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Só um instante
O BIÓGRAFO
PIERRE ASSOULINE,
QUE ESTÁ LANÇANDO "CARTIER-BRESSON - O OLHAR DO SÉCULO",
EXPLICA COMO
O INICIADOR DO FOTOJORNALISMO RECRIOU
O MODO COMO
O HOMEM
VÊ O MUNDO HOJE
MARCOS FLAMÍNIO PERES
EDITOR DO MAIS!
O homem, a máquina: aquela que foi a
oposição mais trágica do século 20
se transformaria
em uma simbiose perfeita por
meio do fotógrafo francês
Henri Cartier-Bresson -que
estaria fazendo cem anos- e
sua mítica Leica.
De um lado, o olhar formado
tanto na clássica tradição humanística quanto em seu momento de maior ruptura -o
surrealismo.
De outro, um aparelho que
representou um notável avanço tecnológico, ao libertar o fotógrafo da imobilidade do tripé
-a máquina "ideal", como diz
na entrevista abaixo o biógrafo
Pierre Assouline, cujo "Cartier-Bresson - O Olhar do Século" (ed. L&PM, trad. Julia da
Rosa Simões, 352 págs., R$ 56)
está sendo lançado no Brasil.
Assouline lembra como essa
conjunção de fatores contraditórios em Cartier-Bresson
-precisão, delírio e tecnologia- acabaria desembocando
na criação do fotojornalismo.
Para ele, está embutida aí a
expressão que se tornaria um
clichê: o "instante decisivo",
que Cartier-Bresson -ou HCB,
com era conhecido no meio-
foi buscar em um autor canônico da literatura francesa do século 17, o cardeal de Retz.
Assouline lembra que a própria experiência decisiva da vida de HCB, que redefiniu sua
relação com a fotografia, foi o
período de três anos que passou detido em um campo alemão. Perdeu não só a liberdade
de ir e vir, mas, sobretudo, a liberdade de fotografar.
Dias antes de ser pego, conta
Assouline, ele enterrou sua
Leica para que não fosse confiscada pelos nazistas.
A primeira coisa que fez ao se
ver livre foi desenterrá-la.
FOLHA - Como Cartier-Bresson
conseguiu combinar influências tão
opostas, como a tendência ao devaneio inerente ao surrealismo e a precisão do fotojornalismo?
PIERRE ASSOULINE - Quando se é
surrealista na juventude, permanece-se surrealista por toda
a vida. Você tem razão em sublinhar o antagonismo entre o
surrealismo e o espírito geométrico em Cartier-Bresson, mas
ele conseguiu resolver esse paradoxo por meio de suas fotos e
de sua personalidade.
Há uma tendência ao fantástico, como nas fotos do México
e da Espanha dos anos 1930.
Esse fantástico, que é a sua parte de loucura e anarquismo, irá
ressurgir regularmente em sua
obra, mas não irá impedir o culto das linhas e das perspectivas.
Isso coexiste nele, e não se
trata de esquizofrenia, mas do
embate entre o yin e o yang -e
dessa tensão nasce sua energia.
FOLHA - A prisão em um campo na
Segunda Guerra mudou seu olhar?
ASSOULINE - Sim, e por duas razões: a primeira foram as experiências da miséria, da promiscuidade, da angústia, do tédio e
da amizade que nasceu daí.
A segunda foi ter sido condenado a viver três anos sem sua
máquina, o que o levou a inventar uma teoria sobre tomadas
sem a máquina -apenas mentalmente.
Enfim, ao longo desses três
anos, em nenhum momento ele
abandonou a idéia de fugir, afirmando, desse modo, a marca
essencial de seu caráter.
FOLHA - Como o sr. vê o fotojornalismo hoje? Ele é ainda praticado como Cartier-Bresson o fazia?
ASSOULINE - Cada vez menos,
mas, caso se queira, ainda é
possível. Pode-se passar seis
meses em qualquer parte apenas com uma Leica e filme em
preto-e-branco e fazer coisas
magníficas. O problema é que
não existem mais grandes revistas para publicar isso.
É preciso queimar etapas e
fazer diretamente uma exposição e um álbum. Mas mesmo isso se torna cada vez mais difícil
e, quando ocorre, tem, na maior
parte das vezes, uma "pegada"
artística, enquanto Cartier-Bresson sempre se considerou
um fotojornalista.
FOLHA - Em sua opinião, foi a invenção da Leica que propiciou o surgimento do fotojornalismo?
ASSOULINE - Sim.
FOLHA - E por que optou por ver o
mundo através das lentes de uma
Leica -e, não, por exemplo, através
de uma Rolleiflex?
ASSOULINE - Ele dizia que, com
uma Rolleiflex, fica-se prostrado diante do objeto, enquanto
com uma Leica a gente o ataca.
Cartier-Bresson era antes de
tudo um "atacante", mesmo
tendo horror da agressão maior
que é o flash. Ele nasceu para a
fotografia ao mesmo tempo em
que surgia a Leica. Ela lhe convinha à perfeição: pequena, discreta, leve. Ideal.
FOLHA - Como Cartier-Bresson reagiria hoje à câmera digital?
ASSOULINE - Reagiria mal. Ele
era contra.
FOLHA - Ele era fascinado pelos
EUA, sobretudo por Nova York. A
América mudou seu imaginário?
ASSOULINE - Os EUA não mudaram seu imaginário, ao menos
não mais que os demais países e
menos que a Índia, por exemplo, onde viveu por três anos.
Mas a América o fascinava e
ele lhe era extremamente grato. Pois foi lá onde recebeu reconhecimento e consagração,
quando montou sua primeira
exposição em Nova York, num
momento em que ainda era
desconhecido na Europa.
FOLHA - Cartier-Bresson conheceu
vários países "exóticos" -de um
ponto de vista europeu-, como Índia e Costa do Marfim. Ele não quis
conhecer o Brasil?
ASSOULINE - Como viajava muito, quando deixava de visitar algum país, sempre lhe perguntavam se sentia desprezo, indiferença ou hostilidade. Mas o caso era que uma vida só não lhe
bastou para conhecer todos os
lugares do mundo, ao menos
como ele o entendia -isto é,
passando lá meses ou até anos.
O Brasil simplesmente não
aconteceu -apenas isso-, assim como não aconteceu com
Marrocos e outros países. A
ocasião não apareceu.
FOLHA - Neste ano comemora-se
também o centenário de nascimento do antropólogo Claude Lévi-Strauss. O sr. vê similaridade entre o
olhar de ambos em relação ao "outro". Chegaram a se conhecer?
ASSOULINE - Cartier-Bresson e
Lévi-Strauss são dois grandes
burgueses franceses, que receberam educações parecidas.
Não acredito que seus caminhos tenham se cruzado, mas
tinham um ponto em comum:
eram humanistas. Dois grandes
clássicos bem franceses.
FOLHA - Cartier-Bresson era um
grande admirador de Marcel Proust.
Qual era sua "madeleine" [referência à cena clássica de "Em Busca do
Tempo Perdido" em que o narrador
evoca seu passado ao tomar uma xícara de chá com madeleine]?
ASSOULINE - Sua "madeleine"
eram a faca de caça que levava
no bolso e uma estatueta trazida da África nos anos 1920,
guardada em sua estante.
FOLHA - Para o sr., qual é sua foto
mais importante? E para ele?
ASSOULINE - Não tenho a mínima idéia.
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