São Paulo, domingo, 22 de fevereiro de 2004

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+ brasil 504 d.C.

Boris Fausto

Da militância aos showmícios


Limitada ao memorialismo até os anos 50, história dos trabalhadores teve um boom entre os anos 60 e 80, mas sofreu um refluxo nos últimos 20 anos


É um fato conhecido para quem se dedica às ciências humanas que a história, nas últimas décadas, revelou, a um tempo, uma "vocação imperialista" e uma tendência a aproximar-se de outras disciplinas. Tudo se passa como se ela derrubasse fronteiras, não simplesmente como quem ocupa um território inimigo, mas como quem vê nesse território um campo de aproximações e de interação, em que se destaca a antropologia social. Por sua vez, a incorporação de novos objetos, que tem relação com a interdisciplinaridade, não é linear, ou seja, em sua marcha, se ela alcança novos temas, pode também abandoná-los mais adiante. Nesse incorporar/abandonar, alguns temas simplesmente desaparecem; outros perdem relevância por certo tempo, para recuperar-se mais adiante, sob ângulos de abordagem mais profícuos. É o que acontece, por exemplo, com a história política, que, desprezada como campo de narrativas tradicionais, incapazes de dar conta dos níveis mais profundos da história, revitalizou sua força explicativa, nas últimas décadas. Essa introdução pode servir para situar um caso específico: o da história dos trabalhadores urbanos no Brasil, que reúne, em sua abrangência, a formação e a estrutura de classe, a organização sindical e política, as lutas nesses dois planos, a cultura operária, a vida nas fábricas, as relações com os empresários e o Estado etc. Sintetizando e antecipando, esse é um bom exemplo de um tema antes ignorado, que ganhou ímpeto e se expandiu, para depois eclipsar-se, embora não se possa falar de seu desaparecimento.

O império era o limite
Comecemos pelo começo, pela época em que a história dos trabalhadores inexistia no restrito mundo acadêmico, por pelo menos duas razões. Primeiro, porque se pensava que era necessário um distanciamento cronológico para escrever história, sem se deixar levar pelas opiniões pessoais ou pelas paixões. Ainda nos anos 50, era comum ouvir dizer que a verdadeira história só devia ir até os limites do fim do império, pois daí em diante entraríamos no campo das incertezas ou, no melhor dos casos, da sociologia. A segunda razão de desprezo tinha a ver com o tema, considerado de pouca relevância: que sentido teria reconstituir vidas, organizações, lutas de "gente de classe baixa"? Por isso, a história dos trabalhadores, até pelo menos o início dos anos 50, limitou-se à tradição oral e ao memorialismo de militantes, principalmente anarquistas, que projetaram no passado os encantos de uma "idade de ouro", pintada com as cores de militantes abnegados, de um sindicalismo puro e duro, de firmeza ideológica, de resistência às iniqüidades do capital. Essa tradição e vários desses escritos representavam, em boa parte, uma reação defensiva diante do ímpeto com que o populismo getulista, a partir de meados dos anos 30, vinha liquidando o sindicalismo independente. A introdução da temática da classe operária no mundo da academia, a partir do final da década de 50, representou a quebra dos dois preconceitos acima apontados. Quem saiu à frente foram os sociólogos, e não os historiadores. Mesmo assim, o livro do sociólogo Leôncio Martins Rodrigues, "Conflito Industrial e Sindicalismo no Brasil" (1965), fazia uma incursão histórica pioneira, no sentido de demolir a versão edificante do movimento operário brasileiro, anterior a 1930. Embora a abnegação dos militantes dessa época fosse real, a verdade é que o movimento operário dos "áureos tempos" se caracterizara pela fraqueza, diante da impermeabilidade da oligarquia e do peso dominante do mundo agrário, não obstante as explosões grevistas dos anos 1917-1921. Além disso, a "pureza ideológica" de anarquistas e comunistas era perturbada pelos sindicatos católicos, pelos sindicatos "amarelos", como se constataria mais tarde. Lembremos que a emergência do tema dos trabalhadores, na área acadêmica, ocorreu em uma época na qual muitas transformações tinham ocorrido na sociedade e na política brasileiras. A classe operária organizada, ainda que minoritária, transformara-se em ator político, integrante do tripé populista que tinha como base o Estado e incluía a chamada burguesia nacional. Depois, dois momentos marcantes tiveram influência nos estudos, já então tanto no campo da história quanto no da sociologia. O primeiro desses momentos foi o golpe militar de 1964, que pôs a nu o fracasso do esquema populista e lançou sérias dúvidas na identificação do PCB como "vanguarda do proletariado", embora aberto à colaboração de forças cognominadas de progressistas. O segundo momento correspondeu à explosão das greves do ABC, no final dos anos 70, ainda na vigência do regime militar, associadas ao novo sindicalismo e à ainda incipiente formação do PT.

Prêmios valiosos
Uma grande quantidade de estudos caracterizou a década de 80 até que o refluxo começou a ocorrer. A tal ponto que hoje outros temas integram as preocupações acadêmicas, e a história dos trabalhadores passou a ter importância secundária. O refluxo tem algo a ver com as ondas historiográficas, mas resulta principalmente dos rumos que a sociedade brasileira tomou, nos últimos 20 anos.
Diante das transformações nas relações de trabalho (veja-se a informalidade e a terceirização), diante do desemprego, da crescente massificação do entretenimento e do consumo, a fisionomia da classe operária perdeu seus traços mais nítidos, o que não quer dizer, evidentemente, que a questão das relações de trabalho dos assalariados de qualquer natureza tenha deixado de ser crucial.
Um bom termômetro simbólico para aferir as transformações, com a passagem do tempo, são as comemorações de 1º de Maio. De expressão de luta, de episódio de endeusamento de Getúlio Vargas, de comício populista, o 1º de Maio vai se transformando cada vez mais em "showmício", em que o show, incluindo a distribuição de valiosos prêmios, predomina amplamente. Não é por acaso que, neste ano de 2004, a CUT (Central Única dos Trabalhadores) parece ter aderido ao figurino vitorioso da Frente Sindical.

Boris Fausto é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de, entre outros, "A Revolução de 30" (Companhia das Letras). Escreve mensalmente na seção "Brasil 504 d.C.".


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