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Discurso de Lula segue modelos políticos
históricos ao fundir público e privado
O príncipe falante
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA
"Nada mais inconsistente que um regime político indiferente à verdade; nada
mais perigoso que um sistema político
que pretende prescrever a verdade."
(Michel Foucault, 1984)
Que o discurso político seja
retórico, visando mais a
convencer do que encontrar a verdade, isso se sabe
desde a Antigüidade. Convencer,
entretanto, sem perder o contato
com o real, pois, caso contrário, o
debate político passa a girar em falso, neutralizando qualquer possibilidade de decisão. No entanto, mesmo quando o discurso político se fecha sobre si, há de ter alguma função. Não serviria para embaralhar a
opinião pública, de forma que não
reconheça onde são tomadas as decisões mais importantes que lhe dizem respeito?
Na democracia antiga isso era quase impossível. Quando [o general
ateniense] Alcebíades, por exemplo,
procurando ampliar seu poder, fez
com que a assembléia aprovasse a
expedição contra a Sicília -cujo resultado, todos sabem, foi um desastre completo-, isso só foi possível
porque argumentava na corrente
dos interesses de Atenas, preocupada em restringir o poder político e
comercial de Siracusa. Embora o
momento e os meios fossem inadequados, sua proposta tinha sentido.
Notável é que os legisladores atenienses tratavam de evitar que um
demagogo levasse a assembléia a tomar decisões despropositadas, pois
criaram uma estranha lei, pela qual
era passível de punição quem fizesse
os atenienses votarem a favor de medidas que ultrapassassem o âmbito
do possível.
Hoje, sobretudo com o desenvolvimento da mídia e do marketing
político, tornou-se usual o debate
democrático perder seu lastro. Num
regime autoritário, a verdade é prescrita, embora fosse preciso, como
lembrava Goebbels, ministro da
propaganda nazista, repetir sistematicamente uma mentira para que se
convertesse em verdade. Em contrapartida, a democracia do marketing
parece acuada pela verdade, pois o
político fala o que as pesquisas de
opinião pública lhe ensinam. Ao detectar as vontades e anseios dos diversos grupos da população, o político pode se dar ao luxo de dizer
aquilo que se quer que ele fale, muitas vezes sem levar em conta as possibilidades concretas de cumprir
suas palavras.
Nesse nível de abstração, quando
todos os partidos são levados a prometer quase a mesma coisa, cada um
trata de embalar melhor seu peixe e,
quando possível, aviltar o adversário, quase sempre identificado com
o diabo. Com isso, a verdade se perde e o debate político resvala para o
plano moral.
Mentiras coniventes
Não é porque a luta se torna moral
e religiosa que necessariamente deva
prender suas amarras com o real.
Lembremos que as guerras religiosas, que assolaram a França nos séculos 16 e 17, desempenharam papel
importante na construção do Estado
nacional, cujo caráter leigo não mais
se conciliava com o preceito medieval de que o rei e o povo deveriam jurar pela mesma a religião.
E, se Henrique 4º se converteu, estrategicamente, ao catolicismo para
selar a paz e ganhar Paris, isso já indicava que a questão religiosa estava
sendo submetida às razões de Estado.
Ora, o que explica essa tendência
de o debate público brasileiro ser levado, a toda hora, para a esfera rarefeita da moral?
Apenas para ressaltar a especificidade de nosso caso, vale a pena compará-lo, sem nenhuma pretensão de
análise, à cruzada de George W.
Bush contra o "eixo do mal". A denúncia de que o Iraque possuía armas de destruição em massa era
uma mentira deslavada. Mas, quando foi desvendada pelo trabalho da
oposição e da mídia investigativa, o
peso da verdade já tinha sido diluído. Confessar a mentira, admitir a
inexistência daquelas armas se tornou fato menor na imensidão do
conflito e do projeto americano,
agora reconhecido, de redesenhar o
mapa do Oriente Médio.
Além disso, quando se torna evidente, depois do 11 de Setembro, que
o inimigo mora ao lado, como célula
cancerosa no tecido sadio, verdade e
mentira passam a ter novas conivências. Pouco importa, nesse contexto,
o peso deste ou daquele ato isolado.
Importa o projeto de prescrever a
verdade como política mundial.
Se os Estados mais fracos estão
mais sujeitos ao mal, a potência hegemônica não pode mais lidar com
eles sem levar em conta sua verdade
democrática. Pelo contrário, cabe-lhe semear a democracia por todas
as partes do mundo. Não é isso que
tem escrito [a secretária de Estado]
Condoleezza Rice?
Falando ao vácuo
O Brasil não poderia ficar à margem dessa tendência globalizante de
empurrar o discurso político para o
plano da moral e da teologia, despojando-o de seu lastro de verdade.
Mas em condições particulares.
Longe dos conflitos do Oriente Médio, onde o discurso teológico-político passa pelo martírio do fanático
politizado, o locutor se calando para
deixar em volta o espaço da destruição e da falta de sentidos, tendemos
a martirizar o discurso para ampliar
o vácuo onde possa reverberar a fala
vazia.
O presidente Luiz Inácio Lula da
Silva diz em público o que lhe vem
na telha, sempre afirmando, porém,
que inaugura um momento da história brasileira, quiçá da evolução do
universo. Suas palavras reescrevem
o Gênesis, e não admira que seus
fiéis mais constritos entrem em
transe ao ouvirem suas palavras. Isso não significa, porém, que seu discurso não tenha sentido, pois, a despeito de não possuir estrutura argumentativa sugerindo alguma referência, pretende encantar, forjar
uma empatia com o eleitor, na qual
ambos se fundiriam na mesma identidade.
Assim, o processo de representação se dissolve no imaginário, como
se Lula e seus eleitores estivessem
criando novo padrão de democracia
direta. Onde se decide o como e o
que, tudo isso perde importância,
ofusca-se diante da grandeza de
ações apresentadas como criadas do
nada. Poderíamos imaginar que até
a verdade do governo conflita com a
verdade do partido que o apóia? Ou
foram e são apenas mentiras?
Nessa auto-referência a fundir verdade e mentira, público e privado,
não é de estranhar que o presidente
não saiba nada a respeito do que se
passa na sala ao lado, precisamente
onde a política se efetiva na base de
trocas entre mãos invisíveis.
Militantes desavisados
E, nessa mesma linha, o discurso
lulista-petista pretende se fazer verdade, na medida em que assume as
principais mentiras que rondam o
regime democrático: faz alianças a
torto e à direita, amealha caixa dois,
funde partido e Estado, enfim, transgride como todo mundo, sem que se
pronuncie a respeito das diferenças
estruturais. Seria a mesma coisa
comprar deputados e organizar um
mercado onde eles se vendem?
O governo Lula e o PT não se acreditam, entretanto, instituições políticas como as outras. Se perderam o
patrimônio moral, conquistado a
duras penas, foi por causa de alguns
militantes desavisados, covardes, capazes de golpear pelas costas. Ambos mantêm a confiança de que são
originários da verdade, dotados de
uma razão política que se encontra
neles, em vez de se encontrar no jogo
político como um todo.
Não há dúvida de que todo o sistema está em crise, mas não faz sentido afirmar que a crise vem de fora,
da mídia e da conspiração das elites.
Quais elites? Essa recusa de ir ao particular se contrapõe a uma competência global, isto é, a uma incompetência que nada ajuda o debate democrático. Aliás, esse discurso que
identifica competência e poder já
nos é muito conhecido.
Acredito que a tarefa, tanto do PT
como da oposição, é fazer precisamente o contrário. Deixando de
prescrever a verdade, trata-se de desenhar a verdade que está ao nosso
alcance. Não importam mais a denúncia exaltada, os programas mirabolantes, a emancipação sempre
adiada. Não seria melhor pensar a
curtíssimo prazo e elaborar uma
agenda precisa de tudo aquilo que
pode ser feito nos próximos quatro
anos, com os recursos já disponíveis? Em vez de um banho de capitalismo, que tal um banho de pequenas verdades?
José Arthur Giannotti é professor emérito
na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP e coordenador da área de
filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
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