São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 2008

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Só um instante

O BIÓGRAFO PIERRE ASSOULINE, QUE ESTÁ LANÇANDO "CARTIER-BRESSON - O OLHAR DO SÉCULO", EXPLICA COMO O INICIADOR DO FOTOJORNALISMO RECRIOU O MODO COMO O HOMEM VÊ O MUNDO HOJE

MARCOS FLAMÍNIO PERES
EDITOR DO MAIS!

O homem, a máquina: aquela que foi a oposição mais trágica do século 20 se transformaria em uma simbiose perfeita por meio do fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson -que estaria fazendo cem anos- e sua mítica Leica. De um lado, o olhar formado tanto na clássica tradição humanística quanto em seu momento de maior ruptura -o surrealismo.
De outro, um aparelho que representou um notável avanço tecnológico, ao libertar o fotógrafo da imobilidade do tripé -a máquina "ideal", como diz na entrevista abaixo o biógrafo Pierre Assouline, cujo "Cartier-Bresson - O Olhar do Século" (ed. L&PM, trad. Julia da Rosa Simões, 352 págs., R$ 56) está sendo lançado no Brasil. Assouline lembra como essa conjunção de fatores contraditórios em Cartier-Bresson -precisão, delírio e tecnologia- acabaria desembocando na criação do fotojornalismo.
Para ele, está embutida aí a expressão que se tornaria um clichê: o "instante decisivo", que Cartier-Bresson -ou HCB, com era conhecido no meio- foi buscar em um autor canônico da literatura francesa do século 17, o cardeal de Retz. Assouline lembra que a própria experiência decisiva da vida de HCB, que redefiniu sua relação com a fotografia, foi o período de três anos que passou detido em um campo alemão. Perdeu não só a liberdade de ir e vir, mas, sobretudo, a liberdade de fotografar.
Dias antes de ser pego, conta Assouline, ele enterrou sua Leica para que não fosse confiscada pelos nazistas. A primeira coisa que fez ao se ver livre foi desenterrá-la.

 

FOLHA - Como Cartier-Bresson conseguiu combinar influências tão opostas, como a tendência ao devaneio inerente ao surrealismo e a precisão do fotojornalismo?
PIERRE ASSOULINE
- Quando se é surrealista na juventude, permanece-se surrealista por toda a vida. Você tem razão em sublinhar o antagonismo entre o surrealismo e o espírito geométrico em Cartier-Bresson, mas ele conseguiu resolver esse paradoxo por meio de suas fotos e de sua personalidade. Há uma tendência ao fantástico, como nas fotos do México e da Espanha dos anos 1930. Esse fantástico, que é a sua parte de loucura e anarquismo, irá ressurgir regularmente em sua obra, mas não irá impedir o culto das linhas e das perspectivas. Isso coexiste nele, e não se trata de esquizofrenia, mas do embate entre o yin e o yang -e dessa tensão nasce sua energia.

FOLHA - A prisão em um campo na Segunda Guerra mudou seu olhar?
ASSOULINE
- Sim, e por duas razões: a primeira foram as experiências da miséria, da promiscuidade, da angústia, do tédio e da amizade que nasceu daí. A segunda foi ter sido condenado a viver três anos sem sua máquina, o que o levou a inventar uma teoria sobre tomadas sem a máquina -apenas mentalmente. Enfim, ao longo desses três anos, em nenhum momento ele abandonou a idéia de fugir, afirmando, desse modo, a marca essencial de seu caráter.

FOLHA - Como o sr. vê o fotojornalismo hoje? Ele é ainda praticado como Cartier-Bresson o fazia?
ASSOULINE
- Cada vez menos, mas, caso se queira, ainda é possível. Pode-se passar seis meses em qualquer parte apenas com uma Leica e filme em preto-e-branco e fazer coisas magníficas. O problema é que não existem mais grandes revistas para publicar isso. É preciso queimar etapas e fazer diretamente uma exposição e um álbum. Mas mesmo isso se torna cada vez mais difícil e, quando ocorre, tem, na maior parte das vezes, uma "pegada" artística, enquanto Cartier-Bresson sempre se considerou um fotojornalista.

FOLHA - Em sua opinião, foi a invenção da Leica que propiciou o surgimento do fotojornalismo?
ASSOULINE
- Sim.

FOLHA - E por que optou por ver o mundo através das lentes de uma Leica -e, não, por exemplo, através de uma Rolleiflex?
ASSOULINE
- Ele dizia que, com uma Rolleiflex, fica-se prostrado diante do objeto, enquanto com uma Leica a gente o ataca. Cartier-Bresson era antes de tudo um "atacante", mesmo tendo horror da agressão maior que é o flash. Ele nasceu para a fotografia ao mesmo tempo em que surgia a Leica. Ela lhe convinha à perfeição: pequena, discreta, leve. Ideal.

FOLHA - Como Cartier-Bresson reagiria hoje à câmera digital?
ASSOULINE
- Reagiria mal. Ele era contra.

FOLHA - Ele era fascinado pelos EUA, sobretudo por Nova York. A América mudou seu imaginário?
ASSOULINE
- Os EUA não mudaram seu imaginário, ao menos não mais que os demais países e menos que a Índia, por exemplo, onde viveu por três anos. Mas a América o fascinava e ele lhe era extremamente grato. Pois foi lá onde recebeu reconhecimento e consagração, quando montou sua primeira exposição em Nova York, num momento em que ainda era desconhecido na Europa.

FOLHA - Cartier-Bresson conheceu vários países "exóticos" -de um ponto de vista europeu-, como Índia e Costa do Marfim. Ele não quis conhecer o Brasil?
ASSOULINE
- Como viajava muito, quando deixava de visitar algum país, sempre lhe perguntavam se sentia desprezo, indiferença ou hostilidade. Mas o caso era que uma vida só não lhe bastou para conhecer todos os lugares do mundo, ao menos como ele o entendia -isto é, passando lá meses ou até anos. O Brasil simplesmente não aconteceu -apenas isso-, assim como não aconteceu com Marrocos e outros países. A ocasião não apareceu.

FOLHA - Neste ano comemora-se também o centenário de nascimento do antropólogo Claude Lévi-Strauss. O sr. vê similaridade entre o olhar de ambos em relação ao "outro". Chegaram a se conhecer?
ASSOULINE
- Cartier-Bresson e Lévi-Strauss são dois grandes burgueses franceses, que receberam educações parecidas. Não acredito que seus caminhos tenham se cruzado, mas tinham um ponto em comum: eram humanistas. Dois grandes clássicos bem franceses.

FOLHA - Cartier-Bresson era um grande admirador de Marcel Proust. Qual era sua "madeleine" [referência à cena clássica de "Em Busca do Tempo Perdido" em que o narrador evoca seu passado ao tomar uma xícara de chá com madeleine]?
ASSOULINE
- Sua "madeleine" eram a faca de caça que levava no bolso e uma estatueta trazida da África nos anos 1920, guardada em sua estante.

FOLHA - Para o sr., qual é sua foto mais importante? E para ele?
ASSOULINE
- Não tenho a mínima idéia.


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