São Paulo, domingo, 22 de abril de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

No corredor polonês

lançado em 1927, "A Traição dos Intelectuais", de Julien Benda, diz que o pensamento não deve se render aos utilitarismos

FRANCISCO ALAMBERT
ESPECIAL PARA A FOLHA

A edição de "A Traição dos Intelectuais", hoje, é uma dessas deliciosas "coincidências" históricas.
No final da década de 1940, quando se lavava a roupa suja tanto do nazifascismo quanto do stalinismo, o livro foi assunto no Brasil, discutido e criticado por Sérgio Milliet.
Depois, seus argumentos desapareceram do horizonte. Agora, a discussão do livro se reveste de novos significados.
Para certa intelectualidade brasileira, Benda é um problema. Por outro lado, o intelectual de direita, reacionário e belicista, reencontra seu lugar, acusando os "traidores" liberais de omissão e, os esquerdistas, de tendencionismo.
O direitista, é claro, jura que é uma vestal, neutra e pura, do saber desinteressado. Para este tipo, Julien Benda é um herói.
Benda [1867-1956] foi um pensador de oposição que, desde o célebre caso Dreyfus [capitão injustamente acusado, no final do século 19, de passar segredos militares aos alemães] até os anos 1940 atuou intelectualmente contra o reacionarismo monarquista, o militarismo, o anti-semitismo e o fascismo.
Em 1927, vendo-se pressionado pelo reacionarismo (seu principal alvo era o ultranacionalismo de Maurice Barrès), de um lado, e pelos comunistas (aos quais foi simpático durante algum tempo), de outro, resolveu filosofar sobre o papel dos intelectuais.
Nem à direita, nem à esquerda, o intelectual, segundo Benda, era um ser pensante, livre das pressões do utilitarismo, clérigo da igreja do universal, da verdade e da razão. E quem não o seguisse não era nem intelectual nem muitos menos fiel a esses valores sublimes (não foram poucos os que notaram o evidente autoritarismo dessa demarcação de fronteiras).
Em resumo, quando um intelectual adere a um partido, a uma nação ou particularidade, trai o reino da sabedoria tal qual um padre que abandonasse Cristo trairia a igreja cristã.
Em uma época em que se reinventam razões particulares e nacionalistas, o livro é atual -para a esquerda. Mas, na mesma época em que também o cosmopolitismo passou a ser um negócio que esconde a alienação (da vida, da nação, e até da "verdade" e da "razão"), o livro permite leituras claramente apologéticas do status quo -e aí é atual para a direita. Mas, no mundo neoliberal, para onde iriam os intelectuais que se encantassem pela máxima liberal que sustenta o raciocínio de Benda: "Cada um cuide de seu jardim" (o dos intelectuais é o das mais belas flores do ideal)?
Na época de Benda a lição era: recue à "torre de marfim".
Lido fora de seu contexto, Julien Benda parece apenas um tolo, crente que o intelectual é um ser superior, que sua ciência é neutra, que sua missão não é mais do que falar em nome de uma razão de consenso.
De minha parte, fico com o raciocínio crítico de Adorno, que em sua "Minima Moralia" entendia que os intelectuais são tanto os "aproveitadores dessa medíocre sociedade" quanto "aqueles cujo trabalho inútil determinará, apesar de tudo, o êxito de uma sociedade liberada do utilitarismo -contradição inaceitável que é preciso superar de uma vez por todas".
Essa dialética, cuja síntese seria o intelectual ao mesmo tempo obstinado e revolucionário (pois comprometido em lutar pela nova "sociedade liberada", e não pela sociedade utilitarista liberal), vai muito além do simplismo simpático de Benda.


A TRAIÇÃO DOS INTELECTUAIS
Autor:
Julien Benda
Tradução: Paulo Neves
Editora: Peixoto Neto
(tel. 0/xx/11/ 3063-9040)
Quanto: R$ 59 (288 págs.)

FRANCISCO ALAMBERT é professor de história social da arte e história contemporânea na USP.



Texto Anterior: + Livros: O imperador do lápis vermelho
Próximo Texto: + Literatura: A linha de Sombra
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.