São Paulo, domingo, 21 de outubro de 2007

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Outras américas

Dois lançamentos apresentam registros surpreendentes sobre a experiência colonizadora

LUCIANO FIGUEIREDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Lá vai uma barquinha carregada de aventureiros... Lá vem uma barquinha cheiinha de índios." Os versos marcavam, como o compasso das marés, o poema "História Pátria", do "Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade" [ed. Globo].
Na composição iam e vinham barquinhas com os personagens singulares de nossa colonização: cruzes de Cristo, donatários, flibusteiros, holandeses e alguns outros.
A visão que se cristalizou da formação colonial não está muito distante do poema de Oswald, reduzida a certos marcos, como a presença jesuítica, o monopólio comercial, o domínio português ou a ocupação na região Nordeste.
Chegam às livrarias dois registros desconcertantes para aqueles que acreditam nessa uniformidade da experiência colonizadora na América.
O primeiro deles é o testemunho escrito pelo jovem inglês Anthony Knivet, desovado pelos tripulantes da expedição de Thomas Cavendish em uma praia do litoral de São Paulo em fins do século 16.
"As Incríveis Aventuras e Estranhos Infortúnios de Anthony Knivet", organizado pela professora e pesquisadora de literatura portuguesa Sheila Moura Hue, conta a vida de Knivet ao longo de quase dez anos nessas terras de portugueses e selvagens.

Devaneios
Com notável apuro editorial a publicação resgata ilustrações da edição holandesa, apresenta uma tradução sensível e um cuidadoso estabelecimento de texto. Para enfrentar a carga de fantasia do relato, que fez Capistrano de Abreu tachá-lo de um misto de observação, de credulidade e de "apoucada inteligência", a introdução prepara o leitor para o contexto e os devaneios do marinheiro de triste figura.
Nem assim a narrativa esfria o calvário que Knivet atravessou ao redor do Rio de Janeiro, dividindo-se entre funções como empregado de engenhos de açúcar, traficante de nativos e sertanista. Viveu também entre os índios, o que lhe pareceu mais gratificante que a convivência com os portugueses.
Sofrimentos, provações, castigos, batalhas e afogamentos transcorrem em um mundo de estranhamentos sucessivos, temperado por passagens cheias de acidentes e lances de uma bem calculada imaginação. Mergulha na baía de Guanabara com um arremedo de escafandro que quase o afoga, atravessa rios em jangadas ("umas coisas feitas de caniços amarrados com cipós"), carrega companheiros nas costas em jornadas exaustivas, passa tanta fome que devora os escudos de couro e assiste a sessões de canibalismo.

Tensão silenciosa
Pulsa no relato uma tensão silenciosa: a impossibilidade do retorno ao conforto cultural e social da pátria, sob o cativeiro imposto pelos conflitos nacionais que atravessam o nascimento do mundo moderno.
A segunda obra também capaz de surpreender é "O Brasil Francês - As Singularidades da França Equinocial (1612-1615)", da historiadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro Andrea Daher. Resultado de tese acadêmica, expõe um refinado exercício historiográfico e revolve a experiência de cristianização promovida pelos capuchinhos franceses no Maranhão, de onde escolhe um desses episódios que encerram uma síntese de toda a complexidade daquela experiência.
Meia dúzia de índios da região são levados para Paris, onde se apresentam diante da corte espantada, que os recepciona com grande entusiasmo.
Mais do que a curiosidade do acontecimento, o episódio é a chave para a autora desenvolver uma das singularidades de sua abordagem, na qual as narrativas escritas e a iconografia dos sucessos da obra missionária salvadora em massa das almas do Novo Mundo reforçam o catolicismo que triunfa desde a Contra-Reforma.
Sai fortalecida, ademais, a importância da política colonial na América, assinalada por meio das virtudes do soberano católico.
Para responder ao que singulariza a obra missionária francesa no Brasil e como transcorrem as estratégias de cristianização e ocidentalização dos índios, mergulha nos relatos dos capuchinhos e na ação de conversão no Maranhão. Driblando a tentação do anacronismo, o livro segue por uma senda de maior originalidade ao esgarçar essa experiência analisando o impacto da conversão dos índios brasileiros na França. A experiência da construção do mito do tupinambá convertível, sugere Andrea, prepara o mito da bondade original do selvagem.
De algum modo, a publicação destes dois títulos injeta entusiasmo nas reflexões a respeito da América portuguesa, que também foi francesa e até inglesa. A experiência dos capuchinhos franceses no Maranhão e o testemunho crítico de um sobrevivente dos ativos circuitos comerciais ingleses movimentam nossa "História Pátria", que Oswald anteviu quando "o mar inteiro", escreveu, "se coalhou de transatlânticos/ e as barquinhas ficaram/ jogando prenda coa raça misturada/ No litoral azul de meu Brasil".


LUCIANO FIGUEIREDO é professor de história da Universidade Federal Fluminense.

AS INCRÍVEIS AVENTURAS E ESTRANHOS INFORTÚNIOS DE ANTHONY KNIVET Organização: Sheila Moura Hue
Tradução: Vivien Kogut Lessa de Sá
Editora: Zahar (tel. 0/xx/21/ 2108-0808)
Quanto: R$ 39 (260 págs.)

O BRASIL FRANCÊS - AS SINGULARIDADES DA FRANÇA EQUINOCIAL (1612-1615)
Autor:
Andrea Daher
Tradução: Albert Stückenbruck
Editora: Civilização Brasileira (tel. 0/xx/ 21/ 2585-2000)
Quanto: R$ 50 (364 págs.)


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