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+ literatura
O mistério de Agatha Christie
Biógrafa aborda as dificuldades para retratar a best-seller inglesa, que se mostrava
cortês, mas impenetrável
LAURA THOMPSON
É estranho como alguém pode dedicar
anos a um livro -no
meu caso, a uma biografia de Agatha
Christie- e, a seguir, lembrar
tão pouco sobre o processo de
tê-lo escrito. Minhas memórias
dessa batalha praticamente desapareceram. Suponho que se
trate do equivalente literário a
esquecer as dores do parto.
Há momentos, porém, em
que sei que me pareceu difícil
trazer Agatha à vida. Sua imagem -a de uma dama gentil de
classe média alta, dotada de talento incomum para criar enigmas- ocasionalmente parecia
impenetrável, o que suspeito
tenha sido sua intenção.
Poucas das pessoas que a conheceram de mais perto continuam vivas, e mapear seus relacionamentos foi difícil.
E, quando localizadas, as
pessoas que pretendia entrevistar provavam ser parecidas
com Agatha Christie: corteses,
reticentes e antiquadas -de
forma nenhuma o tipo de personalidade que se dispõe a
compartilhar seus pensamentos com um escritor.
Persuadi-las a fazê-lo foi provavelmente a parte mais árdua
do meu trabalho ("Agatha
Christie - An English Mistery",
Agatha Christie - Um Mistério
Inglês, Review, 416 págs., 20 libras, R$ 78), e parecia muito
pouco relacionada à redação de
um livro.
Coisas como essa são parte
do processo de construção de
uma biografia. Por vezes, esse
tipo de trabalho pode se tornar
insuportavelmente frustrante,
como se a pessoa que serve de
tema ao trabalho estivesse
conspirando contra seu desejo
de simplesmente escrever um
livro.
Não conte tudo
Sempre pensei que biografias
fossem simples livros; que elas
deviam criar uma narrativa de
maneira tão legível quanto possível e levar em conta a advertência de Voltaire: "Se vocês desejam entediar seus leitores,
contem-lhes tudo".
Quando primeiro decidi escrever sobre Agatha Christie,
nem mesmo considerava a hipótese de produzir uma biografia propriamente dita.
Sua ficção de mistério me
fascinava havia muito, e me parecia que uma reavaliação era
necessária; mais tarde, eu me
apaixonei pelos seis romances
que ela escreveu sob o pseudônimo de Mary Westmacott.
Assim, a concepção original
de meu livro era como uma
evocação, um estudo, e não
uma biografia plena.
A biografia ainda é vista freqüentemente como uma habilidade especial de localizar o
maior número possível de fatos
e montá-los de maneira representativa, como se cada pedaço
de papel, cada entrevista, fosse
uma pista que conduz a uma solução clara.
No dia tal e tal o biografado
disse isso; na semana seguinte,
fez aquilo; em 1935, escreveu
aquilo mais -e eis que temos
um retrato concluído!
Indústria da biografia
Basta imaginar um biógrafo
tentando narrar nossas vidas,
dentro de 50 anos -os idiotas
com quem eles podem vir a
conversar sobre você, os motivos que podem atribuir a ações
que você mesmo mal compreendia- para vislumbrar até
que ponto a indústria da biografia repousa sobre bases precárias.
Especialmente no caso de alguém como Agatha Christie,
cujo grande desejo era usar a fama como uma cortina por trás
da qual se proteger.
Após 1926, quando passou 11
dias desaparecida após seu primeiro marido lhe dizer que estava apaixonado por outra, ela
se tornou uma pessoa obsessivamente discreta. Mas a ironia
é que deixou uma verdadeira
montanha de pistas.
E, quando tive acesso a elas,
cerca de um ano depois de assinar o contrato para meu livro,
subitamente me vi em posse de
material novo.
Na velha casa de Agatha em
Devon -a bela e mágica Greenway House, uma casa branca,
quadrada, da era georgiana,
cercada de árvores retorcidas-
havia salas e mais salas repletas
de papéis, baús contendo montanhas de cartas, guarda-roupas que abrigavam casacos de
pele ainda enfeitados por um
leve traço de perfume, caixas
contendo trajes de batizado, livros de recortes, álbuns fotográficos.
Fui à casa pela primeira vez
para ser apresentada a Rosalind, filha de Agatha, ocasião
maravilhosa, mas fonte de
grande ansiedade. Quando Rosalind morreu, em 2004, seu filho, Matthew, me deu acesso a
tudo que a casa continha.
O amoroso desmazelo das
memórias acumuladas era
pungente -em especial a pasta,
marcada pelas iniciais de Agatha, na qual ela guardava as cartas que lhe foram escritas por
Archie Christie, com quem se
casou em dezembro de 1914 e
por conta de quem, 12 anos
mais tarde, sofreria um colapso
nervoso e desapareceria.
Pela primeira vez percebi
que aquilo que uma pessoa preserva, aquilo que mais tarde se
torna "material" para um biógrafo, tem significado não só intrínseco mas também ainda
por existir.
De 1926 até sua morte, quase
50 anos mais tarde, Agatha
guardou as cartas de amor de
Archie. Elas eram mais que material para meu trabalho. Diziam algo mais que as palavras
que continham. Lendo-as, segurando-as nas mãos, senti a
história de meu livro começando a surgir. Na medida em que
isso é possível, tentei fazer dele
a história de Agatha.
A íntegra deste texto saiu no "Independent". Tradução de Paulo Migliacci.
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