a impressão que tudo aí é parentesco.
Viveiros de Castro -
Parentesco é a palavra que damos na nossa tradição para a relacionalidade fundamental, digamos assim, a base fundamental da relacionalidade humana. É do parentesco que saem todas as nossas metáforas da relação: a paternidade, a fraternidade, a terra-mãe, o rei-pai, o patrão, o padrinho, o padroeiro, Adão, o genoma.
E quando você chega diante de sociedades para as quais tudo é relação social, você fica com a impressão de que tudo, inclusive o que nós mandaríamos para o departamento de física ou de zoologia, é questão de parentesco.

Folha - No texto do AmaZone o sr. trata de Deus, de como ele continuou entre nós depois de sua "morte", e de como nunca esteve entre os índios, e de sua relação com essas duas formas distintas de pensamento.
Viveiros de Castro -
Entendo a noção de natureza, tal como ela funciona dentro da cultura científica contemporânea, como o resultado histórico de Deus. É preciso que tenha havido um grande Um Só do lado "de lá", da sobrenatureza, para que a natureza "do lado de cá" pudesse se constituir como unidade. A distinção entre criador e criatura, que foi fundamental na nossa tradição, constitui o universo, o mundo da criatura, como um mundo unificado, a natureza.
Num mundo que nunca teve Deus, você tampouco terá essa natureza una, unificada, e racionalizada. A ciência é filha do monoteísmo. Os politeísmos ou, mais ainda, os "poliateísmos" indígenas projetam multi-versos, eles são refratários à idéia de um uni-verso, precisamente, que correspondesse a um Criador. De fato, Deus desapareceu da ideologia dominante, da ideologia científica, mas é porque no fundo ele não precisa mais estar aí. Sua missão está cumprida, do ponto de vista histórico-filosófico: ele constituiu a natureza como domínio do cognoscível, do racionalizável, a natureza una, total e transcendente.


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