São Paulo, domingo, 21 de novembro de 2004

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Presunçoso na Alemanha e amargurado no Brasil

Ironias sobre seus empregadores, nos anos 40, deram lugar à decepção com os amigos, nos anos 70

DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Os manuscritos de Mengele descrevem, em um período de pouco mais de 30 anos, a história de um homem presunçoso, no período pós-guerra, ainda na Alemanha, até a decadência de um indivíduo abandonado e sem dinheiro, pouco antes de sua morte no Brasil.
Em uma carta não datada, destinada a uma mulher desconhecida, o nazista relata sua estada no interior da Baviera, logo depois do final da guerra. Na região, ele trabalhou com uma família de agricultores, os Fischer, conforme descreve o livro "Mengele: A História Completa", biografia feita por Gerald Posner e John Ware ("Mengele: The Complete Story", 1986).
O manuscrito é intitulado "Fiat Lux", ou "Faça-se a luz", em uma provável referência ao início do Gênesis, da Bíblia. Na época, conforme a biografia de Posner e Ware, Mengele usava o nome falso de Fritz Hollman e os documentos originais pertencentes a Fritz Ulmann, um físico que foi detido pelo Exército americano com o médico nazista. Os americanos não descobriram que Mengele era um carrasco nazista e o libertaram.
A carta detalha a convivência do médico com a família de agricultores, a quem Mengele se refere como "primitiva" intelectualmente, ou "abaixo da média" -termo recorrente. No texto, o médico diz claramente que se considera intelectualmente superior àqueles com que convive e chega a tratar do tema de forma irônica e arrogante.

Mãos finas demais
No dia-a-dia, como relata na carta, o médico Mengele parecia sempre fazer questão de exibir seus conhecimentos. Ele conta, por exemplo, que discutia sobre evolução com o dono da casa, mas sempre explicava que tudo o que sabia acerca do assunto tinha sido adquirido em leituras que dizia fazer.
Mengele jamais revelou sua identidade à família. Mas, como relata a biografia, os Fischer sempre acharam que as mãos de seu funcionário Fritz eram finas demais para quem se apresentava como um trabalhador rural experiente interessado em conquistar um emprego no momento em que as tropas aliadas varriam a Europa à procura dos nazistas.
O contraponto à arrogância inicial aparece em textos escritos nos anos 70, no Brasil. Encurralado pela falta de dinheiro e pela necessidade de manter em segredo sua verdadeira identidade (o que dificultava a possibilidade de viajar), passou boa parte dos últimos anos de sua vida sozinho e deprimido.
Trechos de um diário escrito pelo médico no início de 1976 revelam que seu autor passava grande parte de seu tempo envolvido com problemas domésticos no sítio em que morava. As declarações ali expressas alternam preocupações causadas por uma bomba d'água estragada ou um vazamento no teto com experiências a serem realizadas e comentários sobre a política alemã da época (anos 70).

Preço do silêncio
Posner e Ware mencionam em seu livro um relato da proprietária do imóvel em que Wolfgang Gerhard, o principal personagem da rede que escondeu o médico nazista no Brasil, diz que Mengele pagou 7.000 (não se sabe em qual moeda) pelos documentos originais do amigo austríaco.
Durante anos, Mengele usou as carteiras profissional, de identidade e de motorista que foram tiradas por Gerhard. Deu-se, apenas, ao cuidadoso trabalho de trocar as fotografias. Para levantar o dinheiro com o qual compraria mais uma identidade falsa, Mengele teria vendido um apartamento em São Paulo -perda preciosa, pois era com a quantia recebida com o aluguel que custeava a própria existência. No diário, Mengele menciona uma difícil decisão a tomar, que poderia ser a venda.

Sozinho e abandonado
Conforme a biografia, amigos do médico confirmavam que ele pagou, pelo menos a uma pessoa, pelo silêncio em relação a sua identidade. Este tema aparece com freqüência no diário e em cartas, onde ele demonstra estar decepcionado com amigos que pensavam que "tudo na vida tem um preço".
Num dos trechos do diário, a que a Folha teve acesso, Mengele se diz sozinho e abandonado. Reclama do dinheiro que precisa dar a uma pessoa que ele considerava amigo. "Como as coisas vão ficar? Agora eu sinto a solidão, ou melhor, o abandono de forma tão dolorosa como nunca".
A insatisfação por não poder viajar, até mesmo por dificuldades financeiras, aparece em pelo menos duas passagens. Em uma delas, o médico fala de uma pessoa que estava dificultando uma viagem planejada de carro ao Rio de Janeiro. Mengele concorda com a negativa, porque não teria dinheiro nem para a gasolina. "Tudo está ficando muito caro", escreve.
O declínio do nazista transparece não só no conteúdo de seus escritos, mas na sua letra, que melhora ou piora em seu diário conforme o estado de espírito. Uma análise sobre os escritos de Mengele ao longo do tempo demonstra que a letra elegante de "Fiat Lux" cedeu lugar, em 1976, a rabiscos muitas vezes incompreensíveis.


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