São Paulo, domingo, 22 de abril de 2007

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+ Violência

O dono da verdade

Massacre em universidade dos EUA decorre do desejo de reconhecimento e de controlar a interpretação do real

JULIANA MONACHESI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O psicanalista Joel Birman, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do RJ, falou em entrevista à Folha sobre o massacre na universidade na Virgínia que ocorreu na segunda-feira e sobre o perfil perverso das ações de Cho Seung-hui.
O sul-coreano de 23 anos, estudante do último ano de graduação em inglês no Instituto Politécnico da Virgínia (Virginia Tech), é acusado de matar 32 pessoas e depois se matar, no que é considerado o maior massacre a tiros dos EUA.

 

FOLHA - Uma colunista do jornal inglês "The Guardian" cunhou a expressão "suicídio extrovertido" para denominar o massacre cometido por Cho Seung-hui. Tornar o próprio sofrimento -e o suicídio- público, em lugar de preservar o anonimato desse ato, seria o objetivo dos perpetradores desses tiroteios em instituições de ensino?
JOEL BIRMAN
- Acho que existe um paralelo com os serial killers e também com o perfil daquelas pessoas que a cultura americana considera perdedores, que nunca aparecem na mídia.
Quando crimes são cometidos, eles se tornam meramente uma peça de uma enquete médico-legal, uma enquete de tribunal, então o criminoso, enquanto personagem, tem um momento de uma certa fulgurância que é o momento do crime e o momento em que o crime vira notícia.
Desse ponto de vista, podemos ver essa história como uma façanha de anti-herói. Acho que o desejo de ganhar reconhecimento é fundamental na discussão sobre a realização do crime violento.
Por exemplo, Jack, o Estripador, tinha uma diálogo com a imprensa, ele deixava pistas; fez parte, portanto, da própria construção de sua história.

FOLHA - Não se trata, então, de um fenômeno específico da sociedade do espetáculo, o de premeditar não apenas o crime mas também a maneira como ele será veiculado na mídia, isto é, como a história será contada?
BIRMAN
- A busca de um reconhecimento público não é um fenômeno novo, o que é novo é a escala.
Acho que a dimensão do espetáculo vem da mudança de escala, e daí os criminosos buscarem "grandiosidade" em seus atos. Marie-Laure Susini, autora de um livro intitulado "L"Auteur du Crime Pervers" (O Autor do Crime Perverso), analisa, no procedimento de serial killers, quanto a notoriedade é fundamental em todo o processo do crime realizado.
Ela estuda vários criminosos da história do Ocidente -Landru, Barba Azul, Jack, o Estripador, Gilles de Rais-, mostrando como a dimensão de um diálogo com a mídia é fundamental nos crimes cometidos por eles.
É esse o caso no episódio do estudante na universidade na Virgínia, de que é exemplo sua própria frieza em, entre cometer os dois primeiros assassinatos e ou outros, ir ao correio para enviar material para uma emissora de TV.
Ou seja, é como se ele estivesse fazendo toda uma cena, uma mise-en-scène propriamente dita, para que a personagem dele fosse conhecida e estudada, mesmo na condição de uma monstruosidade do anti-herói.

FOLHA - No material audiovisual enviado para a NBC, o estudante faz afirmações vitimizadas, como: "Vocês vandalizaram meu coração, estupraram minha alma e torturaram minha consciência. (...) Eu fiz isso por eles. Fiz isso para impedir que o que vocês fizeram comigo seja feito às futuras gerações de fracos e indefesos". O que se pode depreender dessa fala?
BIRMAN
- Ele tinha evidentemente uma disfunção comportamental, ele se sentia em uma posição rebaixada.
Em alguma medida, tenta transformar esse ato em um ato heróico, identificando-se com a figura de Jesus Cristo, como se fosse o salvador de futuras gerações de perdedores como ele.

FOLHA - Um outro disparador desses crimes é o problema da venda indiscriminada de armas de fogo nos Estados Unidos e a crença na eficácia da violência que estaria incrustada na psique americana?
BIRMAN
- É possível pensar o uso da arma como metáfora que remete à figura do cowboy.
O fato de o representante máximo dos Estados Unidos agir da forma como está agindo em relação ao Iraque, por exemplo, sedimenta isso de uma maneira bárbara no imaginário dos cidadãos norte-americanos.
E esse estudante vem de um país que foi influenciado pela cultura ocidental, portanto ele tinha essa cultura completamente enraizada em si.

FOLHA - A NBC noticiou comentários de colegas de dormitório que teriam afirmado que ele não olhava ninguém nos olhos; e um dos apresentadores sugere, na análise do material enviado por Cho à NBC, que o estudante fazia parte "dessa geração de usuários de internet". Essa associação com a cultura midiática não é redutora?
BIRMAN
- A internet e as novas tecnologias evidentemente contribuíram para um tipo de relacionamento entre as pessoas que é mais distanciado, mas seria uma grande ingenuidade atribuir a esse fato os atos do estudante.
Ele não podia olhar nos olhos dos outros porque ele não podia ser interpelado pelo olhar do outro -isso poderia significar que descobrissem o que se passava na cabeça dele.
Fugir do olhar dos outros em geral mostra uma pessoa que se sente muito perseguida.
A característica de pessoas com o perfil de perversão que ele apresenta é reduzir o outro à condição de objeto para que eles soberanamente possam dominá-lo.
No episódio da universidade na Virgínia, o autor dos disparos domina a cena toda, inclusive ao querer deter a última verdade sobre os seus atos na forma do material enviado para a emissora, transformando a sua palavra em um manifesto.


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