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São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 2003

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PONTO DE FUGA

Correntezas escuras

Jorge Coli
especial para a Folha

"Mystic River" é um título mais poético do que "Sobre Meninos e Lobos". Nome de um rio que existe de fato, sugere transcendência e mistérios metafísicos: talvez seja mais adequado e necessário para o filme do que para o livro. O roteiro, seguido por Clint Eastwood, mantém-se fiel à história contada por Dennis Lehane em seu romance [publicado no Brasil pela Companhia das Letras]. Há entre eles uma diferença profunda, no entanto, que se exaspera para além do fio narrativo, e cuja comparação faz sobressair a natureza de cada um.
"Mystic River", o livro, está ancorado num lugar preciso, bem caracterizado, um subúrbio pobre, mas não miserável, de Boston. É um romance realista, no sentido em que são realistas as obras de Balzac. Cenários bem descritos, numerosos objetos que participam do cotidiano, tudo impõe força visual. Um velho ferro elétrico em pleno uso e ótima forma acusa a fragilidade dos produtos contemporâneos, causada pela lógica do consumo; o frango deixado na geladeira pela mãe que vai ao bingo, quando o filho, suspeito de homicídio, volta da delegacia, pode ser sinal de solidão e desamparo.
Personagens brotam de genealogias bem traçadas e fundem-se ao meio; suas individualidades complexas participam de um tecido coletivo. Há acaso e fatalidade, mas que seguem juntos como agentes complementares de um determinismo social. As angústias são provocadas por tudo isso e vazadas em verdadeira substância literária, sem procedimento esquemático nem espírito de sistema. Atingem a universalização humana de dramas e problemas navegando sempre por águas de cores norte-americanas. O filme é outra coisa.

Naufrágio - Clint Eastwood retomou, sempre, a questão ética do dever, da justiça, do certo, do errado. Em tom menor, seus filmes fazem também voltar o tema dos sentimentos amorosos, por vezes acoplados ao princípio implacável da escolha justa que impõe sacrifícios: é assim em "As Pontes de Madison".
Algumas produções mais recentes trouxeram relações secretas, íntimas, entre vítima e assassino, ligados por vasos comunicantes invisíveis e mágicos, bem perceptíveis em "À Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal", em "Dívida de Sangue". Mas, nesses dois casos, há um destino que, de algum modo, se cumpre e indica sentido aos acontecimentos.
"Mystic River" rompe com a ética e com o dever, com o justiceiro capaz de restabelecer a ordem no mundo, com a intensidade amorosa portadora de beleza, para instaurar uma abominável crise nas convicções que Clint Eastwood até agora demonstrou. Seu filme não se interessa por realismos: expõe personagens, situações, imagens, de força emblemática. O meio está ali, as personalidades também, mas eles se tornam secundários e discretos, irrelevantes diante de um labirinto frio e uma angústia maior. A crença enérgica em valores positivos, na ação corretora, é desmentida pela natureza infame das relações humanas. As vítimas são perdedores; os mortos não têm razão; os vivos podem carregar remorsos tremendos, mas as consciências terminam por se acomodar numa ordem em que a ética cede ao compromisso. Ai dos vencidos.

Proa - Não há cinismo nenhum em "Mystic River". O filme tem a espessura repulsiva e angustiante de águas turvas. A fala consoladora da mulher de Jimmy, transformando o assassino em rei soberbo, é o ponto culminante da infâmia recobrindo qualquer possibilidade moral. No fim, dois dedos imitam um revólver atirando, simulacro impotente de armas que, no Velho Oeste e ainda em "Os Imperdoáveis", eram agentes da convicção ética.

Leme - Clint Eastwood, em "Mystic River", simplifica personagens e o mundo em que vivem. Nisso, distancia-se do realismo presente no livro. Inventa uma poesia visual sombria, portadora de meditações sem saída. Os atores excepcionais que emprega, sobretudo os protagonistas (Sean Penn, Tim Robbins e Kevin Bacon), não buscam uma qualquer "naturalidade", mas uma tensão trágica, no limite do "overacting". Fazem lembrar animais se debatendo ou monstros desesperados. É apavorante o rosto de Tim Robbins diante da morte, em meio à escuridão.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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