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RAÍZES DA AMÉRICA
Analistas têm diminuído a importância de seguidores rígidos do cristianismo
e do judaísmo no conflito
OS TRÊS FUNDAMENTALISMOS
por Sergio Paulo Rouanet
Usou-se muito a palavra "fundamentalismo" a
propósito dos terríveis acontecimentos de 11
de setembro, mas somente para designar o
fundamentalismo islâmico. Esse uso é correto, mas limitado. Se quisermos entender a dimensão
ideológica da crise, precisamos dar-nos conta de que há
três fundamentalismos envolvidos no conflito, e não
apenas um: o fundamentalismo islâmico, sem dúvida,
mas também o judaico e o cristão.
Em sua acepção mais geral, o fundamentalismo islâmico prega uma volta às origens religiosas do Islã e uma
reforma dos costumes e da sociedade segundo os preceitos da "sharia", da lei do Corão. O termo recobre
uma multiplicidade de tendências. Entre elas, há uma
orientação radical, que recorre à violência para atingir
seus fins. O fundamentalismo radical operou a princípio num quadro nacional. Foi o caso de movimentos
como o Al-Jihad, baseado no Egito, responsável pelo assassinato de Anwar Sadat, em 1981, e o GIA (Grupo Islâmico Armado), da Argélia, autor de inúmeros massacres. Mas, com o tempo, o fundamentalismo radical
passou a atuar num quadro internacional. O exemplo
mais espetacular é o Al Qaeda, dirigido por Osama bin
Laden, que quer fundar um califado pan-islâmico e tem
em seus quadros, entre outros, egípcios, jordanianos,
iemenitas e sauditas, além de pontos de apoio em quase
50 países.
O fundamentalismo judaico não se manifesta sob a
forma de uma fidelidade literal ao texto sagrado, pois a
interpretação rabínica da Torá sempre foi bastante livre. Mas se manifesta na ultra-ortodoxia -e nisso é semelhante aos demais fundamentalismos. Para o judeu
fundamentalista, a lei de Deus tem valor absoluto, valendo tanto na vida privada quanto na pública. O casamento visa unicamente à procriação, a educação dos filhos se esgota na educação religiosa, e devem-se evitar
contatos com pessoas alheias à própria comunidade.
Contra os judeus liberais, que propugnam a integração
com a sociedade local, os fundamentalistas cultivam
uma atitude sistemática de auto-segregação, tanto com
relação aos gentios quanto com relação a outras tendências do próprio judaísmo.
O fundamentalismo cristão tem uma vertente católica, o integrismo, que remonta ao antiliberalismo e ao
antimodernismo do "Syllabus", de Pio 9º. No entanto
foi no protestantismo norte-americano que o fundamentalismo floresceu. O próprio nome nasceu nos
EUA, a partir de uma série de fascículos publicados entre 1909 e 1915, em que pastores de várias denominações
relacionaram os "fundamentals" ou pontos fundamentais da fé cristã, dos quais nenhuma das igrejas poderia
se desviar. O principal desses pontos era a infalibilidade
da Bíblia. O fundamentalismo protestante expôs-se ao
ridículo mundial quando um professor secundário do
Estado de Tennessee foi processado por ter ensinado o
evolucionismo na escola, contrariando uma lei estadual. Mas os fundamentalistas continuam vivos e
atuantes. Durante a Guerra Fria, desfraldaram a bandeira do anticomunismo e hoje combatem o aborto e o
homossexualismo. Defendem um patriotismo messiânico, vendo a América como a nação eleita. A direita religiosa fundamentalista transformou-se numa irresistível força eleitoral. Seu poder já ultrapassa os Estados
Unidos. Muitas das seitas evangélicas e pentecostais
que hoje atuam no Brasil são ramificações do fundamentalismo norte-americano.
Direta ou indiretamente, os três fundamentalismos
estiveram presentes na tragédia do dia 11 de setembro e
em suas sequelas.
Na origem, está o conflito árabe-israelense, porque foi
principalmente na qualidade de "cúmplices" do Estado
de Israel que os americanos foram "punidos". Ora, esse
conflito está sendo conduzido em grande parte por facções fundamentalistas islâmicas (Hamas, que atua nos
territórios palestinos, Hizbollah, com base no Líbano) e
por fundamentalistas judeus, alguns atuando por meio
de organizações extremistas, como o Kach Kahane
Chai, que pretende restaurar o Estado de Israel tal como
descrito na Bíblia. O mínimo que se pode dizer é que esses dois fundamentalismos dificultam o processo de
paz. A irracionalidade do fundamentalismo muçulmano é óbvia, mas os judeus fundamentalistas, mesmo
quando não violentos, também não são exemplos de lucidez. Suas opiniões sobre temas gravíssimos, como os
limites territoriais do Estado de Israel e a questão correlata da legitimidade de determinados assentamentos,
são mais influenciadas pelas promessas feitas por Deus
aos patriarcas que pelas realidades contemporâneas do
conflito com os árabes. É o peso eleitoral dos partidos
religiosos ultra-ortodoxos que impossibilita a formação
de um governo estável de centro-esquerda, sem o qual
uma verdadeira negociação com os palestinos não pode
ser bem-sucedida.
As primeiras reações oficiais e populares aos atentados nos Estados Unidos deram a impressão de que entrara em cena um terceiro fundamentalismo, o cristão.
Os valores seculares que sempre caracterizaram a democracia americana pareciam estar sendo erodidos
com um fervor bíblico digno dos puritanos que chegaram à América no Mayflower. O presidente da maior
potência da Terra disse que o conflito que se aproximava será uma guerra monumental do bem contra o mal, e que Deus, cujo direito à neutralidade o presidente contestou, estava do lado dos americanos. Os
aiatolás do Pentágono não fizeram por menos: batizaram a operação antiterrorista de Justiça Infinita, termo
de origem claramente bíblica, porque só a justiça divina
pode ser considerada infinita. Em suma, a direita religiosa americana, sempre influente na vida política do
país, parecia ter tomado o poder. Talvez houvesse o dedo dos fundamentalistas até no superpatriotismo com
que a nação inteira reagiu à crise, porque vimos que para eles a América é a nação eleita: amar Deus e amar a
América são virtudes equivalentes.
Os três fundamentalismos têm em comum o tradicionalismo em questões morais e uma posição retrógrada
quanto ao estatuto da mulher. São puritanos e misóginos. Mas esse tradicionalismo não implica uma rejeição
em bloco da modernidade.
Todos eles aceitam a modernidade técnico-econômica. Os fundamentalistas islâmicos vêm de estratos sociais urbanos, muitos têm formação universitária, conhecem a fundo todos os segredos do capitalismo financeiro (têm contas na Suíça e jogam na Bolsa) e manejam a tecnologia militar mais sofisticada. Os pregadores fundamentalistas cristãos dominam todas as técnicas da comunicação de massas, falam em estádios gigantescos e alcançam audiências inimagináveis por
meio do rádio e da televisão. Os fundamentalistas judeus podem usar roupas e barbas do tempo do gueto,
mas muitos estão plenamente ligados aos circuitos financeiros do capitalismo moderno.
Em compensação, todos dão as costas à modernidade
política, cujas características de pluralismo e de respeito
aos direitos humanos são incompatíveis com a estrutura autoritária do fundamentalismo. E todos repudiam a
modernidade cultural, caracterizada pelo advento da
visão secular do mundo, pelo deslocamento da religião
para a esfera do foro íntimo, da vida privada, tendências
que não podem se conciliar com a natureza teocrática
do fundamentalismo.
Quais as causas do fundamentalismo? Alguns fatores
são específicos. No caso do fundamentalismo islâmico e
do fundamentalismo "pentecostal" brasileiro, por
exemplo, podemos apontar a anomia resultante do
processo de urbanização, a dissolução dos vínculos tradicionais de solidariedade, a discriminação étnica, a
marginalidade social e a perda de prestígio do marxismo como religião laica. Mas há também fatores comuns, aplicáveis a todas as variantes do fundamentalismo, como a dificuldade de inserção na economia, numa
fase em que o capitalismo tem características estruturalmente excludentes, e a desorientação diante do desaparecimento dos valores tradicionais, em consequência
do processo de globalização.
Com sua capacidade de recriar nexos de solidariedade
grupal, de dotar a vida de sentido e finalidade, de inventar um passado mítico em que não existiam as tensões e
as incertezas do mundo contemporâneo, de alimentar a
esperança numa vida futura que possa compensar todas as humilhações do presente e de fazer da religião
uma trincheira de resistência cultural, capaz de enfrentar as pressões niveladoras provocadas pela globalização, o fundamentalismo parece constituir uma resposta
para todas as frustrações da vida moderna.
É uma falsa resposta. O fundamentalismo impede o
homem de pensar por si mesmo, desativa sua razão e
simplifica realidades complexas. Esse tríplice déficit
corresponde exatamente ao perfil dos fanáticos que
perpetraram os atentados nos Estados Unidos. Podemos não saber sua identidade, mas conhecemos sua
personalidade: deformados pelo fundamentalismo, esses homens eram sem sombra de dúvida heterônomos,
irracionais e simplificadores. Nunca houve missão mais
urgente que combater o fundamentalismo. E nunca
houve tarefa mais difícil, porque, se as causas do fundamentalismo forem realmente as apontadas acima, ele
não é nem um erro teórico nem uma perversão moral,
mas o efeito objetivo de fatores cuja eliminação requer
nada menos que uma correção de rumos na estrutura
de nossa modernidade.
Sergio Paulo Rouanet é ensaísta e professor visitante na pós-graduação em sociologia da Universidade de Brasília. É autor de, entre
outros, "As Razões do Iluminismo" e "Mal-Estar na Modernidade" (Cia.
das Letras). Escreve mensalmente na seção "Brasil 502 d.C.".
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