São Paulo, domingo, 21 de novembro de 2004

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+ livros

Escritor traça um retrato brutal da vida universitária em seu novo romance

Tom Wolfe contra a juventude transviada

JOHN FREEMAN
DO "THE INDEPENDENT"

Sentado, de pernas cruzadas, sobre um sofá dourado na biblioteca de seu apartamento no Upper East Side, em Manhattan, vestindo o terno branco que é sua marca registrada, gravata azul marinho e sapatos de duas cores, Tom Wolfe está o mais distante que se pode estar, nos EUA, de uma farra universitária. Na mesa à sua frente há uma estatueta do presidente [chinês] Mao [Tse-tung (1893-1976)]. As paredes ostentam estantes e mais estantes de livros sobre mestres flamengos e pintores modernos, além de retratos da filha de Wolfe em traje completo de hipismo. Pouco depois de o escritor fazer sua entrada, uma empregada sorridente o segue, carregando dois copos d'água. Nos 90 minutos seguintes, aqui na cidade que Wolfe retratou como selva de concreto em seu best-seller de 1987, "A Fogueira das Vaidades" (Rocco), a superfície dos copos se conserva calma e inalterada. Basta fazer uma visita a Wolfe para compreender por que a vida nos campi das universidades americanas era uma realidade distante -e chocante- para ele. De fato, seu novo romance, "I Am Charlotte Simmons" [Eu Sou Charlotte Simmons], é uma representação do pior pesadelo de qualquer pai. Ambientado na fictícia Universidade Dupont, o livro mergulha fundo na alma frita em óleo dos EUA e volta à tona com um retrato escandalizante do vazio pornográfico desse investimento de US$ 120 mil conhecido como faculdade: as farras e bebedeiras, as traições, as transas e a adoração dos atletas. Mesmo Wolfe, que faturou milhões nos revelando o que a multidão ensandecida anda fazendo, reconhece que a juventude americana pode ter perdido um pouco o pé. "Ainda bem que eu não sabia de tudo isso antes de meus filhos partirem para a faculdade", diz ele, com uma risada constrangida.

Alienação
É uma afirmação surpreendente, vinda, como vem, do maior cronista americano do espírito dos tempos atuais, especialmente em vista da eleição mais contenciosa da história do país. Se precisássemos de um lembrete de quão pré-11 de Setembro soam essas preocupações com relação à vida nos campi, bastaria olhar pela janela. A vista da biblioteca da casa de Wolfe se estende pelo Central Park, atravessando o "Midtown" e chegando até o local onde antes se erguia o World Trade Center. Pergunto a ele se, quem sabe, o espírito dos tempos teria passado ao largo dele, desta vez? "Cheguei a parar e dizer "espere um minuto", sabe", diz Wolfe, falando com a cadência lânguida de um sulista nato. "Tudo isso supostamente teria mudado tudo. Mas olhe para Nova York hoje. Os preços dos imóveis estão fora de controle... Além disso, eu constatei, nos campi, que a reação ao 11 de Setembro é zero. Para a maioria dos jovens, foi apenas uma coisa que aconteceu na televisão." Osama bin quem? Se você quiser entender por que mesmo os americanos jovens e bem instruídos estão fora de contato com a realidade, "Eu Sou Charlotte Simmons" vai lhe mostrar -e de maneira assustadora. Utilizando os monólogos interiores, que já viraram sua marca registrada, Wolfe mostra que os jovens são ignorantes porque uma coisa, e apenas uma, domina seus pensamentos: o sexo. A heroína do livro é uma moça ingênua e esforçada da zona rural da Carolina do Norte a quem a vulgaridade do ambiente social da universidade provoca asco. Há, também, os rapazes que a cortejam: JoJo Johansen, um jogador de basquete de 2,08 metros de altura, Hoyt Thorpe, um "wasp" (branco, anglo-saxão e protestante) ex-rico, e Adam Gellen, "nerd" e jornalista universitário que está profundamente envolvido num escândalo. A ação do livro soa como uma dramatização dos temas e das observações de seu ensaio "Hooking Up", no qual ele observou que, no ano 2000, "os estímulos sexuais já bombardeavam os jovens de maneira tão intensa e incessante que eles (os jovens) viviam inflamados pela coceira do tesão muito antes de chegarem à puberdade". No dia seguinte à sua chegada à universidade, Charlotte é "sexualmente irritada" quando sua colega de quarto traz um homem para o quarto para transar com ele. Enquanto isso, outros universitários fazem concursos, com a ajuda de cronômetros, para ver quem consegue levar "carne fresca" para a cama em menos tempo. O recorde a ser batido é sete minutos.

Visitas aos campi
Tudo isso poderia ser visto como melodrama -e nada mais- não fosse o fato de Wolfe ser tão cuidadoso em suas pesquisas. Ele visitou mais de uma dúzia de campi universitários ao longo de quatro anos, passando semanas em Stanford, na Universidade da Flórida e na Universidade da Carolina do Norte. Conversou com estudantes e assistiu a aulas.
Apesar de poucos anos terem se passado desde que fora submetido a uma cirurgia de cinco pontes coronárias, ele passou noites acordado até 4h ou 5h, de pé nos cantos de casas de irmandades universitárias, com os ouvidos atentos ao que se passava.
Se as vendas de "A Fogueira das Vaidades" elevaram Wolfe para o topo de uma pilha de romancistas sociais, "Um Homem por Inteiro" (Rocco) fincou uma espinha no corpo de seus críticos. Escrevendo sobre o livro para a [revista] "The New Yorker", [o escritor americano] John Updike disse que era "entretenimento, não literatura".
Se a reação de Tom Wolfe, na página impressa, freqüentemente consiste em partir para o embate com seus críticos -certa vez ele escreveu um ensaio em que chamou John Irving, John Updike e Norman Mailer de "Os Três Patetas"-, longe do teclado ele adota postura bem mais equânime. Embora as fotos tendam a mostrá-lo como aristocrata arrogante, visto em pessoa ele surpreende por sua fala mansa, quase refinada. Wolfe repete os expletivos que utiliza com tanta freqüência no livro, mas a contragosto, constrangido. No entanto o terno, o apartamento e as estantes de livros, todos são testemunhas de sua capacidade de ser camaleão.
Wolfe já começou a escrever um novo ensaio, sua resposta aos críticos, quem sabe. "Comecei a redigir um juramento de Hipócrates dos escritores", ele conta. "A primeira linha do juramento hipocrático dos médicos diz "primeiramente, não cause mal". Acho que, para os escritores, a primeira coisa seria: entretenha. Entreter é uma palavra muito simples. O entretenimento capacita as pessoas a passarem o tempo de maneira agradável. E qualquer escrito, -não importa se é poesia ou o quê- deve, em primeiro lugar, entreter. Foi apenas recentemente que se passou a valorizar a idéia de tornar os escritos tão difíceis que apenas uma aristocracia charmosa é capaz de compreendê-los."


Tradução de Clara Allain.

I Am Charlotte Simmons
688 págs., US$ 28,95 de Tom Wolfe. Ed. Farrar, Straus and Giroux (EUA).

Onde encomendar
Livros em inglês podem ser encomendados, em SP, na livraria Cultura (tel. 0/xx/ 11/ 3170-4033) e, no RJ, na Leonardo da Vinci (tel. 0/ xx/ 21/ 2533-2237) ou no site www.amazon.com



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