São Paulo, domingo, 22 de abril de 2007

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Almas arruinadas

MANOLO FLORENTINO
COLUNISTA DA FOLHA

Há países que em algum momento optaram pela eterna manutenção do status quo -não sem o empurrãozinho de alguma religião que amalgamava a todos em uma imobilidade que os ultrapassava.
Aos poucos a própria nação assumia ares daquela ancestralidade bizarra em sua mescla entre infantilidade senil e solene dignidade a que se refere um conto qualquer de Edgar Allan Poe [1809-49].
Ancorados em uma história que, afinal, imaginavam domada, países assim se acostumaram a mirar o exterior como impérios da decadência que todo movimento encerra.
Ironicamente, porém, logo as instituições gestadas para livrá-los da devassidão forânea cobravam seu preço, e os cidadãos começavam a desconfiar do valor de sua imobilidade.
Era quando o estrangeiro passava a encarnar o espelho que lhes recordava as suas próprias opções e a ruína das instituições que as sustentavam.

Tradição arcaica
Com Portugal foi assim. Fronteira vitoriosa na luta contra o islamismo, desde o início a nação se confundiu de tal modo com a igreja que, quando a Reforma [século 16] cindiu a cristandade, a Península Ibérica naturalmente se transformou em bastião do catolicismo.
Como se não bastasse, os ganhos derivados do comércio oriental e das riquezas americanas permitiram a Portugal levar ao extremo um tipo de sociedade fundado na afirmação de valores aristocráticos e na esterilização de grande parte da riqueza social.
Em vez de capturar nesses traços elementos de um projeto arcaico tão legítimo quanto a opção pelo capitalismo, a historiografia norte-européia esmerou-se em reduzi-lo a mero "atraso".
E um dos maiores signos dessa decadência radicaria no pioneirismo lusitano no tráfico de africanos e no seu afinco à escravidão quando, embalado pelo puritanismo abolicionista do Oitocentos, o Ocidente denunciava ambos. Eis como a escravatura se imprimiu como nódoa na imagem dos portugueses.
Ironicamente, ao completarem-se 200 anos da abolição do tráfico inglês (1807), os ganhos obtidos pela historiografia anglo-saxã permitem redefinir muito daquele ponto de vista que, nas palavras de João Pedro Marques ("Portugal e a Escravatura dos Africanos", lançado em Portugal pela ICS), "pesadamente responsabiliza os lusitanos pela existência de instituições tão desumanas".
A verdade, sustenta Marques, é que até o século 18 a cultura ocidental como um todo encarava a escravidão como uma muitas vezes dolorosa forma de promover o progresso humano.

Atraso
Evitemos mal-entendidos. Ninguém em sã consciência questiona a crueldade implícita em todo tipo de escravidão.
Um exemplo: de acordo com o historiador norte-americano Joseph Miller, de cada cem escravos apanhados em Angola, 36 morriam entre a captura e o traslado até a costa, sete à espera do embarque nos negreiros, seis pereciam durante a travessia oceânica e 23 feneciam nos primeiros anos de Brasil -ou seja, em quatro anos, 72% de mortalidade acumulada!
Entretanto, Portugal não inventou a escravidão moderna.
Se o cativeiro declinava desde a derrocada de Roma, ganhou força no Mediterrâneo dos séculos 14 e 15, reintroduzido por Gênova e Veneza, primeiro em suas plantações de cana-de-açúcar no Oriente Médio, depois no Chipre, em Creta e na Sicília.
Após migrar para a Península Ibérica, alcançar a América se tornou questão de tempo.
Portugal tampouco inventou o tráfico de africanos, que já existia sobretudo para o mundo islâmico e, secundariamente, para o Mediterrâneo antes mesmo da descoberta da América -6 milhões de africanos foram exportados até 1500.
A demanda americana potencializou o tráfico, é certo, mas jamais poderia ser atendida na escala em que foi sem que a posse de escravos (e, como derivação, o tráfico) representasse um dos poucos meios legítimos de enriquecimento individual dentro da África tradicional.
As elites africanas foram elementos ativos, e não apenas vítimas passivas, da tragédia implícita à escravidão.
Por fim, mais de 70% dos quase 4 milhões de africanos desembarcados no Brasil o foram por iniciativa quase exclusiva do capital mercantil residente na América portuguesa. É que, com o século 18, as comunidades traficantes de Rio de Janeiro, Salvador e Recife passaram a dominar as etapas empresariais que garantiam o comércio negreiro, provendo-o de naus, de bens para o escambo, arregimentando tripulantes e garantindo o negócio por meio de suas próprias empresas seguradoras.
Marques ensina que a responsabilidade maior de Portugal para com o cativeiro e o tráfico ocorreu no século 19, quando razões de Estado impediram-no de se associar à onda abolicionista que varria o Ocidente.
Mesmo nesse caso, porém, ele não se encontrava sozinho -a acompanhá-lo estava o Brasil, postergando o trauma, extraviando-se da modernidade e travando a nação no plano da paixão arcaica.
Não lembro a primeira vez em que ouvi falar de almas arruinadas. Pode ter sido em um sermão do bispo ou num samba de Ismael Silva, tanto faz.
O que importa é que, em seu contexto, a expressão sempre remetia a destinos individuais, a trajetórias singulares que a terrível junção entre escolhas atávicas e o inexorável tempo extraviava sem cessar de caminhos edificantes.
Com alguns países não parece ter sido diferente.


MANOLO FLORENTINO é professor no departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de "Tráfico, Cativeiro e Liberdade" (ed. Civilização Brasileira). Escreve na seção "Autores", do Mais!.


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