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São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 2003

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+ sociedade

Entre as ameaças dos partidários de Saddam Hussein e os esforços de cooptação do governo dos EUA, burocratas do antigo regime se sentem desnorteados

A difícil decisão de um iraquiano comum

Richard Rorty
especial para a Folha

Coloque-se no lugar de um burocrata iraquiano de médio escalão. Você poderia ser de grande ajuda para as forças de ocupação norte-americanas, que se deram conta de que a cooperação irrestrita de pessoas em postos como o seu é indispensável. Você foi abordado por representantes de Paul Bremer [chefe da Autoridade Provisória da Coalizão], que lhe ofereceram incentivos. Mas você também foi ameaçado por supostos emissários de um movimento bem organizado de resistência do partido Baath [do ex-ditador Saddam Hussein]. Eles o alertaram de que, a menos que ajude a sabotar qualquer iniciativa por parte das autoridades norte-americanas, você, sua mulher e seus filhos poderão sofrer graves consequências. Essas pessoas garantem-lhe que, depois da partida dos americanos, a antiga liderança voltará a tomar conta do país, independentemente do que aconteça a Saddam Hussein, e será impiedosa com os colaboradores. Dizem-lhe que um grande número de suicidas em potencial já foi recrutado e que esses voluntários explodirão dezenas de soldados americanos a cada semana. Não apenas isso, dizem, mas também muitos mísseis de lançamento foram contrabandeados através da Síria. O uso desses mísseis garantirá que poucos helicópteros americanos levantem vôo. As tropas americanas serão, cedo ou tarde, expulsas das ruas das cidades iraquianas. Portanto, mesmo se os americanos ainda estiverem no Iraque daqui a um ano, eles estarão confinados em enclaves, impotentes para afetar o rumo dos fatos. Se você acreditar que os americanos irão, de acordo com as palavras do presidente Bush, manter o controle da situação, você poderá encontrar a coragem necessária para desconsiderar os alertas sobre os perigos da colaboração. Mas, se acreditar que o medo de Bush de ser derrotado nas eleições presidenciais de novembro de 2004 fará com que leve de volta para casa a maior parte das forças americanas antes da criação de um regime democrático estável, você certamente obedecerá aos líderes da resistência. Você gostaria muito de colaborar com os americanos, porque espera algum dia poder viver em um país livre e acredita na sinceridade dos EUA em querer levar as liberdades da democracia ao mundo árabe. Mas você não se sente capaz de prever qual será a atitude do governo norte-americano. Assim, você coloca em prática sua fluência em inglês, acessando todas as fontes de informação disponíveis sobre política e opinião pública americanas, na esperança de descobrir como as forças de ocupação poderão agir diante de diferentes contingências.

Previsão
O que o burocrata iraquiano que eu acabei de descrever encontraria em meio às tentativas de acumular informações suficientes para fazer uma previsão confiável? Ele ficaria sabendo que alguns dos líderes do Partido Democrata e um grande número de democratas no Congresso querem recusar a verba de bilhões de dólares necessária para apoiar a reconstrução do Iraque. Esses políticos compartilham da opinião dos estudantes de esquerda que fizeram manifestações nas ruas no início da guerra e que agora usam broches com os dizeres "tragam nossos soldados para casa". No entanto outros líderes democratas, a maioria de esquerdistas mais velhos, insistem que essa decisão seria desastrosa. Segundo eles, se o Iraque sucumbir ao despotismo ou se o Baath algum dia voltar ao poder, os danos ao prestígio americano seriam tão grandes que impossibilitariam os EUA de ser um protagonista do cenário mundial. Eles são a favor de permanecer pelo tempo necessário para concretizar as promessas de Bush, apesar de acharem que a guerra foi um terrível engano.

O governo dos EUA está nas mãos de pessoas que estão percebendo que foram enganadas e que suas previsões otimistas não têm chance de se realizar

Eles acreditam que toda a aventura iraquiana foi consequência do fato de Richard Perle [do Conselho de Políticas de Defesa do Pentágono] e Richard Cheney [vice-presidente dos EUA] terem sido ludibriados por um homem chamado Chalubi, que de alguma forma conseguiu convencer as pessoas mais influentes em Washington de que, meses após a derrubada de Saddam, ele teria conseguido unir o povo iraquiano em torno de si. Esses políticos continuam furiosos com a credulidade do presidente Bush, mas acreditam que os EUA devem conseguir sair da enrascada em que se meteram. Nosso iraquiano também ficaria sabendo que, do outro lado do espectro político, todos os políticos republicanos, assim como a cada vez mais poderosa mídia de direita, ainda insistem em dizer que a situação no Iraque é bastante condizente com os planos traçados, apesar do grande número de soldados americanos mortos. Eles continuam insistindo que a invasão do Iraque foi uma medida indispensável para a condução de um programa vasto, idealista e heróico de levar a democracia a todo o Oriente Médio e a paz ao mundo. Eles ainda depositam total confiança em Perle, [Paul] Wolfowitz [subsecretário da Defesa], [Donald] Rumsfeld [secretário da Defesa] e Cheney e classificam imediatamente as críticas da esquerda como sendo antipatrióticas. Os republicanos ainda estão apostando na reeleição do presidente Bush no ano que vem, graças aos eleitores que acreditam que o fato de tirar do cargo um presidente em tempos de guerra significa apunhalar pelas costas o comandante-chefe das forças do país e trair a bandeira americana. Nosso iraquiano ficará surpreso ao descobrir que a grande maioria dos americanos ainda acredita que, apesar da total falta de provas, o Iraque serviu de base para as operações da Al Qaeda e que a deposição de Saddam Hussein diminuiu as chances de futuros ataques terroristas (que outro motivo, devem pensar essas pessoas, o presidente teria para fazer a guerra?). Mas o iraquiano também descobrirá que as pesquisas mostram uma acentuada queda nos índices de aprovação do presidente. Essa queda reflete o fato de que as mesmas pessoas que ignorantemente acreditam que Saddam e Osama bin Laden estavam mancomunados ficaram nervosas ao se dar conta de que os filhos e filhas de seus vizinhos, que estão servindo no Iraque, são alvos fáceis e de que há grandes chances de que ainda permaneçam lá, sujeitos a imprevisíveis ataques de guerrilha, durante anos e anos. O presidente Bush assumiria um grande risco político ao manter as tropas no Iraque, pois isso significaria mais mortes de americanos a cada semana, sem previsão de término do conflito. Enquanto essas mortes continuarem, sem nenhuma previsão para o fim dos combates, as críticas ao presidente aumentarão e se tornarão cada vez mais difundidas.

Incertezas
Duvido de que o fato de ler todas as revistas e jornais americanos e escutar todas as transmissões televisivas americanas fosse de grande ajuda para resolver o dilema do iraquiano que descrevi acima. Isso porque o próprio presidente Bush não seria capaz de lhe dizer por quanto tempo as tropas deverão permanecer no Iraque. Todo mundo concorda em que Karl Rove (o conselheiro político do presidente) tem mais influência na Casa Branca do que qualquer outra pessoa -até mesmo do que Rumsfeld e Cheney.
Portanto, o presidente provavelmente tomará suas decisões com base nas previsões de Rove sobre o que irá agradar aos eleitores, em vez de levar em conta o bem-estar do Iraque ou dos EUA. Mas, no momento, ele ainda não sabe ao certo qual estratégia poderá melhorar suas chances de reeleição.
Se eu fosse consultado por um iraquiano tentando descobrir o que poderá acontecer em seu país, eu poderia apenas lhe dizer que o governo dos EUA está nas mãos de pessoas que estão gradualmente percebendo que foram enganadas e que suas previsões otimistas não têm praticamente nenhuma chance de se realizar. Eles estão pensando no preço político que terão que pagar pelos seus erros. Poderão fazer qualquer coisa.


Richard Rorty é filósofo americano e professor na Universidade Stanford. É autor de, entre outros, "Para Realizar a América" (DP&A) e "Objetivismo, Relativismo e Verdade" (Relume-Dumará).
Tradução de Leslie Benzakein.


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