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LIVROS
O deputado federal Delfim Netto comenta "Democracia Realizada", de Mangabeira Unger
A criação de alternativas
ANTONIO DELFIM NETTO
Colunista da Folha
"Democracia Realizada", do
professor Mangabeira Unger, é
um livro instigante, desafiador,
que convida o leitor não apenas a
refletir sobre a nova ordem mundial derivada da absorção de um
pensamento hegemônico, mas
também a rejeitar a idéia de que
não existem alternativas capazes
de produzir significativas alterações nas instituições políticas,
econômicas e sociais estabelecidas.
Estimulado pelo desafio do professor Mangabeira Unger, antes
mesmo de tentar a difícil tarefa de
condensar o seu rico pensamento,
convido o leitor a refletir um pouco a respeito do significado e das
origens dessa ideologia hegemônica que estabeleceu o comando
quase divino do sistema de mercado sobre as demais instituições.
Por que caminhos se desenvolveu
essa máquina infernal que praticamente submeteu os sistemas
produtivos ao mercado financeiro? Um mercado operado por
meios virtuais proporcionados
pelo extraordinário avanço tecnológico da área de comunicações!
Comecemos pensando as origens mais recentes. A partir da
flutuação do dólar no início dos
anos 70, liberou-se a pouco e pouco o movimento de capitais, que
era limitado pelos acordos de
Bretton Woods. Com o choque
antiinflacionário de Paul Volcker
em 1979, as taxas de juro dos Estados Unidos, inicialmente, e do
resto do mundo, em seguida, foram elevadas a níveis sem precedentes. Isso tornou insustentável
a relação dívida/PIB dos países, a
maioria dos quais enredados nos
problemas decorrentes da necessidade de financiamento das importações petrolíferas.
Esses países tiveram que adotar
programas draconianos de redução de seus déficits orçamentários. A redução da demanda levou
a uma redução generalizada das
taxas de inflação e, tragicamente,
a uma elevação das taxas de juro
real que reduziu o ritmo de crescimento da economia mundial e
criou, na Europa, um desemprego
preocupante. Paradoxalmente,
estimulou nos EUA e nos outros
países a desmontagem simultânea dos sistemas de proteção social ao mais fraco, sistemas que
haviam sido construídos exatamente para defender o homem,
do mercado.
A liberação do movimento de
capitais tornou muito difícil a sua
regulagem pelas economias nacionais e tornou delicada a situação dos países em desenvolvimento, que perderam os seus instrumentos de estímulo ao crescimento. O sistema de mercado foi
deificado no Consenso de Washington como uma ideologia hegemônica que tornou qualquer
ação governamental pecaminosa.
Cada um à sua maneira, os países
foram absorvendo o receituário
que prescrevia a livre movimentação de capitais, a abertura comercial e a redução da intervenção estatal na economia pela via das privatizações.
Em relação à abertura comercial, os países mais desenvolvidos
da Comunidade Européia e os Estados Unidos trataram de relativizar o conceito, mantendo as barreiras protecionistas em setores
industriais selecionados e especialmente no setor agrícola. O
Brasil não agiu com a mesma prudência e logo no início dos anos
90 produziu uma abertura comercial de forma ampla, geral e irrestrita, deixando-se metabolizar pela globalização, sem reivindicar
concessões correspondentes de
seus parceiros comerciais. Fez
mais: a partir de 1994 abriu seu
mercado financeiro oferecendo as
mais altas taxas de juro do mundo
aos capitais especulativos, endividando-se irresponsavelmente e
oferecendo "na bandeja" seu
mercado interno às empresas de
fora para a compra das empresas
nacionais a preços de ocasião.
O paradoxal nesse comportamento é que ele foi realizado em
nome do "princípio" do livre funcionamento dos mercados, enquanto se promovia, com a manipulação do câmbio e com a elevação dos juros, a mais profunda,
duradoura e destrutiva interferência estatal em todos os setores
da economia nacional. Mais paradoxal, ainda, é que a aceitação
dessa "doutrina" foi justificada
como um imperativo da modernidade, derivada de uma suposta
"ciência econômica", quando na
verdade se tratava de uma volta à
pura ideologia dos tempos gloriosos do "liberalismo" do século 19.
Como nos ensinou o grande antropólogo e economista Karl Polanyi: "Não é preciso uma longa
regressão no tempo para encontrar as origens das nossas dificuldades atuais. O século 19 partejou
dois eventos extraordinários: a
idade da máquina -um desenvolvimento tecnológico de amplitude milenarista- e um sistema
de mercados, que foi a resposta
inicial da organização econômica
àquele desenvolvimento. O sistema de mercado talvez fosse a única forma de organização que tornasse possível o uso do custoso
equipamento exigido para realizar o milagre tecnológico do século 19. Em tais circunstâncias era
preciso organizar mercados para
todas as coisas, de modo a assegurar o fluxo de matérias-primas e
de produtos acabados. Eram necessários não apenas esses mercados. A própria terra e o trabalho
também tinham de ser organizados como pseudomercadorias
para assegurar a continuidade e a
mobilidade de sua oferta. Assim,
o homem e seu meio ambiente foram inevitavelmente submetidos
às mesmas leis dos mercados que
governavam as mercadorias. O
resultado desse processo foi um
sistema auto-regulado de mercados que revolucionou a sociedade
ocidental na primeira metade do
século 19. As consequências para
a imagem que o homem faz de si
mesmo e da sociedade em que se
insere foram fatais. A própria forma de seu viver foi organizada em
torno de um complexo conjunto
de mercados, baseado na procura
do lucro e determinado por atitudes competitivas. A sociedade humana tornou-se um organismo, e
o funcionamento da economia
-o jogo das forças da oferta e da
procura- moldou e controlou o
processo de interação social. Esse
quadro institucional reduziu todo
o pensamento do homem e seus
valores à economia. Conceitos
tais como liberdade, justiça, igualdade, racionalidade e regras legais
parecem realizar-se nos mercados. A liberdade é metamorfoseada na liberdade de empreendimentos. A justiça é a proteção da
sociedade privada, a exigência do
cumprimento dos contratos, e o
veredicto é dado pelo preço de
mercado. A igualdade é o direito
ilimitado de todos participarem
em contratos. A racionalidade é
epitomizada na eficiência e na
maximização dos resultados no
mercado. A moderna economia
inclui todos os aspectos da sociedade que dependem dos bens materiais, ainda que indiretamente.
Os princípios que a governam
tendem a ser considerados como
absolutos. Em lugar de ser a economia uma das partes do sistema
(isto é, a economia embebida na
sociedade), ela metabolizou toda
a atividade social".
Se tivesse vivido um pouco
mais, Karl Polanyi teria assistido,
sem surpresa, ao desenvolvimento ainda maior da organização infernal que submeteu o próprio
sistema produtivo ao mercado financeiro. Submissão alicerçada
na aceitação de um pensamento
hegemônico que "conduz à crença na convergência para um único
sistema de instituições democráticas e de mercado", contra a qual
se insurge a argumentação do
professor Mangabeira Unger ao
defender a prática do experimentalismo democrático para se alcançar formas institucionais alternativas de pluralismo econômico, social e político.
"Democracia Realizada" é o
sexto livro do professor Mangabeira Unger editado em língua
portuguesa. É um trabalho denso
e singular, pois, a um só tempo,
oferece ao leitor o pensamento filosófico de um historiador e mestre em política, acrescido dos desafios de um ativista político. Os
desafios compõem um "Manifesto" com 13 teses ao final da obra,
cada uma delas merecendo a
abertura de um debate que só deixará de existir se a "intelligentsia"
nacional tiver entrado em férias
eternas. Ou se, desafortunadamente, se reproduzir o fenômeno
da "interdição do debate" sobre
os desacertos da política econômica que vigorou nos quatro primeiros e gloriosos anos do imperialismo tucano.
Desde já, acreditando que não
se repetirá tal vilania, inscrevo-me
para um futuro debate sobre duas
das teses do "Manifesto", a sétima, que trata do problema fiscal, e
a nona, que discute o desmembramento dos direitos tradicionais de propriedade, nas quais localizei alguns pontos de substancial discordância.
Digo, no futuro, porque, antes
de iniciar qualquer discussão sobre as teses do "Manifesto", que
constam da fase terminal do livro,
é preciso meditar sobre a abrangente "Argumentação" que o professor Mangabeira Unger desenvolve no corpo principal da obra.
Nas palavras do autor, essa argumentação "desenvolve as concepções e o projeto do experimentalismo democrático em dois cenários: no contexto das democracias
do Atlântico Norte e na situação
dos países em desenvolvimento,
especialmente das grandes sociedades marginalizadas. O mundo
todo está agora unido por uma
corrente de analogias: não existe
diferença fundamental entre problemas e possibilidades nas economias mais ricas e nas mais pobres. As pessoas falam de "democracia radical" ou de reinvenção
da política progressista, mas normalmente não conseguem dar
conteúdo detalhado a esses conceitos. Aqui, eu tento isso"...
Na verdade, o professor vai
muito além da simples tentativa,
pois apresenta alternativas bem
fundamentadas de alterações institucionais, insurgindo-se contra
os preconceitos que bloqueiam
nossa capacidade de imaginar e
mudar as sociedades. O ponto de
partida é a rejeição de prerrogativas herdadas. Nas palavras do autor: "A primeira esperança de um
democrata, segundo o experimentalismo democrático, é encontrar a área de coincidência entre as condições do progresso prático e as exigências da emancipação do indivíduo. Entre essas condições e exigências se destacam as
estruturas institucionais da sociedade. O progresso prático ou material inclui o crescimento econômico e a inovação tecnológica,
com apoio na descoberta científica. É a evolução de nossa capacidade de afastar a sujeição à escassez, à doença, à fraqueza e à ignorância. É a capacitação da humanidade para agir sobre o mundo.
A emancipação do indivíduo se
refere à sua capacidade de libertar-se de arraigados papéis sociais, divisões e hierarquias, principalmente quando esse aparato
social extrai forças da superioridade herdada, moldando as oportunidades de vida dos indivíduos...". E, mais adiante: "Tanto o
progresso prático quanto a emancipação do indivíduo dependem
da capacidade de transformar o
esforço social em aprendizado coletivo e de agir sobre as lições
aprendidas, sem se deter pela necessidade de respeitar um plano
preestabelecido de divisão social e
hierarquia ou uma distribuição
restritiva de papéis sociais".
A argumentação ultrapassa os
limites de uma erudita digressão
filosófica e penetra no campo
programático, detalhando procedimentos que capacitariam as sociedades a construir sistemas diferenciados das moldagens ditas
neoliberal ou social-democrata.
Com uma advertência preliminar chamando a atenção para o
fato de que o experimentalismo
que hoje empolga o setor privado
nos países mais ricos e industrializados não chegou aos respectivos
setores públicos: "Há hoje por toda a parte" -diz o professor
Mangabeira Unger- "um sentimento de exaustão e de perplexidade na formulação de alternativas confiáveis ao programa neoliberal e à sua típica crença na convergência para um único sistema
de instituições democráticas e de
mercado. Tendo abandonado
compromissos estatistas e testemunhado o colapso dos regimes
comunistas, os progressistas buscam em vão uma direção mais
afirmativa que a defesa de retaguarda da social-democracia. A
confusão e o desapontamento
não se restringem à esquerda;
transformaram-se em estigmas
comuns dos que são politicamente conscientes. Mesmo nos Estados Unidos, país hegemônico que
vive um momento triunfal em
suas relações com o resto do
mundo, o cidadão trabalhador
comum está sujeito a se sentir um
excluído raivoso, parte de uma
maioria fragmentada e marginalizada, sem forças para reformar as
bases coletivas dos problemas que
enfrenta. Ele encontra bloqueadas
as vias de mobilidade social para
si e para seus filhos, em uma sociedade supostamente sem classes. Ele acredita que os responsáveis pelo governo e pelos grandes
negócios do país estão reunidos
em uma conspiração predatória.
Ele se desilude com a política e os
políticos e busca uma escapatória
individual para as condições sociais. A "intelligentsia" pública do
país zomba da política ideológica,
dos projetos de reforma institucional em larga escala e da mobilização política popular, considerando-os românticas e impraticáveis. Insiste na supremacia da
análise técnica das ações políticas
e na resolução das questões práticas por especialistas. No entanto,
essa política programaticamente
vazia e desenergizada falha em resolver os problemas práticos pelos quais renunciou às ambições
maiores. Ela desliza, impotente e à
deriva, porque se permite degenerar em pactos episódicos, facciosos e de curto prazo, realizados
contra um pano de fundo de instituições e concepções que permanecem incontestadas ou até despercebidas. Enquanto isso, em todas as democracias industriais ricas -a começar pelos EUA-,
um vigoroso experimentalismo
subjacente começou a mudar a
produção e o aprendizado, informando e inspirando empresas e
escolas. O contraste entre a definição e a execução de tarefas, entre
empregos de supervisão e empregos executivos, se torna mais suave. Cooperação e competição se
misturam nas mesmas atividades
e não mais são relegadas a domínios separados. A inovação permanente se transforma na pedra
de toque do sucesso: empresas
bem-sucedidas precisam se parecer mais e mais com boas escolas.
No entanto, esse experimentalismo no microcosmo da empresa e
da escola se choca no fim com os
limites impostos pela esfera pública, inalterada, ainda exausta e
perplexa. "Democracia Realizada"
reinterpreta essa exaustão e responde a essa perplexidade. Isso é
feito em dois passos: em primeiro
lugar, por meio de uma dissertação argumentativa e, em segundo,
pela enumeração de teses que
descrevem o conteúdo de uma
possível alternativa".
Algumas formas desse experimentalismo na esfera privada são
apreciadas em capítulo dedicado
ao exame de diferentes projetos
de reorganização empresarial nos
países mais industrializados, aos
quais o autor opõe uma alternativa que chama de "radical-democrática", uma leitura instigante
sobre os problemas de relacionamento entre empresas, trabalhadores e governo.
O espaço deste comentário não
permite continuar selecionando
todas as citações que me agradam, pois teria que publicar praticamente o livro quase por inteiro.
Os capítulos em que analisa os
efeitos sociais e econômicos do
programa neoliberal e as reações
à sua aplicação em países como a
Rússia, a China e o Brasil, entre
outros, constituem uma lúcida
aula de história contemporânea,
da qual extraí, para terminar, a seguinte citação:
"Na história moderna (...) nunca houve casos de desenvolvimento nacional bem-sucedido
que fossem marcados pela presença de um Estado passivo, presidindo um sistema de direitos de
propriedade definidos e transparentes. As instâncias típicas de sucesso foram aquelas em que o governo não apenas investiu em
pessoal e infra-estrutura, mas
também entrou em ativa parceria
com empresas privadas. Tanto os
instrumentos institucionais
quanto o conteúdo dessa parceria
variaram amplamente: de empreendimentos burocráticos centralizados a cooperativas descentralizadas e da assistência técnica
e crédito facilitado ao apoio tecnológico e educacional direto.
Um exemplo do século 19 é o desenvolvimento da agricultura familiar nos Estados Unidos com financiamento do governo federal.
Um exemplo atual é a conduta de
ativa participação no comércio e
na política industrial, a imposição
de incentivos à poupança e ao investimento e o paciente treinamento de quadros técnicos e empresariais pelos governos do nordeste da Ásia".
Pegando "carona" no texto do
professor Mangabeira Unger,
permito-me lembrar que foi essa
"conduta ativa" em favor dos setores produtivos que o Brasil
abandonou quando se alinhou ao
pensamento hegemônico consubstanciado na subserviência
aos interesses dos mercados financeiros. Sem olvidar que a
"conduta ativa" que norteou o esforço de crescimento de diversos
países asiáticos nos anos 80 foi
inspirada no processo de desenvolvimento brasileiro dos anos 50
e 70...
A OBRA
Democracia Realizada - Roberto Mangabeira Unger. Trad.
Carlos Graieb, Marcio Grandchamp e Paulo C. Castanheira. Editora Boitempo (av. Pompéia,
1.991, CEP 05023-001, SP, tel. 0/
xx/11/3865-6947). 227 págs., preço não-definido.
LEIA TAMBÉM
Do mesmo autor, com Cornel
West, foi lançado "O Futuro do
Progressismo Americano", pela
Revan (av. Paulo de Frontin, 163,
RJ, CEP 20260-010, tel. 0/xx/ 21/
502-7495). 112 págs., R$ 12,00.
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