São Paulo, domingo, 21 de outubro de 2001

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RAÍZES DA AMÉRICA

O ensaísta discute como o conflito altera o equilíbrio de forças e a geopolítica do continente

O AFEGANISTÃO E O NOVO MAPA DA EUROPA

por Timothy Garton Ash

A guerra muda tudo. A guerra contra o terrorismo, hoje sendo travada no Afeganistão, tem algo em comum com a Guerra Fria: ela afeta todas as partes do mundo e modifica suas políticas. De que modo ela irá redesenhar a Europa? Estive em oito países europeus nas últimas três semanas, tentando responder a essa pergunta por meio de conversas com líderes políticos, intelectuais, chefes guerrilheiros nas montanhas da Macedônia e pessoas comuns nas ruas de Madri, Paris, Varsóvia e outras capitais. Eis algumas coisas que poderão mudar.
A posição da Grã-Bretanha - Tony Blair faz Churchill diante do Roosevelt de Bush. A guerra mais uma vez confirma o relacionamento muito especial que os britânicos têm com os povos de língua inglesa "do outro lado da lagoa", como se diz de maneira reveladora, reduzindo o oceano Atlântico a algo mais estreito que o canal da Mancha.
Além disso, hoje a sensação é recíproca por parte de muitos americanos, o que nem sempre ocorreu (o ex-chanceler alemão Helmut Schmidt certa vez zombou que o "relacionamento especial" era tão especial que apenas um lado sabia de sua existência).
Isso aumentará a distância entre a Grã-Bretanha e a Europa continental, confirmando todas as suspeitas gaullistas de que os britânicos sempre colocam a América antes da Europa? Acho que não. Encontrei um número notavelmente pequeno dessas suspeitas, mesmo em Paris.
Por outro lado, provavelmente aumentará o peso diplomático do primeiro-ministro britânico na Europa, sua capacidade de agir como "ponte" entre a Europa e os Estados Unidos.
Além disso, ele mesmo claramente pretende que o "gancho" de esquerda seja acompanhado de um de direita. Depois de se comprometer totalmente com os Estados Unidos nesta guerra, ele espera usar seu prestígio reforçado para inserir a Grã-Bretanha mais completamente na Europa, especialmente na união monetária européia.
A posição da Rússia - Vladimir Putin é o outro político europeu que aproveitou a marola da história. Muitos esperavam que ele pedisse a aprovação do Ocidente para a guerra "antiterrorista" da Rússia na Tchetchênia e uma desaceleração da ampliação da Otan para incluir os países bálticos como preço de seu apoio à guerra contra Osama bin Laden e seus asseclas.
Em vez disso, usou esse apoio como trampolim de uma campanha estratégica para que a Rússia seja aceita como membro integral do Ocidente e da Europa. O secretário-geral da Otan, lorde Robertson, confirmou que em sua recente reunião com Putin o presidente russo deixou claro que, embora não aprecie a idéia de os países bálticos ingressarem na Otan, certamente não tentará impedir que isso ocorra.
Putin parece quase estar exagerando retoricamente a ameaça do terrorismo como novo inimigo comum para colocar a Rússia mais firmemente no Ocidente. Há muitas questões espinhosas para o Ocidente nesse caminho -principalmente, até onde devemos comprometer nossos padrões para incentivar a Rússia a seguir na direção certa?-, mas certamente é a direção certa.
A ampliação da Otan para o Leste - Numa reunião dos chefes de Estado de todos os países candidatos à Otan, em Sófia, lorde Robertson afirmou enfaticamente que a atual crise não vai reduzir o ritmo da ampliação. Uma mensagem do presidente Bush teve o mesmo teor. Isso me parece verossímil.
Esta guerra mostrou o que é a Otan -e o que não é. Por um lado, o artigo 5º do Tratado do Atlântico Norte foi invocado pela primeira vez. O ataque a um país membro é formalmente considerado um ataque a todos os membros. Por outro lado, vimos que o artigo 5º não significa que todos os países membros enviarão forças militares estreitamente coordenadas para a linha de frente; simplesmente significa que os países membros farão o que puderem e forem capazes de fazer, se e quando o país diretamente afetado lhes pedir. Se o terrorismo internacional é a nova grande ameaça, uma aliança mais ampla, porém ligeiramente mais frouxa, faz ainda mais sentido que antes.
A ampliação da União Européia - Infelizmente esta poderá ser bastante desacelerada. Os atentados de 11 de setembro fizeram o tópico da segurança interna -incluindo o policiamento em âmbito europeu, o controle de fronteiras, acordos de extradição entre países membros etc.- subir na agenda européia, impelido principalmente por países como a Espanha, que enfrenta sua própria ameaça terrorista com o movimento basco ETA. Como me indicou o ministro francês das Relações Exteriores, Hubert Védrine, isso poderá com efeito acrescentar mais uma série de exigências à lista já assustadora de coisas que os países da Europa Central e Oriental precisam fazer antes de poderem se unir à União Européia.
E será um conjunto de requisitos muito difícil para países com forças policiais, sistemas judiciários e alfândegas fracos e muitas vezes corruptos. Vislumbro a possibilidade deprimente de que a segunda ampliação da Otan para leste ocorra antes da primeira ampliação da União Européia.
Os Bálcãs - São incontáveis as vezes que ouvi pessoas dizerem que nos Bálcãs "comunidade internacional" significa os Estados Unidos. Mas hoje os Estados Unidos têm outras prioridades. Além disso, a tarefa num país como a Macedônia é complexa e não se encaixa com facilidade sob a rubrica "guerra contra o terrorismo". Ela envolve mediar e manter um acordo de paz com a guerrilha albanesa, que em outro contexto poderia ser descrita como terrorista. E de fato o é, pelos macedônios étnicos.
Explicando os acordos feitos para a anistia dos líderes da guerrilha albanesa, o presidente da Macedônia, Boris Trajkovski, me disse: "Assinei um acordo com o secretário-geral (da Otan), e o representante do secretário-geral assinou um acordo com os terroristas". Agora a Europa assumirá o peso dessa tarefa complexa, confusa e moralmente ambígua?
Atualmente um pequeno contingente de tropas alemãs está apoiando os monitores, e o chefe da política exterior da UE, Javier Solana, está lá quase toda semana.
Ainda duvido de que a União Européia esteja realmente pronta e seja capaz de cuidar de seu próprio quintal. Uma coisa, porém, é clara: é muito improvável que os Estados Unidos continuem solucionando os problemas da Europa, como fez na maior parte do século 20.
Uma política exterior européia? - Pode-se discutir isso em dois sentidos. De um lado, os mundos islâmico e árabe são o "exterior próximo" da Europa. E talvez existam 20 milhões de muçulmanos na Europa. Por isso há um interesse vital da Europa em abordar as causas subjacentes ao descontentamento de que se alimenta o terrorismo, seja entre palestinos, curdos ou argelinos. Essa crise deveria portanto catalisar uma ação coordenada no Oriente Médio e na África do Norte.
Por outro lado, a idéia esquerdista-gaullista de que a Europa deve ter uma abordagem muito diferente da dos Estados Unidos e talvez até se considerar uma superpotência rival deve parecer menos plausível e palatável numa época em que o Ocidente como um todo está sendo atacado. Se a consequência fosse uma política exterior européia mais ativa, porém complementando as abordagens americanas, mais que contradizendo, como fez a diplomacia de Blair na atual crise, seria um bom resultado de um mau negócio.
Esses são apenas alguns dos padrões no caleidoscópio europeu que a guerra contra o terrorismo modificou e poderá alterar ainda mais.
Indagado sobre sua visão da África, Bismarck fez uma famosa observação: "Aqui está a Rússia e aqui está a França, e nós estamos no meio. Esse é o meu mapa da África". O mundo mudou desde a época de Bismarck, e a Europa não é mais seu centro.
Hoje o mapa da Europa está sendo redesenhado no Afeganistão.


Timothy Garton Ash é diretor do Centro de Estudos Europeus no St. Anthony's College, em Oxford. Seu livro mais recente é "History of the Present".

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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