São Paulo, domingo, 21 de setembro de 2008

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O anjo Stan Getz

HARUKI MURAKAMI

Stan Getz foi um homem complexo, emocionalmente problemático, cuja vida dificilmente poderia ser descrita como feliz ou tranqüila. Seu ego era como um trator, enquanto seu corpo era corroído constantemente por quantidades maciças de álcool e drogas.
Na verdade, praticamente não conheceu um momento de paz desde o dia em que nasceu até o dia de sua morte.
Quase sempre, feriu as mulheres de quem se aproximou, e seus amigos acabaram se afastando dele, enojados.
Porém, por mais violenta que possa ter sido a vida do Stan Getz de carne e osso, a doce magia que animava sua música, como o bater de asas de anjos, nunca se enfraqueceu. Quando pisava no palco, com o instrumento nas mãos, todo um novo mundo nascia.
Como o pobre rei Midas, cujo simples toque transformava tudo em ouro.
Podemos enxergar ouro, também, nas melodias brilhantes que estão no cerne da música de Getz. Por mais quente que fosse o refrão fora do tempo que ele estivesse criando, sempre era espontaneamente lírico e brilhante.
Como um cantor abençoado por Deus com uma voz perfeita, Getz manipulava seu sax tenor com virtuosidade absoluta, tecendo versos de clareza transcendente, sem palavras. A história do jazz já teve inúmeros saxofonistas, mas nenhum outro foi capaz de tocar com tanta intensidade e paixão quanto Getz, sem descambar para o sentimentalismo barato.
Ao longo dos anos já mergulhei e me perdi em muitos romances e me deixei enfeitiçar por muitas performances de jazz. Mas, para mim, F. Scott Fitzgerald sempre será sinônimo de "o romance" e Stan Getz, de "jazz". Pensando bem, há certas semelhanças entre os dois homens.

Crueldade
A arte de cada um deles tinha vários defeitos evidentes -isso é algo que deve ser dito claramente. Mas, se não tivessem pago o preço desses defeitos, é pouco provável que nos legassem obras de beleza tão duradoura.
De todas as obras de Getz, minha favorita é o álbum duplo gravado ao vivo no clube de jazz Storyville em 1951 [pelo selo Blue Note]. Getz realmente se supera nessa performance: cada faceta de sua arte é magnífica.
Experimente ouvir, por exemplo, a faixa intitulada "Move". A seção rítmica de Al Haig, Jimmy Rainey, Teddy Kotick e Tiny Kahn é perfeita, direta e cool, mas seu ritmo flui com a força incandescente de lava subterrânea.
Mesmo assim, Getz é de longe o melhor. O que explica essa força?
É que suas melodias despertam o bando de lobos famintos que cada um de nós esconde na alma. O hálito delas afunda na neve tão espessa, branca e linda que você tem a impressão de que poderia cortá-la com uma faca. É isso o que a música de Stan Getz nos permite contemplar: a crueldade fatídica oculta nas selvas impenetráveis de nossas almas.


A íntegra destes textos saiu na "Believer". Traduções de Clara Allain .


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