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Ponto de fuga
Lasanha ao molho pardo
JORGE COLI
ESPECIAL PARA A FOLHA
O
filme "Contra Todos",
de Roberto Moreira, procede a uma antropologia
da crueldade. Capta gestos, maneiras de se comportar, de
falar, de comer; atenta à "cultura
material" (os objetos que povoam
o mundo onde os episódios se passam); incorpora a paisagem da periferia ou do centro de São Paulo,
não como um cenário, mas como
um meio orgânico, em simbiose
com os personagens.
Tudo isso é mostrado com uma
verdade alucinante. Lembrar, em
comparação, qualquer filme do
grupo Dogma é sentir o quanto
aquela estética tinha de artificial,
assim como é irrisório mencionar
a superficialidade pitoresca e edulcorada de um "Cidade de Deus" ou
dos bandidos, amáveis e engraçados, de "Carandiru".
Roberto Moreira deu entrevistas
em que declara sua dívida com os
filmes referidos acima. Não importa, "Contra Todos" vai muito além
deles. Parte de um foco bem concreto: relações familiares e de amizade tecidas por um grupo de baixíssima classe média numa terra
insegura, a periferia de São Paulo.
Nunca o perde de vista. Seu rigor
evita mergulhos tangenciais na favela ou em ambientes de gente rica.
Começa com um jantar em que os
protagonistas se dispõem à volta
de uma lasanha. Porém, a camaradagem e a união, bem delineadas,
situam-se apenas na superfície.
Todas as relações estão rotas, podres, e os episódios da história surgem como as circunstâncias dessa
decomposição. Nada dará certo,
nada terminará bem, porque, junto com cada imagem, a direção de
Roberto Moreira inoculou um vírus abominável.
Entranha - A idéia de "podridão"
ou de "decomposição", há pouco
evocadas a respeito de "Contra Todos", talvez sugira que falte vigor
ao filme. Seria um engano. Circula
nele uma tensão permanente, feita
de pulsões sem artifícios. Não é
coisa que se aprenda no colégio
nem na faculdade. Vem de uma intuição propulsora, embutida no
ato de criar. Ela energiza cada instante, cada detalhe, cada objeto, e a
deliqüescência adquire vitalidade:
tudo banha num caldo infecto,
ambiente ideal para os germes piores que, embora letais, são vivos e
ativos.
Cheios dessa força enérgica, os
personagens se ampliam e engrandecem. O cinema brasileiro, contaminado pela televisão, perdeu a capacidade de dirigir atores. Roberto
Moreira, ao contrário, extrai deles
uma convicção espantosa, que é
"realista", sem dúvida, mas que
transcende o realismo.
No filme, a brutalidade é uma
constante sempre pressuposta. A
qualidade da descrição social salta
aos olhos; seus impulsos bárbaros,
no entanto, emanam de um substrato mais profundo. Num certo
momento, um açougueiro descreve como matar a galinha para preparar um molho pardo. Mostra,
em si mesmo, o modo de espichar
o pescoço e onde talhar para extrair o sangue. A frieza teórica da
receita incorpora a violência num
procedimento civilizado, mas não
a elimina. A ferocidade não some
com a civilização; dissimula-se
apenas, metabolizada.
Leviatã - Homem lobo do homem.
No descontrole, na guerra de todos
os homens contra todos os homens, nada pode ser injusto; a força e a fraude são duas virtudes cardeais. O filme "Contra Todos"
abole regras, leis, justiça para que
melhor sobressaiam os desejos e os
ímpetos humanos. As trajetórias
de cada um tornam-se erráticas e
seus cruzamentos desencadeiam
catástrofes.
Pobres lobos, ao mesmo tempo
trágicos e patéticos, que aspiram
inutilmente a transformar-se em
homens.
Medula - A barbárie desnorteada
de "Contra Todos" não exclui a
simpatia que emana dos personagens. O pior deles, pelos seus atos,
é o melhor pela bonomia e pelo calor humano. Terezinha, a crente, a
mais honesta, a mais correta, como
é desagradável nas suas obsessões
religiosas e no seu bom comportamento. Sem nada de tese ou de demonstração, o filme não depende
nem sequer de seu próprio enredo,
concebido como uma espécie de
"whodunit" meio inútil.
Porque, na verdade, não conta
uma história. É antes feito de puro
cinema, certeiro na sua força cinematográfica. Um autêntico, grande, belo filme, cujo vigor complexo
não pára de cavar nas angústias
mais fundas.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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