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A DOMESTICAÇÃO DAS CRIATURAS
OSCAR CALAVIA
ESPECIAL PARA A FOLHA
A realidade é isso que podemos ver; mas talvez não tenha sido sempre assim. Um
estudo clássico de Erwin Panofsky [historiador da arte alemão,
1892-1968] ("A Perspectiva como
Forma Simbólica", publicado em
1927) descreve como os pintores do
Renascimento aprenderam a representá-la em relevo, tal como ela é, ou
tal como ela é vista a olho nu. Aprenderam a representar ou ensinaram a
ver? Essa mimese, inspirada nos
avanços da ótica e nas linhas de fuga
da arquitetura, foi uma novidade no
seu momento.
A pintura do mundo greco-romano e da Idade Média sabia dar volume aos corpos e às vezes dotava de
profundidade as paisagens, mas não
conseguia integrar uns e outras; nela, o tamanho era um atributo da
personagem e não um índice de sua
situação no espaço; o espaço em si
não passava de um suporte sobre o
qual se acumulavam as figuras. O livro de Panofsky trata de uma façanha artística mas também nos põe
na pista de uma mudança mais profunda.
A suposta falta de realismo dos
pintores primitivos -como a de outros primitivos, alhures e outrora-,
devia-se menos a uma deficiência
técnica do que a uma diferença intelectual. Eles também pintavam as
coisas como elas eram, mas tinham
uma opinião diferente sobre o ser.
Sem atentar à extensão, registravam com minúcia os corpos, mais
interessados na sua intensividade;
entendiam suas obras -em geral
destinadas a um uso cultual-, como seres substanciais, e não como
simulacros de realidade. A perspectiva naturalista, com seu modo ilusionista de ordenar objetos no espaço, só é possível desde que o mundo
seja percebido como uma "res extensa" unificada, que engloba os
corpos e suas diferenças, uma natureza adequadamente objetiva e inerte sob o olhar de Deus.
A noção podia ser antiga -procede, no mínimo, da hiléia aristotélica-, mas seu prestígio era novo, e
não pode se dizer que se devesse às
especulações dos filósofos. Sim, talvez, à teima de todos esses obscuros
disciplinadores de consciências
-evangelizadores, párocos, inquisidores- que desde a oficialização
do cristianismo tinham se dedicado
a uma labuta gradual e persistente
de dessubjetivação do mundo: animais, árvores, bosques, fontes, pedras podiam, até então, ser agentes
por virtude própria ou como moradias de um espírito. O cristianismo
foi fazendo deles objetos brutos, cuja eventual atividade só poderia
emanar da única força ativa, a do
Deus único.
O mesmo destino correspondia,
evidentemente, aos deuses da Antigüidade, ídolos feitos de pau ou pedra, bonecos pintados. Durante séculos, num processo que se repetirá
mil anos mais tarde com a evangelização das Américas, o cristianismo
se empenha em eliminar esses outros sujeitos, ou pelo menos em
cooptá-los sob a forma de algumas
das figuras sagradas do novo panteão, os santos e as santas virgens
que a teologia, à revelia da devoção
popular, reduzia a caudatários de
Deus. Pelo menos até que fosse possível -como no caso do protestantismo- suprimi-los definitivamente, para não deixar nada entre Deus
e o fiel. Ou, em outros termos, entre
a consciência humana (uma franquia da subjetividade divina) e a natureza material.
O declínio da magia, como mostrou Keith Thomas [autor de "Religião e o Declínio da Magia" (Cia. das
Letras)], é executado por um desígnio religioso. Pouco restou para o
século das Luzes além de trocar alguns nomes (sai Deus, entra a "Razão", por exemplo) em um mundo
que a religião já havia ordenado de
acordo com grandes categorias ainda hoje em vigor.
Não é por acaso que a invenção da
perspectiva seja contemporânea dos
episódios de caça às bruxas que
grassam pela Europa dos séculos 16
e 17. A "witch-craze", como se sabe,
acendeu muitas fogueiras, produziu
copiosos sofrimentos e um debate
intenso entre aqueles que entendiam a bruxaria e seus feitos (as metamorfoses, os vôos mágicos ao
"sabbath", o canibalismo ritual etc.)
como reais, e aqueles que os desconsideravam como desvarios, enganos, ilusões induzidas pela fraqueza
física ou moral e, sobretudo, pela
pregação irresponsável dos próprios
caçadores de bruxas.
Toda essa interpretação racionalista, afinal vitoriosa, não fez senão
reavivar a que durante séculos havia
sido a doutrina oficial da igreja, segundo a qual as transformações do
feiticeiro em coruja ou em lobo, seus
vôos e seus encantamentos -o
equivalente europeu da matéria xamânica de outras terras- só podiam ser ilusões produzidas pelo demônio, e não manifestações de um
poder efetivo.
Depois de séculos de evangelização, o Diabo era a única exceção ao
monopólio divino da subjetividade:
nunca um páreo para Deus, mas autônomo o bastante para arcar com o
ônus do mal. Suas dimensões tinham crescido em paralelo às de
Deus: não era mais um espírito entre outros, mas o outro "Sujeito" do
mundo; seus seguidores não podiam mais ser bruxos autônomos,
mas uma seita diabólica organizada,
uma contra-igreja com suas hierarquias, regras e dogmas.
A bruxaria do renascimento é
uma recapitulação de toda a ontologia pré-cristã ou extra-cristã, pinçada na literatura clássica e no folclore
contemporâneo e organizada segundo o padrão monárquico do Estado moderno. Uma contra religião que provavelmente, como
demonstram estudos como os de
Caro Baroja [antropólogo espanhol,
1914-1995] e [Carlo] Ginzburg [historiador italiano], existiu antes de
tudo na mente dos seus perseguidores, para justificar uma solução final
do velho animismo.
A caça às bruxas encarnou a quimera de destruir fisicamente um
pensamento cujo principal inconveniente era o de ser ainda pensável;
uma quimera, aliás, fundadora do
mundo moderno, embora o relato
edificante do Iluminismo a tenha remanejado para uma Idade Média de
costas largas.
Dom Quixote, o romance de Cervantes cuja primeira parte é publicada em 1605, é também um dos fundadores do mundo moderno. De
um lado, é um correlato literário da
pintura perspectiva, onde a narração absoluta deixa passo a um relato
mediado pelos sujeitos que o protagonizam, cada um com seu ponto de
vista e sua intenção. De outro, evoca
essas cosmologias exóticas em que a
realidade visível encobre outras realidades, onde, tipicamente, os moinhos podem ser gigantes, e as onças,
sujeitos de outra humanidade sob
suas peles pintadas.
O drama do cavaleiro louco é que o
ponto de vista individual, herdado
de um Deus solitário que começa
também a declinar, servirá doravante para contemplar um mundo único. Árido e tacanho, aliás. O seu
trunfo, reservado para a segunda
parte do livro, que aparecerá dez
anos mais tarde, é que esse mundo
só é único por consenso ou por imposição. Zombando das loucuras do
cavaleiro, os outros personagens
vêem-se envolvidos nelas e descobrem à revelia que elas fazem também sentido. Os antropólogos se
voltam com freqüência a um exercício desse mesmo teor e descobrem
que, um pouco por toda parte, da
Itália de Leonardo à Amazônia, pontos de vista diversos podem fundar
realidades diversas, e que o paganismo não está tão morto como parece.
A modernidade, filha ingrata do
monoteísmo, tentou como ele excluir essas alternativas. Não o conseguiu totalmente -e cada um saberá
se deve celebrá-lo ou lamentá-lo-
talvez porque o olho humano tenha
uma propensão anárquica e nada
econômica à pluralidade.
Oscar Calavia é professor no departamento de antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina. É autor de "Fantasmas
Falados" (Unicamp).
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