São Paulo, domingo, 21 de novembro de 2004

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Um cartel de truques literários

Inspirado em Dumas, "A Rainha do Sul" ficcionaliza o tráfico de drogas

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Não fica bem usar numa resenha lugares-comuns do tipo "este aqui você não pára de ler", "livro que se lê de uma só sentada" etc. Mas é mais ou menos isso o que foi escrito no "New York Times Book Review" a respeito de "A Rainha do Sul", do espanhol Arturo Pérez-Reverte: o autor "sabe como prender a atenção do leitor a cada virada de página". A frase, estampada na contracapa desta edição brasileira, é infelizmente verdadeira a maior parte do tempo. Digo infelizmente porque esse romance policial narrando as aventuras da mexicana Teresa Mendoza, glamourosa rainha do narcotráfico no litoral sul da Espanha, faz esforços demasiado visíveis para merecer a frase que citei. Vejam-se as linhas iniciais da história: "O telefone tocou e ela compreendeu que iriam matá-la. Compreendeu com tanta certeza que ficou imóvel, com a lâmina no alto, o cabelo colado no rosto em meio ao vapor da água quente que pingava dos azulejos. Bip-Bip". Vários truques se evidenciam nesse trecho. A repetição do verbo "compreender", por exemplo, engancha uma frase na outra, como que empurrando o leitor para ir adiante. Pérez-Reverte comprime em quatro linhas uma ameaça de morte, uma ação interrompida (a lâmina suspensa no ar) e uma promessa de sensualidade (a mulher nua no banho), como na abertura de algum "blockbuster" de suspense. Por fim, há o toque "presencial" da onomatopéia ("bip-bip") como que instando o leitor a atender, ele também, ao telefone. Corra! Vire a página! Para quem quer se divertir, "A Rainha do Sul" oferece boa variedade de situações desse tipo. Quanto a mim, desconfio quando me querem aliciar desse modo, como se quisessem injetar à força alguma droga altamente viciante nas veias. Mas o arsenal de Pérez-Reverte não pára por aí, e duas páginas adiante ele já se dirige a um segundo tipo de leitor, menos sensível aos apelos do início. Um narrador em primeira pessoa surge como personagem do livro, fazendo as vezes de repórter em busca de informações a respeito de sua personagem. A coisa funciona bem, porque acompanhamos as investigações de Pérez-Reverte em meio a cenários reais, fazendo referência a personagens existentes da política mexicana -os bons tempos do presidente Salinas de Gortari são rememorados com nostalgia por um traficante-, como se Teresa Mendoza, a Rainha do Sul, tivesse de fato existido. Obtém-se assim uma razoável quantidade de informações a respeito de como funcionam as coisas no narcotráfico. Encontramos desde curiosidades locais -a atividade no México inspira um gênero musical próprio, os "narcorridos", em que se cantam as façanhas de aviadores, pistoleiros, chefões e suas mulheres, até passagens que podem nos dar uma idéia geral das ligações entre tráfico, política, indústria do turismo e finanças internacionais. Uma ou outra cena de tortura -maçaricos, genitais pingando sangue- se alterna com expedições noturnas de lancha em busca de carga escondida nas românticas grutas do Mediterrâneo, havendo também lugar para uma sóbria entrevista do narrador com alguma incorruptível autoridade do Judiciário espanhol.

Viúva assustada
Um terceiro tipo de leitor pode se interessar pela personalidade da protagonista, cuja evolução ao longo do livro é bem construída: de assustada viúva de um pequeno traficante em Sinaloa, no norte do México, Teresa Mendoza se torna uma elegante e invulnerável milionária do tráfico, badalada pelas revistas de fofocas; num ambiente totalmente masculino, ela vai descobrindo as próprias qualidades de sangue-frio e rapidez mental, enquanto aprofunda também seus contatos -pasme-se- com a literatura. Seus dois livros preferidos -"O Conde de Monte-Cristo", de Alexandre Dumas, e "Pedro Páramo", de Juan Rulfo- inspiram um bocado da trama de Pérez-Reverte.
Aliás, o autor é conhecido não apenas pelos romances no gênero policial-histórico-erudito (detetives em meio a representantes da alta cultura do passado), como "O Quadro Flamengo" e "A Carta Esférica", mas por uma série de livros de capa-e-espada à la Dumas que se tornaram fenômeno editorial na Espanha.
São muitos os pontos em que falta combustível literário a Pérez-Reverte. Por exemplo, o uso inconvincente do estilo indireto livre, comuníssimo (não sei o porquê) em muitos romances que misturam personagens reais aos de ficção. O texto volta e meia quer dar a impressão de que estamos ouvindo o pensamento da protagonista, como se o narrador estivesse bem próximo do que acontece; mas tudo fica especulativo, sentencioso e forçado, em comparação com a carga de realidade que se incutiu ao resto do livro.
A crença do autor no poder das frases melodramáticas não condiz com o ambiente supostamente adulto e desencantado em que se situa a narrativa. É assim que somos apresentados a alguém que pode nos dar informações sobre os primeiros passos de Teresa.
Trata-se de um homem "esquálido, de cabelo grisalho e ralo, que tomava conta dos carros em troca de algumas moedas. Estava sentado no chão, ao lado de um poste de amarrar embarcações, olhando a água suja sob o cais. De longe o tomei por alguém mais velho, maltratado pelo tempo e pela vida, porém, ao nos aproximarmos, constatei que não devia ter 40 anos. Vestia calças remendadas e velhas, camisa branca insolitamente limpa e tênis. O sol e o infortúnio não conseguiam esconder o tom acinzentado e sem brilho da pele envelhecida, coberta de manchas e com cavidades profundas nas têmporas. Faltava-lhe a metade dos dentes, e pensei que parecia um desses cadáveres que a ressaca do mar atira às praias e aos portos". Ainda estamos encafifados com esse "infortúnio que não consegue esconder o tom acinzentado" dessa "pele envelhecida", quando, depois de mais alguns parágrafos pungentes, vem a revelação de impacto. Ele era Céspedes, o poderoso comparsa do traficante Santiago Fisterra. Mas... "nove anos em uma prisão marroquina o deixaram assim".
Deixemos o livro como está. Tanto esforço para empolgar o leitor parece supérfluo diante do que o cinema americano pode fazer; uma adaptação cinematográfica seria, sem dúvida, o seu melhor destino.
Mas o "blockbuster" típico sobre o assunto já foi feito: é "Traffic", de Steven Soderbergh, no qual a história da nossa infortunada Teresa poderia ter sido incluída como uma subtrama a mais, nem pior nem melhor do que as outras.


A Rainha do Sul
521 págs., R$ 54,00 de Arturo Pérez-Reverte. Tradução de Antonio Fernando Borges. Cia. das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/3707-3500).



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