|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Presunçoso na Alemanha e amargurado no Brasil
Ironias sobre seus empregadores, nos anos 40, deram lugar à decepção com os amigos, nos anos 70
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Os manuscritos de Mengele descrevem, em um período de pouco mais de
30 anos, a história de um
homem presunçoso, no período
pós-guerra, ainda na Alemanha,
até a decadência de um indivíduo
abandonado e sem dinheiro, pouco antes de sua morte no Brasil.
Em uma carta não datada, destinada a uma mulher desconhecida,
o nazista relata sua estada no interior da Baviera, logo depois do final
da guerra. Na região, ele trabalhou
com uma família de agricultores,
os Fischer, conforme descreve o livro "Mengele: A História Completa", biografia feita por Gerald Posner e John Ware ("Mengele: The
Complete Story", 1986).
O manuscrito é intitulado "Fiat
Lux", ou "Faça-se a luz", em uma
provável referência ao início do
Gênesis, da Bíblia. Na época, conforme a biografia de Posner e Ware, Mengele usava o nome falso de
Fritz Hollman e os documentos
originais pertencentes a Fritz Ulmann, um físico que foi detido pelo
Exército americano com o médico
nazista. Os americanos não descobriram que Mengele era um carrasco nazista e o libertaram.
A carta detalha a convivência do
médico com a família de agricultores, a quem Mengele se refere como "primitiva" intelectualmente,
ou "abaixo da média" -termo recorrente. No texto, o médico diz
claramente que se considera intelectualmente superior àqueles com
que convive e chega a tratar do tema de forma irônica e arrogante.
Mãos finas demais
No dia-a-dia, como relata na carta, o médico Mengele parecia sempre fazer questão de exibir seus conhecimentos. Ele conta, por exemplo, que discutia sobre evolução
com o dono da casa, mas sempre
explicava que tudo o que sabia
acerca do assunto tinha sido adquirido em leituras que dizia fazer.
Mengele jamais revelou sua identidade à família. Mas, como relata a
biografia, os Fischer sempre acharam que as mãos de seu funcionário Fritz eram finas demais para
quem se apresentava como um trabalhador rural experiente interessado em conquistar um emprego
no momento em que as tropas aliadas varriam a Europa à procura
dos nazistas.
O contraponto à arrogância inicial aparece em textos escritos nos
anos 70, no Brasil. Encurralado pela falta de dinheiro e pela necessidade de manter em segredo sua
verdadeira identidade (o que dificultava a possibilidade de viajar),
passou boa parte dos últimos anos
de sua vida sozinho e deprimido.
Trechos de um diário escrito pelo
médico no início de 1976 revelam
que seu autor passava grande parte
de seu tempo envolvido com problemas domésticos no sítio em que
morava. As declarações ali expressas alternam preocupações causadas por uma bomba d'água estragada ou um vazamento no teto
com experiências a serem realizadas e comentários sobre a política
alemã da época (anos 70).
Preço do silêncio
Posner e Ware mencionam em
seu livro um relato da proprietária
do imóvel em que Wolfgang Gerhard, o principal personagem da
rede que escondeu o médico nazista no Brasil, diz que Mengele pagou
7.000 (não se sabe em qual moeda)
pelos documentos originais do
amigo austríaco.
Durante anos, Mengele usou as
carteiras profissional, de identidade e de motorista que foram tiradas por Gerhard. Deu-se, apenas,
ao cuidadoso trabalho de trocar as
fotografias. Para levantar o dinheiro com o qual compraria mais uma
identidade falsa, Mengele teria
vendido um apartamento em São
Paulo -perda preciosa, pois era
com a quantia recebida com o aluguel que custeava a própria existência. No diário, Mengele menciona uma difícil decisão a tomar, que
poderia ser a venda.
Sozinho e abandonado
Conforme a biografia, amigos do
médico confirmavam que ele pagou, pelo menos a uma pessoa, pelo silêncio em relação a sua identidade. Este tema aparece com freqüência no diário e em cartas, onde
ele demonstra estar decepcionado
com amigos que pensavam que
"tudo na vida tem um preço".
Num dos trechos do diário, a que a
Folha teve acesso, Mengele se diz sozinho e abandonado. Reclama do
dinheiro que precisa dar a uma pessoa que ele considerava amigo. "Como as coisas vão ficar? Agora eu sinto a solidão, ou melhor, o abandono
de forma tão dolorosa como nunca".
A insatisfação por não poder viajar, até mesmo por dificuldades financeiras, aparece em pelo menos
duas passagens. Em uma delas, o
médico fala de uma pessoa que estava dificultando uma viagem planejada de carro ao Rio de Janeiro.
Mengele concorda com a negativa,
porque não teria dinheiro nem para
a gasolina. "Tudo está ficando muito
caro", escreve.
O declínio do nazista transparece
não só no conteúdo de seus escritos,
mas na sua letra, que melhora ou
piora em seu diário conforme o estado de espírito. Uma análise sobre os
escritos de Mengele ao longo do
tempo demonstra que a letra elegante de "Fiat Lux" cedeu lugar, em
1976, a rabiscos muitas vezes incompreensíveis.
Texto Anterior: Ao lado de Che Guevara Próximo Texto: Pior que um monstro, um monstro doutor Índice
|