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O anjo Stan Getz
HARUKI MURAKAMI
Stan Getz foi um homem complexo,
emocionalmente
problemático, cuja
vida dificilmente
poderia ser descrita como feliz ou tranqüila. Seu ego era
como um trator, enquanto
seu corpo era corroído constantemente por quantidades
maciças de álcool e drogas.
Na verdade, praticamente
não conheceu um momento
de paz desde o dia em que
nasceu até o dia de sua morte.
Quase sempre, feriu as mulheres de quem se aproximou, e seus amigos acabaram
se afastando dele, enojados.
Porém, por mais violenta
que possa ter sido a vida do
Stan Getz de carne e osso, a
doce magia que animava sua
música, como o bater de asas
de anjos, nunca se enfraqueceu. Quando pisava no palco,
com o instrumento nas mãos,
todo um novo mundo nascia.
Como o pobre rei Midas,
cujo simples toque transformava tudo em ouro.
Podemos enxergar ouro,
também, nas melodias brilhantes que estão no cerne da
música de Getz. Por mais
quente que fosse o refrão fora
do tempo que ele estivesse
criando, sempre era espontaneamente lírico e brilhante.
Como um cantor abençoado por Deus com uma voz
perfeita, Getz manipulava
seu sax tenor com virtuosidade absoluta, tecendo versos
de clareza transcendente,
sem palavras. A história do
jazz já teve inúmeros saxofonistas, mas nenhum outro foi
capaz de tocar com tanta intensidade e paixão quanto
Getz, sem descambar para o
sentimentalismo barato.
Ao longo dos anos já mergulhei e me perdi em muitos
romances e me deixei enfeitiçar por muitas performances
de jazz. Mas, para mim, F.
Scott Fitzgerald sempre será
sinônimo de "o romance" e
Stan Getz, de "jazz". Pensando bem, há certas semelhanças entre os dois homens.
Crueldade
A arte de cada um deles tinha vários defeitos evidentes
-isso é algo que deve ser dito
claramente. Mas, se não tivessem pago o preço desses
defeitos, é pouco provável
que nos legassem obras de beleza tão duradoura.
De todas as obras de Getz,
minha favorita é o álbum duplo gravado ao vivo no clube
de jazz Storyville em 1951 [pelo selo Blue Note]. Getz realmente se supera nessa performance: cada faceta de sua
arte é magnífica.
Experimente ouvir, por
exemplo, a faixa intitulada
"Move". A seção rítmica de Al
Haig, Jimmy Rainey, Teddy
Kotick e Tiny Kahn é perfeita,
direta e cool, mas seu ritmo
flui com a força incandescente de lava subterrânea.
Mesmo assim, Getz é de
longe o melhor. O que explica
essa força?
É que suas melodias despertam o bando de lobos famintos que cada um de nós
esconde na alma. O hálito delas afunda na neve tão espessa, branca e linda que você
tem a impressão de que poderia cortá-la com uma faca.
É isso o que a música de
Stan Getz nos permite contemplar: a crueldade fatídica
oculta nas selvas impenetráveis de nossas almas.
A íntegra destes textos saiu na "Believer".
Traduções de Clara Allain .
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