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São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 2003

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+ livros

BLOOM O INSACIÁVEL

O CRÍTICO AMERICANO EXPLICA SUA NOVA OBRA, "SABEDORIA E LITERATURA", QUE SAI NOS EUA EM 2004, E FALA DOS PROJETOS FUTUROS

"Quando me recuperei e voltei ao trabalho, me dei conta de que queria escrever um livro sobre a experiência de ter sobrevivido"

Sueli Cavendish
especial para a Folha

Harold Bloom, autor de "O Cânone Ocidental" [Objetiva], "Um Mapa da Desleitura" e "A Angústia da Influência" [estes dois pela ed. Imago], é hoje, talvez, a estrela mais cintilante da galáxia dos "Sterling Professors", comenda mais alta que se confere, na Universidade Yale [EUA], a docentes de vários campos, ostentada no passado por Erich Auerbach e Paul de Man. Não raro os "Sterling" são também prêmios Nobel, como Sidney Altman, com um prêmio em química, e o recentemente morto James Tobin, em economia.
O site da biblioteca de Yale na internet revela uma produção volumosa. São 457 obras em que Bloom figura como autor, co-autor, editor, antologista e comentarista. O espectro é tão amplo quanto a imaginação alcança. Bloom, conhecido por um apetite cetáceo pela leitura, o que lhe dá fôlego para a veloz alternância entre visão panorâmica e foco, em sua crítica, escreveu introduções para os 150 volumes das edições "Chelsea House". Tudo isso serviu, segundo ele, para tornar sua escrita mais acessível ao grande público.
Northrop Frye, disse, foi um precursor importante. Leu "Fearful Symmetry" (Simetria Medonha) uma centena de vezes, entre 1947 e 1950, mas, se o lesse de novo, discordaria de tudo. Por aí se chega a sua marca: a relação agonística em várias frentes, inclusive com a sua própria obra, no que a escolha do inimigo, traço nietzschiano, é fundamental. Primeiramente se volta contra T.S. Eliot e a Nova Crítica, resgatando os românticos.
Em seguida contra Derrida e os desconstrucionistas de Yale. E por meio de "Yates", de 1970, dissocia o trabalho da imaginação do lógos grego, substituindo-o pelo hebraico "dahvar", "palavra-evento" que representa a "extração do reprimido". Yates o desveste da imaginação blakiana, Nietzsche lhe fornece o tropo central -"vontade de poder"- com que se desvia de si mesmo. A repressão de Freud, deslida, é o terceiro elemento com que funda uma psicopoética singular e idiossincrática, a partir da qual seus livros definitivos serão escritos. Na entrevista a seguir, ele fala do passado, de planos para o futuro e de seu novo livro -"Sabedoria e Literatura", ainda no prelo-, que é sustentado por uma indagação bíblica a seu ver incessante: "Onde encontrar a sabedoria?".

O sr. acaba de escrever um livro chamado "Literatura e Sabedoria..."
"Sabedoria e Literatura", que será publicado em setembro [de 2004], em Nova York, pela Penguin Riverhead. Na primeira parte, "A Vontade de Encontrar Nossa Sabedoria", há um capítulo sobre o livro das Sagradas Escrituras, o "Eclesiastes" ou "Qoheleth", como é chamado, e sobre o "Livro de Jó". Depois vêm os gregos -Platão e a condenação da poesia, disputa agonística em "A República". Tematizo assim a querela dos antigos entre poesia e filosofia, tratando-a como "vontade de verdade". O terceiro capítulo é chamado "Cervantes e Shakespeare", porque são eles não apenas os maiores dentre os escritores seculares como também são escritores sábios, no sentido mais fundamental.
A segunda seção, "Idéias de Eventos", atualiza a afirmação nietzschiana ("Assim Falou Zaratustra") de que grandes idéias constituem grandes eventos. O que faço é emparelhar quatro conjuntos de figuras: Montaigne e Francis Bacon, no século 17, Samuel Johnson no século 18, Nietzsche e Schopenhauer, no século 19, Freud e Proust, no século 20. O epílogo -ou coda- começa por uma reflexão sobre o Evangelho gnóstico de Tomé e termina com um ensaio sobre a sabedoria cristã de santo Agostinho.

Parece um livro monumental...
Não, é apenas um livro médio, maior que o livro sobre Hamlet. Escrevi a introdução, elaborando o tema da sabedoria, antes de adoecer gravemente, e rejeito-a agora. Era outro livro que queria, antes de ter uma úlcera perfurada e sofrer um ataque cardíaco.
Quando finalmente me recuperei e voltei ao trabalho, me dei conta de que queria escrever um livro radicalmente distinto daquele desenhado na primeira introdução, refletindo agora a experiência de ter sobrevivido. É o que farei na nova introdução, que ainda falta escrever.

O público brasileiro não conhece a sua obra primeira, a obra do jovem Bloom, que são os livros do ciclo romântico. O que o sr. teria a dizer, por exemplo, sobre "Shelley's Mythmaking" (Shelley - Engenho de Mitos)?
Foi o primeiríssimo dos meus livros, publicado, creio, em janeiro de 1959, em que tento resgatar Shelley da escola crítica então dominante (Nova Crítica). Seguindo os preceitos de T.S. Eliot, essa escola avaliava Shelley como um mau poeta, um poeta juvenil. Afirmo, ao contrário, que Shelley era um poderoso criador de mitos, análogo a Blake.


"Critico os que ainda acham que a psicanálise é uma ciência e que pode contribuir para a biologia; Freud nutria a fantasia de erguer uma ponte entre esses campos, imaginava ser um conquistador intelectual"


Três anos depois escrevi um livro geral -"A Companhia Visionária", sem tradução para o português. É um estudo dos seis maiores poetas românticos ingleses: William Blake, William Wordsworth, Percy B. Shelley, Samuel Taylor Coleridge, Lord Byron and John Keats. A esse se seguiu, em 1963, "O Apocalipse de Blake - Um Estudo do Argumento Poético" e, ainda sobre esse poeta, um comentário bastante elaborado, publicado em 1965, em "Poesia e Prosa de William Blake", editado por David Erdman. Creio também que um livro poderoso dessa época é "A Leitura como um Poder".
Há, por outro lado, uma enorme antologia, que será publicada nos EUA em março, "O Melhor da Poesia de Língua Inglesa, de Chaucer a Robert Frost". Na verdade não fui além de Hart Crane, que nasceu em 1899. Deliberadamente excluí poetas do século 20 para torná-la factível e evitar todos os problemas políticos em que inevitavelmente me envolveria.
São ao todo mil páginas, 700 de poesia e 300 de comentários, incluindo um antigo ensaio de 50 páginas, "A Arte de Ler Poesia", com muito do que penso sobre o ofício da leitura. Nesse momento o meu agente negocia um contrato com a Penguin Riverhead para um livro que começo a escrever, "Jesus e Cristo", um livro que pode vir a ser um tanto controverso, o que quero evitar a todo custo.
Ele expressa o meu crescente interesse por essa mescla instauradora da consciência ocidental, entre os fundamentos gregos da encarnação e os fundamentos hebraicos de nossa moral e religião, da nossa espiritualidade. Depois de "Jesus e Cristo" retornarei, agora pela última vez, a Shakespeare, num livro que se chamará "Shakespeare - A Obra e o Escritor", com base na biografia íntima de Shakespeare, na exploração de sua interioridade, de modo a afirmar que ele influencia a si mesmo e às peças que antecedem as que vai escrever, um processo explicável pela natureza do conflito que dinamiza o seu circuito interior. É uma abordagem um tanto indutiva, pois na verdade é bastante questionável a afirmação de que Shakespeare se revela em sua obra -nem sequer nos sonetos, embora sejam peças de circunstância, enquanto a genialidade, esta sim, manifesta-se em tudo que escreve. É uma empreitada difícil, considerando o método, mas pretendo torná-la eficaz.
A trilogia termina com um livro sobre Freud, estruturado por dois argumentos antitéticos. De um lado critico os que evitam o influxo de sua poderosa mitologia -quem pode negligenciá-lo por seu estilo soberbo ou por haver sido dramaturgo de si mesmo, nós que vivemos saturados por suas especulações, a libido, o Édipo, o impulso de morte, o inconsciente, o mecanismo de defesa, toda a deslumbrante panóplia de suas invenções? De outro, critico os que ainda acham que a psicanálise é uma ciência e que pode contribuir para a biologia. Freud nutria a fantasia de erguer uma ponte entre esses campos, imaginava ser um conquistador intelectual.
Montaigne, este sim, grande ensaísta, merece esse título, como um campeão das línguas européias ocidentais. Depois disso, eu, que já tenho 73 anos, estarei com 77 e duvido de que ainda escreva nessa idade. Minha saúde está bem melhor, mas estive muito doente, gravemente doente, a tal ponto que nada pude fazer pelo meu livro "Gênio" [ed. Objetiva]. Entrei de fato em colapso.

O sr. fez uma revisão drástica da sua leitura do romantismo baseada no imaginário de Blake...
O livro revisionista por excelência, "Poesia e Repressão", é uma revisão constituída em si mesma como "comédia revisionista". E o meu livro sobre Yates, de 1970, no qual interpreto a sua poesia dos últimos anos como uma repressão das primeiras conquistas do seu imaginário, também constitui um marco importante nesse desvio da minha obra primeira e nessa brutal revisão do romantismo que empreendo.
Era comum, no alto modernismo, descartar-se o primeiro Yates, tratá-lo como um esteta, um romântico atrasado. Agora, na minha velhice, encanto-me com a genialidade da sua lírica juvenil. Por isso argumento que ele é o poeta da abstinência, da repressão, da repetição, numa modulação cada vez mais afinada, dos antigos tropos, elevados ao sublime, aos limites da arte. Yates era um ocultista e um visionário.
De 1970 é também "Romantismo e Consciência", editado por mim e reunindo ensaios meus e de William Golding. Nele afirmo que o problema central do romantismo é a difícil relação entre natureza e consciência, e seu principal problema histórico é a relação entre os conceitos cambiantes de natureza e a Revolução Francesa. Enfim, escrevi tantos livros durante a minha vida que é difícil manter a conta.

A que se deveu o desvio, a desleitura posterior de suas próprias idéias?
O divisor de águas da minha obra é "A Angústia da Influência", traduzido em Portugal e no Brasil, traduções rivais, embora a brasileira seja superior. Nele defendo a idéia de que os poetas poderosos se engajam numa contenda agonística e multifacetada com outros poetas, relendo suas obras com a intenção de revolvê-las, numa disputa quase edipiana da qual surge a originalidade.
Esse livro e "Um Mapa da Desleitura", "Cabala e Crítica" e "Poesia e Repressão" [ed. Imago], nos quais elaboro a idéia da influência, foram fundamentais, transformando o meu julgamento desde então. A idéia da influência é uma preocupação semovente em minha vida e em minha obra, desde que a tomei por objeto em 1967. Há 36 anos, portanto, durmo e acordo com ela.

Quem o sr. deslê em "Sabedoria e Literatura?"
Bem, num certo sentido eu me desvio do primeiro Bloom. Faço ainda hoje um julgamento puramente estético da literatura, ainda rejeito qualquer visada moral ou política. Mas penso agora que não é a pura causa do brilho que a move ou o seu esplendor que desfrutamos, mas a carga de sabedoria humana.

Há mais poder na poesia romântica inglesa do que na filosofia? Na Alemanha essa relação se inverte?
Os alemães tiveram Hölderlin, um poeta de grande magnitude e, no século 20, Rilke, Trakl, Celan e tantos outros. Mas, assim como os franceses têm sido dominados por Descartes, os alemães tem sido dominados por Kant e Hegel. Os grandes filósofos ingleses, Thomas Hobbes e David Hume, não influenciaram a poesia inglesa ou a americana como Geoffrey Chaucer, William Shakespeare ou John Milton o fizeram. É uma tradição bem diversa, como a espanhola e a portuguesa, que não tem grandes filósofos, mas produziu poetas grandiosos, como Camões, no passado, que trato, no meu livro "Gênio", como um grande poeta épico, cuja força imaginativa anima a tradição literária portuguesa, um poeta que enumera o custo humano de todas as coisas.
Assim como Pessoa, moderno, é também fascinante e, se tivesse vivido mais tempo, povoaria o universo de heterônimos. Sem esquecer Eça de Queirós, no século 19, soberbo romancista. E Sophia de Mello Breyner, poeta extraordinária, que figura na minha lista do "Cânone". O Brasil tem excelentes escritores. Machado de Assis não foi incluído em "O Cânone Ocidental" em razão de uma tradução opaca que me caiu nas mãos. Mas, quando li "Memórias Póstumas de Brás Cubas" na tradução inspirada de Gregory Rabassa, percebi sua grandeza e o examino em "Gênio". Vejo nele uma ponta do ouvido trágico shakespeariano. "Dom Casmurro", na igualmente inspirada tradução de John Gledson, revela a fina ironia desse autor.
Em "Brás Cubas", vê-se que ele é possuído até as entranhas pelo Stern de "Tristram Shandy", o que em nada diminui a sua originalidade, mas o liberta do jugo das pressões puramente nacionalistas. Fui definitivamente fisgado por Machado de Assis e leio cada uma das suas frases com júbilo.
Considero-o um milagre, diante das circunstâncias em que viveu, neto de escravos num país em que a abolição só veio em 1888, uma prova da autodeterminação do gênio e da arte. "Brás Cubas", ao observar que Moisés, suposto autor do Torá [livro sagrado dos judeus], fala de sua morte no final, inverte o procedimento da escritura. Narra do túmulo, do ponto de vista da eternidade, sobre a qual nada nos diz, pois nada há a dizer. Morre sem queixas ou remorso, apenas com o sentimento de que termina o jogo como vencedor. Como não teve filhos, não transmite um legado de misérias. O seu balanço é "o de uma negação a mais nesse capítulo de negatividades". Oblívion -ou o esquecimento-, aquilo que também enfrentarei muito em breve, em Machado de Assis singularmente nos diverte e se converte em entretenimento. Mas no Brasil há grandes poetas também, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Mello Neto e Sebastião Uchoa Leite.

Sueli Cavendish é professora visitante do departamento de ciência da literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


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