São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 2006

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Discurso de Lula segue modelos políticos históricos ao fundir público e privado

O príncipe falante

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA

"Nada mais inconsistente que um regime político indiferente à verdade; nada mais perigoso que um sistema político que pretende prescrever a verdade."
(Michel Foucault, 1984)

 
Que o discurso político seja retórico, visando mais a convencer do que encontrar a verdade, isso se sabe desde a Antigüidade. Convencer, entretanto, sem perder o contato com o real, pois, caso contrário, o debate político passa a girar em falso, neutralizando qualquer possibilidade de decisão. No entanto, mesmo quando o discurso político se fecha sobre si, há de ter alguma função. Não serviria para embaralhar a opinião pública, de forma que não reconheça onde são tomadas as decisões mais importantes que lhe dizem respeito?
Na democracia antiga isso era quase impossível. Quando [o general ateniense] Alcebíades, por exemplo, procurando ampliar seu poder, fez com que a assembléia aprovasse a expedição contra a Sicília -cujo resultado, todos sabem, foi um desastre completo-, isso só foi possível porque argumentava na corrente dos interesses de Atenas, preocupada em restringir o poder político e comercial de Siracusa. Embora o momento e os meios fossem inadequados, sua proposta tinha sentido.
Notável é que os legisladores atenienses tratavam de evitar que um demagogo levasse a assembléia a tomar decisões despropositadas, pois criaram uma estranha lei, pela qual era passível de punição quem fizesse os atenienses votarem a favor de medidas que ultrapassassem o âmbito do possível.
Hoje, sobretudo com o desenvolvimento da mídia e do marketing político, tornou-se usual o debate democrático perder seu lastro. Num regime autoritário, a verdade é prescrita, embora fosse preciso, como lembrava Goebbels, ministro da propaganda nazista, repetir sistematicamente uma mentira para que se convertesse em verdade. Em contrapartida, a democracia do marketing parece acuada pela verdade, pois o político fala o que as pesquisas de opinião pública lhe ensinam. Ao detectar as vontades e anseios dos diversos grupos da população, o político pode se dar ao luxo de dizer aquilo que se quer que ele fale, muitas vezes sem levar em conta as possibilidades concretas de cumprir suas palavras.
Nesse nível de abstração, quando todos os partidos são levados a prometer quase a mesma coisa, cada um trata de embalar melhor seu peixe e, quando possível, aviltar o adversário, quase sempre identificado com o diabo. Com isso, a verdade se perde e o debate político resvala para o plano moral.

Mentiras coniventes
Não é porque a luta se torna moral e religiosa que necessariamente deva prender suas amarras com o real. Lembremos que as guerras religiosas, que assolaram a França nos séculos 16 e 17, desempenharam papel importante na construção do Estado nacional, cujo caráter leigo não mais se conciliava com o preceito medieval de que o rei e o povo deveriam jurar pela mesma a religião.
E, se Henrique 4º se converteu, estrategicamente, ao catolicismo para selar a paz e ganhar Paris, isso já indicava que a questão religiosa estava sendo submetida às razões de Estado.
Ora, o que explica essa tendência de o debate público brasileiro ser levado, a toda hora, para a esfera rarefeita da moral?
Apenas para ressaltar a especificidade de nosso caso, vale a pena compará-lo, sem nenhuma pretensão de análise, à cruzada de George W. Bush contra o "eixo do mal". A denúncia de que o Iraque possuía armas de destruição em massa era uma mentira deslavada. Mas, quando foi desvendada pelo trabalho da oposição e da mídia investigativa, o peso da verdade já tinha sido diluído. Confessar a mentira, admitir a inexistência daquelas armas se tornou fato menor na imensidão do conflito e do projeto americano, agora reconhecido, de redesenhar o mapa do Oriente Médio.
Além disso, quando se torna evidente, depois do 11 de Setembro, que o inimigo mora ao lado, como célula cancerosa no tecido sadio, verdade e mentira passam a ter novas conivências. Pouco importa, nesse contexto, o peso deste ou daquele ato isolado. Importa o projeto de prescrever a verdade como política mundial.
Se os Estados mais fracos estão mais sujeitos ao mal, a potência hegemônica não pode mais lidar com eles sem levar em conta sua verdade democrática. Pelo contrário, cabe-lhe semear a democracia por todas as partes do mundo. Não é isso que tem escrito [a secretária de Estado] Condoleezza Rice?

Falando ao vácuo
O Brasil não poderia ficar à margem dessa tendência globalizante de empurrar o discurso político para o plano da moral e da teologia, despojando-o de seu lastro de verdade. Mas em condições particulares. Longe dos conflitos do Oriente Médio, onde o discurso teológico-político passa pelo martírio do fanático politizado, o locutor se calando para deixar em volta o espaço da destruição e da falta de sentidos, tendemos a martirizar o discurso para ampliar o vácuo onde possa reverberar a fala vazia.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva diz em público o que lhe vem na telha, sempre afirmando, porém, que inaugura um momento da história brasileira, quiçá da evolução do universo. Suas palavras reescrevem o Gênesis, e não admira que seus fiéis mais constritos entrem em transe ao ouvirem suas palavras. Isso não significa, porém, que seu discurso não tenha sentido, pois, a despeito de não possuir estrutura argumentativa sugerindo alguma referência, pretende encantar, forjar uma empatia com o eleitor, na qual ambos se fundiriam na mesma identidade.
Assim, o processo de representação se dissolve no imaginário, como se Lula e seus eleitores estivessem criando novo padrão de democracia direta. Onde se decide o como e o que, tudo isso perde importância, ofusca-se diante da grandeza de ações apresentadas como criadas do nada. Poderíamos imaginar que até a verdade do governo conflita com a verdade do partido que o apóia? Ou foram e são apenas mentiras?
Nessa auto-referência a fundir verdade e mentira, público e privado, não é de estranhar que o presidente não saiba nada a respeito do que se passa na sala ao lado, precisamente onde a política se efetiva na base de trocas entre mãos invisíveis.

Militantes desavisados
E, nessa mesma linha, o discurso lulista-petista pretende se fazer verdade, na medida em que assume as principais mentiras que rondam o regime democrático: faz alianças a torto e à direita, amealha caixa dois, funde partido e Estado, enfim, transgride como todo mundo, sem que se pronuncie a respeito das diferenças estruturais. Seria a mesma coisa comprar deputados e organizar um mercado onde eles se vendem?
O governo Lula e o PT não se acreditam, entretanto, instituições políticas como as outras. Se perderam o patrimônio moral, conquistado a duras penas, foi por causa de alguns militantes desavisados, covardes, capazes de golpear pelas costas. Ambos mantêm a confiança de que são originários da verdade, dotados de uma razão política que se encontra neles, em vez de se encontrar no jogo político como um todo.
Não há dúvida de que todo o sistema está em crise, mas não faz sentido afirmar que a crise vem de fora, da mídia e da conspiração das elites. Quais elites? Essa recusa de ir ao particular se contrapõe a uma competência global, isto é, a uma incompetência que nada ajuda o debate democrático. Aliás, esse discurso que identifica competência e poder já nos é muito conhecido.
Acredito que a tarefa, tanto do PT como da oposição, é fazer precisamente o contrário. Deixando de prescrever a verdade, trata-se de desenhar a verdade que está ao nosso alcance. Não importam mais a denúncia exaltada, os programas mirabolantes, a emancipação sempre adiada. Não seria melhor pensar a curtíssimo prazo e elaborar uma agenda precisa de tudo aquilo que pode ser feito nos próximos quatro anos, com os recursos já disponíveis? Em vez de um banho de capitalismo, que tal um banho de pequenas verdades?


José Arthur Giannotti é professor emérito na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.


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