São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 2006

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Cultura

Os corpos descarnados das passarelas

PAULA SIBILIA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Como explicar o estrondoso sucesso dos desfiles de moda? Por que será que esses eventos, outrora restritos e pouco interessantes para o grande público, de repente eclodiram em verdadeiros acontecimentos internacionais? Ao seu redor fermenta uma algazarra à qual é difícil permanecer alheio, todo um circo midiático em cujo centro brilham elas: as modelos. Com suas roupas extravagantes, seu exibicionismo pueril e seus namorados famosos... Mas sobretudo com seus corpos exemplares. Corpos extremamente jovens, delgados e pulcros. Afinal, os desfiles são isso: festivais de corpos modelos.
Mas que corpos são esses? Platão aludira a "um túmulo que carregamos conosco", um peso inerte "ao qual estamos acorrentados como a ostra à sua concha". Toda a tradição ocidental abunda em referências desse tipo: o corpo como uma obscura "prisão da alma". Dos rigores cristãos da Idade Média aos pudores burgueses da era industrial, a carne tem insistido em aprisionar (e contaminar) aquela essência etérea que misteriosamente nos anima.
Nada disso, porém, parece ecoar nas gráceis silhuetas que hoje cintilam nos templos da moda. Que corpo é esse que encandeia os olhares ao desfilar com seus passos sinuosos, desafiando o fulgor dos flashes e dos holofotes? Que corpo é esse, infinitamente reproduzido nas telas eletrônicas e nas páginas brilhosas das revistas? Esses perfis esguios, de longas pernas e ventres torneados, parecem repelir os excessos da sociedade contemporânea com sua magreza, exprimindo um trabalho árduo e disciplinado sobre a própria volúpia.
Com sua mudez desalmada (pura pele exposta aos olhares), com sua pertinaz ausência de palavras, esses corpos emitem uma impugnação para os comuns mortais que os admiram. Orgulhosos em seu andar triunfante, nem querem saber se aprisionam alma nenhuma.
Em vez de degradarem com sua brutal carnalidade alguma essência etérea que estaria além de seus domínios, o gesto parece até mesmo moralizador: com o semblante altivo, ostentam suas figuras como os frutos vitoriosos de uma abnegação que todos deveríamos emular: dietas, malhação, cirurgias plásticas e toda uma cartilha de cuidados e privações.
Além de encarnar esses valores -mais próximos do ideal apolíneo que do dionisíaco, mais perto do ascetismo que do hedonismo-, tais corpos são desenhados, exibidos, copiados e consumidos como imagens. São lampejos visuais que pretendem atingir uma pureza imaterial, cuidadosamente afastada de todo lastro carnal. Pois a mensagem é clara: a carne pode (e deve) ser trabalhada como uma imagem, para ser exibida e observada, para ser consumida visualmente.
Não é por acaso que programas de edição gráfica como o Photoshop desempenham um papel tão importante na construção dos "corpos belos" expostos nas vitrines midiáticas. Com esses bisturis de software, todos os "defeitos" e outros detalhes demasiadamente orgânicos presentes nos corpos fotografados são eliminados, retocados ou corrigidos. As imagens assim editadas aderem a um ideal de pureza digital, longe de toda imperfeição toscamente analógica e de toda viscosidade que pareça orgânica demais.

Acrescentar água
Três décadas atrás, Clarice Lispector debochava das aeromoças ou manequins daquela época, dizendo que eram "desidratadas", e portanto era preciso "acrescentar-lhes ao pó bastante água para se tornarem leite". Mas as nossas modelos deixaram para trás esse parco ideal: o ar de pureza que elas exalam sonha com livrar-se de todo vínculo com a materialidade orgânica. Sem a incômoda espessura da carne, seus corpos almejam virar pura imagem bidimensional (embora com polidos efeitos 3D). Como uma superfície lisa e pura, onde todo rastro da impertinência carnal tenha sido convenientemente retocado ou deletado.
E a cada nova temporada, desde os cobiçados altares das passarelas, as lânguidas celebridades do mundo "fashion" convocam o ávido público a idolatrar e imitar suas formas. Pois lá embaixo, bem mais perto do lodo terreno, os corpos reais devem sofrer para estarem à altura desses modelos digitalizados -e sobretudo digitalizantes. O mercado das aparências, é claro, comemora.


Paula Sibilia é autora de "O Homem Pós-Orgânico" (ed. Relume-Dumará).


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