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Um cartel de truques literários
Inspirado em Dumas, "A Rainha do Sul" ficcionaliza o tráfico de drogas
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Não fica bem usar numa resenha
lugares-comuns do tipo "este aqui
você não pára de ler", "livro que se
lê de uma só sentada" etc. Mas é
mais ou menos isso o que foi escrito no "New York Times Book Review" a respeito de "A Rainha do
Sul", do espanhol Arturo Pérez-Reverte: o autor "sabe como prender a atenção do leitor a cada virada de página". A frase, estampada
na contracapa desta edição brasileira, é infelizmente verdadeira a
maior parte do tempo.
Digo infelizmente porque esse
romance policial narrando as
aventuras da mexicana Teresa
Mendoza, glamourosa rainha do
narcotráfico no litoral sul da Espanha, faz esforços demasiado visíveis para merecer a frase que citei.
Vejam-se as linhas iniciais da história: "O telefone tocou e ela compreendeu que iriam matá-la. Compreendeu com tanta certeza que ficou imóvel, com a lâmina no alto,
o cabelo colado no rosto em meio
ao vapor da água quente que pingava dos azulejos. Bip-Bip".
Vários truques se evidenciam
nesse trecho. A repetição do verbo
"compreender", por exemplo, engancha uma frase na outra, como
que empurrando o leitor para ir
adiante. Pérez-Reverte comprime
em quatro linhas uma ameaça de
morte, uma ação interrompida (a
lâmina suspensa no ar) e uma promessa de sensualidade (a mulher
nua no banho), como na abertura
de algum "blockbuster" de suspense. Por fim, há o toque "presencial" da onomatopéia ("bip-bip")
como que instando o leitor a atender, ele também, ao telefone. Corra! Vire a página! Para quem quer
se divertir, "A Rainha do Sul" oferece boa variedade de situações
desse tipo. Quanto a mim, desconfio quando me querem aliciar desse modo, como se quisessem injetar à força alguma droga altamente
viciante nas veias.
Mas o arsenal de Pérez-Reverte
não pára por aí, e duas páginas
adiante ele já se dirige a um segundo tipo de leitor, menos sensível
aos apelos do início. Um narrador
em primeira pessoa surge como
personagem do livro, fazendo as
vezes de repórter em busca de informações a respeito de sua personagem. A coisa funciona bem, porque acompanhamos as investigações de Pérez-Reverte em meio a
cenários reais, fazendo referência a
personagens existentes da política
mexicana -os bons tempos do
presidente Salinas de Gortari são
rememorados com nostalgia por
um traficante-, como se Teresa
Mendoza, a Rainha do Sul, tivesse
de fato existido.
Obtém-se assim uma razoável
quantidade de informações a respeito de como funcionam as coisas
no narcotráfico. Encontramos desde curiosidades locais -a atividade no México inspira um gênero
musical próprio, os "narcorridos",
em que se cantam as façanhas de
aviadores, pistoleiros, chefões e
suas mulheres, até passagens que
podem nos dar uma idéia geral das
ligações entre tráfico, política, indústria do turismo e finanças internacionais.
Uma ou outra cena de tortura
-maçaricos, genitais pingando
sangue- se alterna com expedições noturnas de lancha em busca
de carga escondida nas românticas
grutas do Mediterrâneo, havendo
também lugar para uma sóbria entrevista do narrador com alguma
incorruptível autoridade do Judiciário espanhol.
Viúva assustada
Um terceiro tipo de leitor pode se interessar pela personalidade da protagonista, cuja evolução ao longo do livro é bem construída: de assustada
viúva de um pequeno traficante
em Sinaloa, no norte do México,
Teresa Mendoza se torna uma elegante e invulnerável milionária do
tráfico, badalada pelas revistas de
fofocas; num ambiente totalmente
masculino, ela vai descobrindo as
próprias qualidades de sangue-frio
e rapidez mental, enquanto aprofunda também seus contatos
-pasme-se- com a literatura.
Seus dois livros preferidos -"O
Conde de Monte-Cristo", de Alexandre Dumas, e "Pedro Páramo",
de Juan Rulfo- inspiram um bocado da trama de Pérez-Reverte.
Aliás, o autor é conhecido não
apenas pelos romances no gênero
policial-histórico-erudito (detetives em meio a representantes da
alta cultura do passado), como "O
Quadro Flamengo" e "A Carta Esférica", mas por uma série de livros
de capa-e-espada à la Dumas que
se tornaram fenômeno editorial na
Espanha.
São muitos os pontos em que falta combustível literário a Pérez-Reverte. Por exemplo, o uso inconvincente do estilo indireto livre, comuníssimo (não sei o porquê) em
muitos romances que misturam
personagens reais aos de ficção. O
texto volta e meia quer dar a impressão de que estamos ouvindo o
pensamento da protagonista, como se o narrador estivesse bem
próximo do que acontece; mas tudo fica especulativo, sentencioso e
forçado, em comparação com a
carga de realidade que se incutiu
ao resto do livro.
A crença do autor no poder das
frases melodramáticas não condiz
com o ambiente supostamente
adulto e desencantado em que se
situa a narrativa. É assim que somos apresentados a alguém que
pode nos dar informações sobre os
primeiros passos de Teresa.
Trata-se de um homem "esquálido, de cabelo grisalho e ralo, que
tomava conta dos carros em troca
de algumas moedas. Estava sentado no chão, ao lado de um poste de
amarrar embarcações, olhando a
água suja sob o cais. De longe o tomei por alguém mais velho, maltratado pelo tempo e pela vida, porém, ao nos aproximarmos, constatei que não devia ter 40 anos.
Vestia calças remendadas e velhas,
camisa branca insolitamente limpa
e tênis. O sol e o infortúnio não
conseguiam esconder o tom acinzentado e sem brilho da pele envelhecida, coberta de manchas e com
cavidades profundas nas têmporas. Faltava-lhe a metade dos dentes, e pensei que parecia um desses
cadáveres que a ressaca do mar atira às praias e aos portos". Ainda estamos encafifados com esse "infortúnio que não consegue esconder o
tom acinzentado" dessa "pele envelhecida", quando, depois de
mais alguns parágrafos pungentes,
vem a revelação de impacto. Ele
era Céspedes, o poderoso comparsa do traficante Santiago Fisterra.
Mas... "nove anos em uma prisão
marroquina o deixaram assim".
Deixemos o livro como está.
Tanto esforço para empolgar o leitor parece supérfluo diante do que
o cinema americano pode fazer;
uma adaptação cinematográfica
seria, sem dúvida, o seu melhor
destino.
Mas o "blockbuster" típico sobre
o assunto já foi feito: é "Traffic", de
Steven Soderbergh, no qual a história da nossa infortunada Teresa
poderia ter sido incluída como
uma subtrama a mais, nem pior
nem melhor do que as outras.
A Rainha do Sul
521 págs., R$ 54,00
de Arturo Pérez-Reverte. Tradução
de Antonio Fernando Borges. Cia.
das Letras (r. Bandeira Paulista,
702, conjunto 32, CEP 04532-002,
SP, tel. 0/xx/ 11/3707-3500).
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