São Paulo, domingo, 21 de novembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ponto de fuga

Lasanha ao molho pardo

JORGE COLI
ESPECIAL PARA A FOLHA

O filme "Contra Todos", de Roberto Moreira, procede a uma antropologia da crueldade. Capta gestos, maneiras de se comportar, de falar, de comer; atenta à "cultura material" (os objetos que povoam o mundo onde os episódios se passam); incorpora a paisagem da periferia ou do centro de São Paulo, não como um cenário, mas como um meio orgânico, em simbiose com os personagens.
Tudo isso é mostrado com uma verdade alucinante. Lembrar, em comparação, qualquer filme do grupo Dogma é sentir o quanto aquela estética tinha de artificial, assim como é irrisório mencionar a superficialidade pitoresca e edulcorada de um "Cidade de Deus" ou dos bandidos, amáveis e engraçados, de "Carandiru".
Roberto Moreira deu entrevistas em que declara sua dívida com os filmes referidos acima. Não importa, "Contra Todos" vai muito além deles. Parte de um foco bem concreto: relações familiares e de amizade tecidas por um grupo de baixíssima classe média numa terra insegura, a periferia de São Paulo. Nunca o perde de vista. Seu rigor evita mergulhos tangenciais na favela ou em ambientes de gente rica. Começa com um jantar em que os protagonistas se dispõem à volta de uma lasanha. Porém, a camaradagem e a união, bem delineadas, situam-se apenas na superfície. Todas as relações estão rotas, podres, e os episódios da história surgem como as circunstâncias dessa decomposição. Nada dará certo, nada terminará bem, porque, junto com cada imagem, a direção de Roberto Moreira inoculou um vírus abominável.

Entranha - A idéia de "podridão" ou de "decomposição", há pouco evocadas a respeito de "Contra Todos", talvez sugira que falte vigor ao filme. Seria um engano. Circula nele uma tensão permanente, feita de pulsões sem artifícios. Não é coisa que se aprenda no colégio nem na faculdade. Vem de uma intuição propulsora, embutida no ato de criar. Ela energiza cada instante, cada detalhe, cada objeto, e a deliqüescência adquire vitalidade: tudo banha num caldo infecto, ambiente ideal para os germes piores que, embora letais, são vivos e ativos.
Cheios dessa força enérgica, os personagens se ampliam e engrandecem. O cinema brasileiro, contaminado pela televisão, perdeu a capacidade de dirigir atores. Roberto Moreira, ao contrário, extrai deles uma convicção espantosa, que é "realista", sem dúvida, mas que transcende o realismo.
No filme, a brutalidade é uma constante sempre pressuposta. A qualidade da descrição social salta aos olhos; seus impulsos bárbaros, no entanto, emanam de um substrato mais profundo. Num certo momento, um açougueiro descreve como matar a galinha para preparar um molho pardo. Mostra, em si mesmo, o modo de espichar o pescoço e onde talhar para extrair o sangue. A frieza teórica da receita incorpora a violência num procedimento civilizado, mas não a elimina. A ferocidade não some com a civilização; dissimula-se apenas, metabolizada.

Leviatã - Homem lobo do homem. No descontrole, na guerra de todos os homens contra todos os homens, nada pode ser injusto; a força e a fraude são duas virtudes cardeais. O filme "Contra Todos" abole regras, leis, justiça para que melhor sobressaiam os desejos e os ímpetos humanos. As trajetórias de cada um tornam-se erráticas e seus cruzamentos desencadeiam catástrofes.
Pobres lobos, ao mesmo tempo trágicos e patéticos, que aspiram inutilmente a transformar-se em homens.

Medula - A barbárie desnorteada de "Contra Todos" não exclui a simpatia que emana dos personagens. O pior deles, pelos seus atos, é o melhor pela bonomia e pelo calor humano. Terezinha, a crente, a mais honesta, a mais correta, como é desagradável nas suas obsessões religiosas e no seu bom comportamento. Sem nada de tese ou de demonstração, o filme não depende nem sequer de seu próprio enredo, concebido como uma espécie de "whodunit" meio inútil.
Porque, na verdade, não conta uma história. É antes feito de puro cinema, certeiro na sua força cinematográfica. Um autêntico, grande, belo filme, cujo vigor complexo não pára de cavar nas angústias mais fundas.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


Texto Anterior: Os dez +
Próximo Texto: + biblioteca básica: "Coronelismo, Enxada e Voto"
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.