São Paulo, Domingo, 21 de Novembro de 1999
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LIVROS
O deputado federal Delfim Netto comenta "Democracia Realizada", de Mangabeira Unger
A criação de alternativas

ANTONIO DELFIM NETTO
Colunista da Folha

"Democracia Realizada", do professor Mangabeira Unger, é um livro instigante, desafiador, que convida o leitor não apenas a refletir sobre a nova ordem mundial derivada da absorção de um pensamento hegemônico, mas também a rejeitar a idéia de que não existem alternativas capazes de produzir significativas alterações nas instituições políticas, econômicas e sociais estabelecidas.
Estimulado pelo desafio do professor Mangabeira Unger, antes mesmo de tentar a difícil tarefa de condensar o seu rico pensamento, convido o leitor a refletir um pouco a respeito do significado e das origens dessa ideologia hegemônica que estabeleceu o comando quase divino do sistema de mercado sobre as demais instituições. Por que caminhos se desenvolveu essa máquina infernal que praticamente submeteu os sistemas produtivos ao mercado financeiro? Um mercado operado por meios virtuais proporcionados pelo extraordinário avanço tecnológico da área de comunicações!
Comecemos pensando as origens mais recentes. A partir da flutuação do dólar no início dos anos 70, liberou-se a pouco e pouco o movimento de capitais, que era limitado pelos acordos de Bretton Woods. Com o choque antiinflacionário de Paul Volcker em 1979, as taxas de juro dos Estados Unidos, inicialmente, e do resto do mundo, em seguida, foram elevadas a níveis sem precedentes. Isso tornou insustentável a relação dívida/PIB dos países, a maioria dos quais enredados nos problemas decorrentes da necessidade de financiamento das importações petrolíferas.
Esses países tiveram que adotar programas draconianos de redução de seus déficits orçamentários. A redução da demanda levou a uma redução generalizada das taxas de inflação e, tragicamente, a uma elevação das taxas de juro real que reduziu o ritmo de crescimento da economia mundial e criou, na Europa, um desemprego preocupante. Paradoxalmente, estimulou nos EUA e nos outros países a desmontagem simultânea dos sistemas de proteção social ao mais fraco, sistemas que haviam sido construídos exatamente para defender o homem, do mercado.
A liberação do movimento de capitais tornou muito difícil a sua regulagem pelas economias nacionais e tornou delicada a situação dos países em desenvolvimento, que perderam os seus instrumentos de estímulo ao crescimento. O sistema de mercado foi deificado no Consenso de Washington como uma ideologia hegemônica que tornou qualquer ação governamental pecaminosa. Cada um à sua maneira, os países foram absorvendo o receituário que prescrevia a livre movimentação de capitais, a abertura comercial e a redução da intervenção estatal na economia pela via das privatizações.
Em relação à abertura comercial, os países mais desenvolvidos da Comunidade Européia e os Estados Unidos trataram de relativizar o conceito, mantendo as barreiras protecionistas em setores industriais selecionados e especialmente no setor agrícola. O Brasil não agiu com a mesma prudência e logo no início dos anos 90 produziu uma abertura comercial de forma ampla, geral e irrestrita, deixando-se metabolizar pela globalização, sem reivindicar concessões correspondentes de seus parceiros comerciais. Fez mais: a partir de 1994 abriu seu mercado financeiro oferecendo as mais altas taxas de juro do mundo aos capitais especulativos, endividando-se irresponsavelmente e oferecendo "na bandeja" seu mercado interno às empresas de fora para a compra das empresas nacionais a preços de ocasião.
O paradoxal nesse comportamento é que ele foi realizado em nome do "princípio" do livre funcionamento dos mercados, enquanto se promovia, com a manipulação do câmbio e com a elevação dos juros, a mais profunda, duradoura e destrutiva interferência estatal em todos os setores da economia nacional. Mais paradoxal, ainda, é que a aceitação dessa "doutrina" foi justificada como um imperativo da modernidade, derivada de uma suposta "ciência econômica", quando na verdade se tratava de uma volta à pura ideologia dos tempos gloriosos do "liberalismo" do século 19.
Como nos ensinou o grande antropólogo e economista Karl Polanyi: "Não é preciso uma longa regressão no tempo para encontrar as origens das nossas dificuldades atuais. O século 19 partejou dois eventos extraordinários: a idade da máquina -um desenvolvimento tecnológico de amplitude milenarista- e um sistema de mercados, que foi a resposta inicial da organização econômica àquele desenvolvimento. O sistema de mercado talvez fosse a única forma de organização que tornasse possível o uso do custoso equipamento exigido para realizar o milagre tecnológico do século 19. Em tais circunstâncias era preciso organizar mercados para todas as coisas, de modo a assegurar o fluxo de matérias-primas e de produtos acabados. Eram necessários não apenas esses mercados. A própria terra e o trabalho também tinham de ser organizados como pseudomercadorias para assegurar a continuidade e a mobilidade de sua oferta. Assim, o homem e seu meio ambiente foram inevitavelmente submetidos às mesmas leis dos mercados que governavam as mercadorias. O resultado desse processo foi um sistema auto-regulado de mercados que revolucionou a sociedade ocidental na primeira metade do século 19. As consequências para a imagem que o homem faz de si mesmo e da sociedade em que se insere foram fatais. A própria forma de seu viver foi organizada em torno de um complexo conjunto de mercados, baseado na procura do lucro e determinado por atitudes competitivas. A sociedade humana tornou-se um organismo, e o funcionamento da economia -o jogo das forças da oferta e da procura- moldou e controlou o processo de interação social. Esse quadro institucional reduziu todo o pensamento do homem e seus valores à economia. Conceitos tais como liberdade, justiça, igualdade, racionalidade e regras legais parecem realizar-se nos mercados. A liberdade é metamorfoseada na liberdade de empreendimentos. A justiça é a proteção da sociedade privada, a exigência do cumprimento dos contratos, e o veredicto é dado pelo preço de mercado. A igualdade é o direito ilimitado de todos participarem em contratos. A racionalidade é epitomizada na eficiência e na maximização dos resultados no mercado. A moderna economia inclui todos os aspectos da sociedade que dependem dos bens materiais, ainda que indiretamente. Os princípios que a governam tendem a ser considerados como absolutos. Em lugar de ser a economia uma das partes do sistema (isto é, a economia embebida na sociedade), ela metabolizou toda a atividade social".
Se tivesse vivido um pouco mais, Karl Polanyi teria assistido, sem surpresa, ao desenvolvimento ainda maior da organização infernal que submeteu o próprio sistema produtivo ao mercado financeiro. Submissão alicerçada na aceitação de um pensamento hegemônico que "conduz à crença na convergência para um único sistema de instituições democráticas e de mercado", contra a qual se insurge a argumentação do professor Mangabeira Unger ao defender a prática do experimentalismo democrático para se alcançar formas institucionais alternativas de pluralismo econômico, social e político.
"Democracia Realizada" é o sexto livro do professor Mangabeira Unger editado em língua portuguesa. É um trabalho denso e singular, pois, a um só tempo, oferece ao leitor o pensamento filosófico de um historiador e mestre em política, acrescido dos desafios de um ativista político. Os desafios compõem um "Manifesto" com 13 teses ao final da obra, cada uma delas merecendo a abertura de um debate que só deixará de existir se a "intelligentsia" nacional tiver entrado em férias eternas. Ou se, desafortunadamente, se reproduzir o fenômeno da "interdição do debate" sobre os desacertos da política econômica que vigorou nos quatro primeiros e gloriosos anos do imperialismo tucano.
Desde já, acreditando que não se repetirá tal vilania, inscrevo-me para um futuro debate sobre duas das teses do "Manifesto", a sétima, que trata do problema fiscal, e a nona, que discute o desmembramento dos direitos tradicionais de propriedade, nas quais localizei alguns pontos de substancial discordância.
Digo, no futuro, porque, antes de iniciar qualquer discussão sobre as teses do "Manifesto", que constam da fase terminal do livro, é preciso meditar sobre a abrangente "Argumentação" que o professor Mangabeira Unger desenvolve no corpo principal da obra. Nas palavras do autor, essa argumentação "desenvolve as concepções e o projeto do experimentalismo democrático em dois cenários: no contexto das democracias do Atlântico Norte e na situação dos países em desenvolvimento, especialmente das grandes sociedades marginalizadas. O mundo todo está agora unido por uma corrente de analogias: não existe diferença fundamental entre problemas e possibilidades nas economias mais ricas e nas mais pobres. As pessoas falam de "democracia radical" ou de reinvenção da política progressista, mas normalmente não conseguem dar conteúdo detalhado a esses conceitos. Aqui, eu tento isso"...
Na verdade, o professor vai muito além da simples tentativa, pois apresenta alternativas bem fundamentadas de alterações institucionais, insurgindo-se contra os preconceitos que bloqueiam nossa capacidade de imaginar e mudar as sociedades. O ponto de partida é a rejeição de prerrogativas herdadas. Nas palavras do autor: "A primeira esperança de um democrata, segundo o experimentalismo democrático, é encontrar a área de coincidência entre as condições do progresso prático e as exigências da emancipação do indivíduo. Entre essas condições e exigências se destacam as estruturas institucionais da sociedade. O progresso prático ou material inclui o crescimento econômico e a inovação tecnológica, com apoio na descoberta científica. É a evolução de nossa capacidade de afastar a sujeição à escassez, à doença, à fraqueza e à ignorância. É a capacitação da humanidade para agir sobre o mundo. A emancipação do indivíduo se refere à sua capacidade de libertar-se de arraigados papéis sociais, divisões e hierarquias, principalmente quando esse aparato social extrai forças da superioridade herdada, moldando as oportunidades de vida dos indivíduos...". E, mais adiante: "Tanto o progresso prático quanto a emancipação do indivíduo dependem da capacidade de transformar o esforço social em aprendizado coletivo e de agir sobre as lições aprendidas, sem se deter pela necessidade de respeitar um plano preestabelecido de divisão social e hierarquia ou uma distribuição restritiva de papéis sociais".
A argumentação ultrapassa os limites de uma erudita digressão filosófica e penetra no campo programático, detalhando procedimentos que capacitariam as sociedades a construir sistemas diferenciados das moldagens ditas neoliberal ou social-democrata.
Com uma advertência preliminar chamando a atenção para o fato de que o experimentalismo que hoje empolga o setor privado nos países mais ricos e industrializados não chegou aos respectivos setores públicos: "Há hoje por toda a parte" -diz o professor Mangabeira Unger- "um sentimento de exaustão e de perplexidade na formulação de alternativas confiáveis ao programa neoliberal e à sua típica crença na convergência para um único sistema de instituições democráticas e de mercado. Tendo abandonado compromissos estatistas e testemunhado o colapso dos regimes comunistas, os progressistas buscam em vão uma direção mais afirmativa que a defesa de retaguarda da social-democracia. A confusão e o desapontamento não se restringem à esquerda; transformaram-se em estigmas comuns dos que são politicamente conscientes. Mesmo nos Estados Unidos, país hegemônico que vive um momento triunfal em suas relações com o resto do mundo, o cidadão trabalhador comum está sujeito a se sentir um excluído raivoso, parte de uma maioria fragmentada e marginalizada, sem forças para reformar as bases coletivas dos problemas que enfrenta. Ele encontra bloqueadas as vias de mobilidade social para si e para seus filhos, em uma sociedade supostamente sem classes. Ele acredita que os responsáveis pelo governo e pelos grandes negócios do país estão reunidos em uma conspiração predatória. Ele se desilude com a política e os políticos e busca uma escapatória individual para as condições sociais. A "intelligentsia" pública do país zomba da política ideológica, dos projetos de reforma institucional em larga escala e da mobilização política popular, considerando-os românticas e impraticáveis. Insiste na supremacia da análise técnica das ações políticas e na resolução das questões práticas por especialistas. No entanto, essa política programaticamente vazia e desenergizada falha em resolver os problemas práticos pelos quais renunciou às ambições maiores. Ela desliza, impotente e à deriva, porque se permite degenerar em pactos episódicos, facciosos e de curto prazo, realizados contra um pano de fundo de instituições e concepções que permanecem incontestadas ou até despercebidas. Enquanto isso, em todas as democracias industriais ricas -a começar pelos EUA-, um vigoroso experimentalismo subjacente começou a mudar a produção e o aprendizado, informando e inspirando empresas e escolas. O contraste entre a definição e a execução de tarefas, entre empregos de supervisão e empregos executivos, se torna mais suave. Cooperação e competição se misturam nas mesmas atividades e não mais são relegadas a domínios separados. A inovação permanente se transforma na pedra de toque do sucesso: empresas bem-sucedidas precisam se parecer mais e mais com boas escolas. No entanto, esse experimentalismo no microcosmo da empresa e da escola se choca no fim com os limites impostos pela esfera pública, inalterada, ainda exausta e perplexa. "Democracia Realizada" reinterpreta essa exaustão e responde a essa perplexidade. Isso é feito em dois passos: em primeiro lugar, por meio de uma dissertação argumentativa e, em segundo, pela enumeração de teses que descrevem o conteúdo de uma possível alternativa".
Algumas formas desse experimentalismo na esfera privada são apreciadas em capítulo dedicado ao exame de diferentes projetos de reorganização empresarial nos países mais industrializados, aos quais o autor opõe uma alternativa que chama de "radical-democrática", uma leitura instigante sobre os problemas de relacionamento entre empresas, trabalhadores e governo.
O espaço deste comentário não permite continuar selecionando todas as citações que me agradam, pois teria que publicar praticamente o livro quase por inteiro. Os capítulos em que analisa os efeitos sociais e econômicos do programa neoliberal e as reações à sua aplicação em países como a Rússia, a China e o Brasil, entre outros, constituem uma lúcida aula de história contemporânea, da qual extraí, para terminar, a seguinte citação:
"Na história moderna (...) nunca houve casos de desenvolvimento nacional bem-sucedido que fossem marcados pela presença de um Estado passivo, presidindo um sistema de direitos de propriedade definidos e transparentes. As instâncias típicas de sucesso foram aquelas em que o governo não apenas investiu em pessoal e infra-estrutura, mas também entrou em ativa parceria com empresas privadas. Tanto os instrumentos institucionais quanto o conteúdo dessa parceria variaram amplamente: de empreendimentos burocráticos centralizados a cooperativas descentralizadas e da assistência técnica e crédito facilitado ao apoio tecnológico e educacional direto. Um exemplo do século 19 é o desenvolvimento da agricultura familiar nos Estados Unidos com financiamento do governo federal. Um exemplo atual é a conduta de ativa participação no comércio e na política industrial, a imposição de incentivos à poupança e ao investimento e o paciente treinamento de quadros técnicos e empresariais pelos governos do nordeste da Ásia".
Pegando "carona" no texto do professor Mangabeira Unger, permito-me lembrar que foi essa "conduta ativa" em favor dos setores produtivos que o Brasil abandonou quando se alinhou ao pensamento hegemônico consubstanciado na subserviência aos interesses dos mercados financeiros. Sem olvidar que a "conduta ativa" que norteou o esforço de crescimento de diversos países asiáticos nos anos 80 foi inspirada no processo de desenvolvimento brasileiro dos anos 50 e 70...



A OBRA
Democracia Realizada - Roberto Mangabeira Unger. Trad. Carlos Graieb, Marcio Grandchamp e Paulo C. Castanheira. Editora Boitempo (av. Pompéia, 1.991, CEP 05023-001, SP, tel. 0/
xx/11/3865-6947). 227 págs., preço não-definido.

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Do mesmo autor, com Cornel West, foi lançado "O Futuro do Progressismo Americano", pela Revan (av. Paulo de Frontin, 163, RJ, CEP 20260-010, tel. 0/xx/ 21/ 502-7495). 112 págs., R$ 12,00.




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