São Paulo, domingo, 21 de agosto de 2005

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A DOMESTICAÇÃO DAS CRIATURAS

OSCAR CALAVIA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A realidade é isso que podemos ver; mas talvez não tenha sido sempre assim. Um estudo clássico de Erwin Panofsky [historiador da arte alemão, 1892-1968] ("A Perspectiva como Forma Simbólica", publicado em 1927) descreve como os pintores do Renascimento aprenderam a representá-la em relevo, tal como ela é, ou tal como ela é vista a olho nu. Aprenderam a representar ou ensinaram a ver? Essa mimese, inspirada nos avanços da ótica e nas linhas de fuga da arquitetura, foi uma novidade no seu momento.
A pintura do mundo greco-romano e da Idade Média sabia dar volume aos corpos e às vezes dotava de profundidade as paisagens, mas não conseguia integrar uns e outras; nela, o tamanho era um atributo da personagem e não um índice de sua situação no espaço; o espaço em si não passava de um suporte sobre o qual se acumulavam as figuras. O livro de Panofsky trata de uma façanha artística mas também nos põe na pista de uma mudança mais profunda.
A suposta falta de realismo dos pintores primitivos -como a de outros primitivos, alhures e outrora-, devia-se menos a uma deficiência técnica do que a uma diferença intelectual. Eles também pintavam as coisas como elas eram, mas tinham uma opinião diferente sobre o ser.
Sem atentar à extensão, registravam com minúcia os corpos, mais interessados na sua intensividade; entendiam suas obras -em geral destinadas a um uso cultual-, como seres substanciais, e não como simulacros de realidade. A perspectiva naturalista, com seu modo ilusionista de ordenar objetos no espaço, só é possível desde que o mundo seja percebido como uma "res extensa" unificada, que engloba os corpos e suas diferenças, uma natureza adequadamente objetiva e inerte sob o olhar de Deus.
A noção podia ser antiga -procede, no mínimo, da hiléia aristotélica-, mas seu prestígio era novo, e não pode se dizer que se devesse às especulações dos filósofos. Sim, talvez, à teima de todos esses obscuros disciplinadores de consciências -evangelizadores, párocos, inquisidores- que desde a oficialização do cristianismo tinham se dedicado a uma labuta gradual e persistente de dessubjetivação do mundo: animais, árvores, bosques, fontes, pedras podiam, até então, ser agentes por virtude própria ou como moradias de um espírito. O cristianismo foi fazendo deles objetos brutos, cuja eventual atividade só poderia emanar da única força ativa, a do Deus único.
O mesmo destino correspondia, evidentemente, aos deuses da Antigüidade, ídolos feitos de pau ou pedra, bonecos pintados. Durante séculos, num processo que se repetirá mil anos mais tarde com a evangelização das Américas, o cristianismo se empenha em eliminar esses outros sujeitos, ou pelo menos em cooptá-los sob a forma de algumas das figuras sagradas do novo panteão, os santos e as santas virgens que a teologia, à revelia da devoção popular, reduzia a caudatários de Deus. Pelo menos até que fosse possível -como no caso do protestantismo- suprimi-los definitivamente, para não deixar nada entre Deus e o fiel. Ou, em outros termos, entre a consciência humana (uma franquia da subjetividade divina) e a natureza material.
O declínio da magia, como mostrou Keith Thomas [autor de "Religião e o Declínio da Magia" (Cia. das Letras)], é executado por um desígnio religioso. Pouco restou para o século das Luzes além de trocar alguns nomes (sai Deus, entra a "Razão", por exemplo) em um mundo que a religião já havia ordenado de acordo com grandes categorias ainda hoje em vigor.
Não é por acaso que a invenção da perspectiva seja contemporânea dos episódios de caça às bruxas que grassam pela Europa dos séculos 16 e 17. A "witch-craze", como se sabe, acendeu muitas fogueiras, produziu copiosos sofrimentos e um debate intenso entre aqueles que entendiam a bruxaria e seus feitos (as metamorfoses, os vôos mágicos ao "sabbath", o canibalismo ritual etc.) como reais, e aqueles que os desconsideravam como desvarios, enganos, ilusões induzidas pela fraqueza física ou moral e, sobretudo, pela pregação irresponsável dos próprios caçadores de bruxas.
Toda essa interpretação racionalista, afinal vitoriosa, não fez senão reavivar a que durante séculos havia sido a doutrina oficial da igreja, segundo a qual as transformações do feiticeiro em coruja ou em lobo, seus vôos e seus encantamentos -o equivalente europeu da matéria xamânica de outras terras- só podiam ser ilusões produzidas pelo demônio, e não manifestações de um poder efetivo.
Depois de séculos de evangelização, o Diabo era a única exceção ao monopólio divino da subjetividade: nunca um páreo para Deus, mas autônomo o bastante para arcar com o ônus do mal. Suas dimensões tinham crescido em paralelo às de Deus: não era mais um espírito entre outros, mas o outro "Sujeito" do mundo; seus seguidores não podiam mais ser bruxos autônomos, mas uma seita diabólica organizada, uma contra-igreja com suas hierarquias, regras e dogmas.
A bruxaria do renascimento é uma recapitulação de toda a ontologia pré-cristã ou extra-cristã, pinçada na literatura clássica e no folclore contemporâneo e organizada segundo o padrão monárquico do Estado moderno. Uma contra religião que provavelmente, como demonstram estudos como os de Caro Baroja [antropólogo espanhol, 1914-1995] e [Carlo] Ginzburg [historiador italiano], existiu antes de tudo na mente dos seus perseguidores, para justificar uma solução final do velho animismo.
A caça às bruxas encarnou a quimera de destruir fisicamente um pensamento cujo principal inconveniente era o de ser ainda pensável; uma quimera, aliás, fundadora do mundo moderno, embora o relato edificante do Iluminismo a tenha remanejado para uma Idade Média de costas largas.
Dom Quixote, o romance de Cervantes cuja primeira parte é publicada em 1605, é também um dos fundadores do mundo moderno. De um lado, é um correlato literário da pintura perspectiva, onde a narração absoluta deixa passo a um relato mediado pelos sujeitos que o protagonizam, cada um com seu ponto de vista e sua intenção. De outro, evoca essas cosmologias exóticas em que a realidade visível encobre outras realidades, onde, tipicamente, os moinhos podem ser gigantes, e as onças, sujeitos de outra humanidade sob suas peles pintadas.
O drama do cavaleiro louco é que o ponto de vista individual, herdado de um Deus solitário que começa também a declinar, servirá doravante para contemplar um mundo único. Árido e tacanho, aliás. O seu trunfo, reservado para a segunda parte do livro, que aparecerá dez anos mais tarde, é que esse mundo só é único por consenso ou por imposição. Zombando das loucuras do cavaleiro, os outros personagens vêem-se envolvidos nelas e descobrem à revelia que elas fazem também sentido. Os antropólogos se voltam com freqüência a um exercício desse mesmo teor e descobrem que, um pouco por toda parte, da Itália de Leonardo à Amazônia, pontos de vista diversos podem fundar realidades diversas, e que o paganismo não está tão morto como parece.
A modernidade, filha ingrata do monoteísmo, tentou como ele excluir essas alternativas. Não o conseguiu totalmente -e cada um saberá se deve celebrá-lo ou lamentá-lo- talvez porque o olho humano tenha uma propensão anárquica e nada econômica à pluralidade.


Oscar Calavia é professor no departamento de antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina. É autor de "Fantasmas Falados" (Unicamp).

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