São Paulo, domingo, 21 de outubro de 2007

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Fogo pálido

Inovador, "Soldados da Pátria" reescreve a história do Exército brasileiro desde a Proclamação da República até o Estado Novo

FRANCISCO DORATIOTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O norte-americano Frank D. McCann é autor de importantes estudos sobre a história militar brasileira. Os conhecimentos que acumulou na dupla condição de historiador e de ex-militar lhe permitiram escrever "Soldados da Pátria -História do Exército Brasileiro, 1889-1937".
Trata-se de minuciosa história político-militar baseada em extensa bibliografia e em documentos de arquivos brasileiros, norte-americanos e do Ministério do Exterior inglês.
O livro articula as características e dinâmicas próprias às organizações militares de qualquer país com aquelas específicas do Exército brasileiro à época -a indisciplina, o baixo grau de profissionalismo, o predomínio das relações pessoais, as precárias condições dos quartéis etc.- e as contextualiza politicamente.
Rejeita a tendência de explicar o comportamento da força terrestre com base exclusivamente na política e na sociedade civil e considera a dinâmica interna própria do Exército, quer na dimensão burocrática, quer na operacional.
Aliás, uma das características do livro é a de ir contra interpretações predominantes. Assim, McCann defende que o golpe de Estado que depôs a monarquia, em 1889, apenas mudou a fachada política, e não as estruturas, pois os golpistas se preocuparam em atender a apetites pessoais ou de grupos e legaram, como conseqüência, uma tensão entre essas práticas e a constituição de um Exército eficiente.
As carências da força terrestre são demonstradas na meticulosa análise da luta contra os movimentos de Canudos (1896-1897) e Contestado (1912-16).

Missão francesa
A busca da eficiência levou, após alguma hesitação, à contratação, em 1919, de uma missão militar francesa, o que McCann classifica como erro, pois os oficiais franceses provocaram atritos no interior do Exército e ensinaram uma estratégia equivocada para a realidade brasileira.
No trabalho de instrução, a missão privilegiou hipótese de "guerra de posição", com o uso de fortificações de grande porte para a defesa e de grandes divisões de infantaria na ofensiva.
O Brasil, porém, necessitava de unidades pequenas, com grande mobilidade, treinadas para a "guerra de movimento", devido a seu imenso território carente de meios de comunicação e efetivo militar restrito a 37 mil homens.
Quanto à década de 1920, McCann não reduz a história do Exército ao movimento tenentista, o qual interpreta ser resultado da ação decidida de uma minoria, os oficiais subalternos, que impôs sua vontade pelo aproveitamento de circunstâncias propícias.
Além disso, não classifica o primeiro momento da chamada Revolução de 30 como pertencente aos tenentes modernizadores, mas, sim, como "um golpe de altos oficiais contra a própria estrutura de comando do Exército", o que comprova o processo de desintegração pelo qual passava a força terrestre.
Em outra interpretação original, McCann defende que a derrota do levante armado de São Paulo em 1932 fortaleceu o poder de Getúlio Vargas e lhe facilitou, cinco anos mais tarde, instalar o Estado Novo.
Isso é o oposto do que os paulistas aprendem desde os primeiros anos da escola: que essa luta contribuiu para o restabelecimento da ordem constitucional, com a Constituição de 1934. McCann ressalta que, na guerra civil de 1932, o Exército não conseguiu nem sequer produzir a munição de que necessitava. Essa debilidade em obter os meios bélicos se tornou mais perigosa quando Paraguai e Bolívia travaram a Guerra do Chaco (1932-1936), já que os paraguaios contavam com apoio material da bem armada Argentina.
O aumento da preocupação do Exército com a segurança do Brasil resultou na decisão de implementar uma política de industrialização, para pôr fim à dependência de produtores estrangeiros de armamento.

Elite tímida
Aliás, alerta nesse sentido já fora dado em mensagens presidenciais do final da década de 1910, e a lentidão em implementá-la demonstraria que a minúscula elite intelectual brasileira não possuía mentalidade modernizadora: "Assim, em vez de as universidades levarem o Brasil para a era moderna, esse papel ficou para os políticos e os militares".
Preocupado em defender o país, o comando do Exército, em 1937, não acreditava que pudesse fazê-lo sob a Constituição de 1934 e pôs fim ao regime constitucional. Getúlio Vargas assumiu o compromisso de equipar as Forças Armadas e delas recebeu o apoio "para um regime de força e desenvolvimento nacional". McCann afirma, na conclusão, ser "difícil imaginar como o Brasil poderia ter alcançado os aspectos bons e maus de sua atual condição sem sua singular ditadura".

Tese questionável
A frase é questionável, afinal após 1945 a sociedade brasileira se modernizou e se tornou mais complexa, e, se persistem alguns elementos do getulismo -como o messianismo político desmobilizador-, outros foram superados. Quer dizer, temos "aspectos bons e maus" originais.
Também carece de mais argumentação o esforço, nas páginas finais, de demonstrar a influência da lógica do pensamento militar do Estado Novo no Golpe de 1964.
Essa lacuna poderá ser superada se McCann executar seu plano original, que, afirma na introdução, era o de escrever um livro sobre a história do Exército até os anos 1990. Esperemos, pois, que o faça. Enquanto isso, a riqueza de informações e de interpretação fazem de "Soldados da Pátria" referência obrigatória no estudo da história brasileira.


FRANCISCO DORATIOTO é professor no curso de relações internacionais da Universidade Católica de Brasília e orientador no mestrado em diplomacia no Instituto Rio Branco.

SOLDADOS DA PÁTRIA - HISTÓRIA DO EXÉRCITO BRASILEIRO, 1889-1937
Autor:
Frank D. McCann
Tradução: Laura Teixeira Motta
Editora: Companhia das Letras (tel. 0/xx/11/ 3707-3501)
Quanto: R$ 69,50 (744 págs.)


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