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Outras américas
Dois lançamentos apresentam registros surpreendentes sobre a experiência colonizadora
LUCIANO FIGUEIREDO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Lá vai uma barquinha
carregada de aventureiros... Lá vem uma
barquinha cheiinha de
índios." Os versos marcavam, como o compasso das
marés, o poema "História Pátria", do "Primeiro Caderno do
Aluno de Poesia Oswald de Andrade" [ed. Globo].
Na composição iam e vinham barquinhas com os personagens singulares de nossa
colonização: cruzes de Cristo,
donatários, flibusteiros, holandeses e alguns outros.
A visão que se cristalizou da
formação colonial não está
muito distante do poema de
Oswald, reduzida a certos marcos, como a presença jesuítica, o monopólio comercial, o domínio português ou a ocupação
na região Nordeste.
Chegam às livrarias dois registros desconcertantes para
aqueles que acreditam nessa
uniformidade da experiência
colonizadora na América.
O primeiro deles é o testemunho escrito pelo jovem inglês
Anthony Knivet, desovado pelos tripulantes da expedição de
Thomas Cavendish em uma
praia do litoral de São Paulo em
fins do século 16.
"As Incríveis Aventuras e Estranhos Infortúnios de Anthony Knivet", organizado pela
professora e pesquisadora de literatura portuguesa Sheila
Moura Hue, conta a vida de
Knivet ao longo de quase dez
anos nessas terras de portugueses e selvagens.
Devaneios
Com notável apuro editorial
a publicação resgata ilustrações
da edição holandesa, apresenta
uma tradução sensível e um
cuidadoso estabelecimento de
texto. Para enfrentar a carga de
fantasia do relato, que fez Capistrano de Abreu tachá-lo de
um misto de observação, de
credulidade e de "apoucada inteligência", a introdução prepara o leitor para o contexto e os
devaneios do marinheiro de
triste figura.
Nem assim a narrativa esfria
o calvário que Knivet atravessou ao redor do Rio de Janeiro,
dividindo-se entre funções como empregado de engenhos de
açúcar, traficante de nativos e
sertanista. Viveu também entre
os índios, o que lhe pareceu
mais gratificante que a convivência com os portugueses.
Sofrimentos, provações, castigos, batalhas e afogamentos
transcorrem em um mundo de
estranhamentos sucessivos,
temperado por passagens
cheias de acidentes e lances de
uma bem calculada imaginação. Mergulha na baía de Guanabara com um arremedo de
escafandro que quase o afoga,
atravessa rios em jangadas
("umas coisas feitas de caniços
amarrados com cipós"), carrega companheiros nas costas em
jornadas exaustivas, passa tanta fome que devora os escudos
de couro e assiste a sessões de
canibalismo.
Tensão silenciosa
Pulsa no relato uma tensão
silenciosa: a impossibilidade do
retorno ao conforto cultural e
social da pátria, sob o cativeiro
imposto pelos conflitos nacionais que atravessam o nascimento do mundo moderno.
A segunda obra também capaz de surpreender é "O Brasil
Francês - As Singularidades da
França Equinocial (1612-1615)", da historiadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro Andrea Daher.
Resultado de tese acadêmica,
expõe um refinado exercício
historiográfico e revolve a experiência de cristianização promovida pelos capuchinhos
franceses no Maranhão, de onde escolhe um desses episódios
que encerram uma síntese de
toda a complexidade daquela
experiência.
Meia dúzia de índios da região são levados para Paris, onde se apresentam diante da corte espantada, que os recepciona
com grande entusiasmo.
Mais do que a curiosidade do
acontecimento, o episódio é a
chave para a autora desenvolver uma das singularidades de
sua abordagem, na qual as narrativas escritas e a iconografia
dos sucessos da obra missionária salvadora em massa das almas do Novo Mundo reforçam
o catolicismo que triunfa desde
a Contra-Reforma.
Sai fortalecida, ademais, a
importância da política colonial na América, assinalada por
meio das virtudes do soberano
católico.
Para responder ao que singulariza a obra missionária francesa no Brasil e como transcorrem as estratégias de cristianização e ocidentalização dos índios, mergulha nos relatos dos
capuchinhos e na ação de conversão no Maranhão.
Driblando a tentação do anacronismo, o livro segue por
uma senda de maior originalidade ao esgarçar essa experiência analisando o impacto da
conversão dos índios brasileiros na França. A experiência da
construção do mito do tupinambá convertível, sugere Andrea, prepara o mito da bondade original do selvagem.
De algum modo, a publicação
destes dois títulos injeta entusiasmo nas reflexões a respeito
da América portuguesa, que
também foi francesa e até inglesa. A experiência dos capuchinhos franceses no Maranhão e o testemunho crítico de
um sobrevivente dos ativos circuitos comerciais ingleses movimentam nossa "História Pátria", que Oswald anteviu quando "o mar inteiro", escreveu,
"se coalhou de transatlânticos/
e as barquinhas ficaram/ jogando prenda coa raça misturada/
No litoral azul de meu Brasil".
LUCIANO FIGUEIREDO é professor de história
da Universidade Federal Fluminense.
AS INCRÍVEIS AVENTURAS E ESTRANHOS INFORTÚNIOS DE ANTHONY KNIVET
Organização: Sheila Moura Hue
Tradução: Vivien Kogut Lessa de Sá
Editora: Zahar (tel. 0/xx/21/ 2108-0808)
Quanto: R$ 39 (260 págs.)
O BRASIL FRANCÊS - AS SINGULARIDADES DA FRANÇA EQUINOCIAL (1612-1615)
Autor: Andrea Daher
Tradução: Albert Stückenbruck
Editora: Civilização Brasileira (tel. 0/xx/ 21/ 2585-2000)
Quanto: R$ 50 (364 págs.)
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