São Paulo, domingo, 22 de abril de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ Literatura

A linha de SOMBRA

Ian McEwan fala do romance "Na Praia", que sai no Brasil em junho, critica o pessimismo dos intelectuais e diz envolver-se com ecologia

BOYD TONKIN

Se você caminhar pela "infinidade de seixos" de Chesil Beach, em Dorset, como fez Ian McEwan quando estava compondo seu novo romance, descobrirá que milênios de marés e ventos "graduaram o tamanho das pedrinhas" nas 18 milhas de extensão da praia "com as pedras maiores na ponta oriental".
O escritor quis verificar a afirmação e, pesando as pedrinhas em suas mãos, achou que era verdade.
Muitos críticos já saudaram "On Chesil Beach" como uma grande realização de um meticuloso micro-historiador da vida interior.
Edward e Florence, o casal amoroso, mas fatalmente inocente, que protagoniza o livro, entram cambaleando numa noite de núpcias desastrosa nessa Inglaterra reprimida e respeitável de julho de 1962, vítimas não só de "suas personalidades e seus passados" mas "da classe social e da própria história".
Mas os admiradores de longa data de McEwan vão detectar alguns ritmos ainda mais profundos em ação aqui.
Mais uma vez o escritor acompanha a ominosa travessia de um limiar entre um estado humano e outro: um passo para dentro do escuro enquadrado, como tantas vezes acontece em sua ficção, pelo inexorável movimento para a frente dos corpos em processo de maturação e envelhecimento, da evolução biológica, do clima e até da própria geologia.
Conversamos num restaurante em Fitzrovia, a pouca distância a pé, para McEwan, da bela residência numa praça georgiana que ele empresta ficcionalmente ao neurocirurgião Henry Perowne em "Sábado" -outro romance que gira em torno de mudanças momentosas, passando do reino médico para o militar.

Ponto de partida
Apesar da evocação aguçadíssima de um tempo em que "as energias juvenis se esforçavam para escapar, como faz o vapor sob pressão", esse derradeiro estertor de inibição sexual britânica conferiu à história de "Na Praia" um ponto de partida, e não um final.
"Nunca enxerguei realmente o livro como romance histórico", explica McEwan, "porque eu estava interessado em outro aspecto, que é o momento em que os jovens atravessam essa fronteira -a linha de sombra conradiana [referência ao romance "Linha de Sombra" (Revan), de Joseph Conrad, 1857-1924]- entre a inocência e o conhecimento".
"Também estamos lidando com uma condição humana universal. Então fiquei interessado em descobrir como ela seria encarada por jovens."
"Fiquei bastante aliviado, por exemplo, ao constatar que meus filhos o leram avidamente -apesar de estarem vivendo num tempo em que não apenas têm namoradas como muitas amigas mulheres: ou seja, um outro mundo".
O livro também sobreviveu quando posto à prova fora da família de McEwan (sua mulher é a jornalista e escritora Annalena McAfee, e tem dois filhos de seu primeiro casamento que têm 20 e poucos anos de idade).
McEwan leu um trecho do livro no Hunter College, em Nova York, diante do tipo de corpo discente que poderia ter sido perdoado por não sentir empatia com a falta de jeito no quarto nupcial de dois jovens virginais de 22 anos.
"É uma faculdade pública", diz o autor, "e os jovens são... a palavra certa não é endurecidos, eles são uns amores, mas não são pessoas protegidas. Fica claro que eles já fizeram muita coisa". Será que esse público blasé reagiria pensando "por que Edward e Florence "não vão em frente, simplesmente? Qual é o problema?"."
Mas, pelo contrário: eles pareceram ficar profundamente interessados.

Cruzar o limiar
"Então deve haver dois elementos que correm lado a lado", prossegue McEwan.
"Um deles é que essa é uma história específica: são personagens congelados na história, limitados pela psicologia, pela classe social, pela experiência particular. Mas, por outro lado, essa é uma experiência universal que é vivida de maneira diferente por pessoas diferentes em tempos diferentes."
A juventude sempre precisa atravessar esse limiar, nem que para isso não aconteça mais nada sobre os lençóis engomados de um leito nupcial num hotel desmazelado de Dorset.
Eterno realista meticuloso, McEwan, apesar disso, desvia dos mares da parábola ou do mito. No entanto, para esta, a 12ª obra de ficção desde sua estréia, em 1975, quis evitar entrar demasiadamente fundo na água.
"Essa praia particular oferecia tantas possibilidades metafóricas", disse ele. "Elas poderiam matar o romance! Então tive que remar muito forte contra isso."
A ficção de McEwan nos atinge de modo tão forte e permanece por tanto tempo em nossa imaginação precisamente porque o escritor mantém o volume interpretativo baixo.
"Os leitores se rebelarão", ele acredita, "quando identificarem uma metáfora dominante e determinante".
A obra acabada dá mais espaço ao leitor: podemos nós mesmos interligar os pontinhos do passado assim como podemos fazê-lo com os futuros a serem desfrutados ou suportados pelos jovens após o ato -ou o não-ato- que vai moldá-los.
Edward, o historiador promissor, agora parece se dirigir a uma vida contracultural amigável; Florence, a violinista quase compulsiva, está parada à beira de um destino musical solitário.
Florence toca num quarteto de cordas que está em ascensão, e o romance que conta sua história possui uma qualidade de música de câmara densamente tocada, compacta. Um movimento central -a própria noite de núpcias- é entremeado por capítulos que mergulham no passado dos personagens e, no final, no futuro também. "Uma das primeiras coisas sobre as quais escrevi quando estava fazendo as anotações", recorda McEwan, "foi uma diretriz simples: cinco vezes oito -cinco capítulos de aproximadamente 8.000 palavras. Uma noite de núpcias me pareceu perfeita para um romance curto".
Observa: "Sempre gostei desse formato: o romance que pode ser lido em três horas, de uma sentada só, como um filme ou uma ópera".
Uma ópera de câmara será o próximo projeto de McEwan, que tem estréia prevista em 2008. Ele quase completou uma colaboração de pequena escala com o compositor Michael Berkeley. A obra tem como protagonista um sedutor à moda de Don Giovanni. "Achamos que a obsessão sexual seria um ótimo tema para uma ópera."
E a obsessão sexual, sob a forma mais de anseio ou repulsa do que de ação, forma um motivo igualmente convincente em "Na Praia". Para McEwan, a convergência microscopicamente observada entre constrangimento social e infelicidade erótica, no livro, "não é uma tragédia em grande escala".
"Mas é algo que sempre despertou meu interesse: como alguma coisa pequena, como deixar de dizer a coisa certa ou fazer o gesto certo, pode conduzir você por um caminho ligeiramente diferente na vida. Isso nos acontece incontáveis vezes, mas mal nos damos conta."
Da mesma maneira que "Sábado" mais ou menos deu ao sr. Perowne o endereço próprio de seu criador, "Na Praia" vê Edward crescendo na casinha rural da região de Chilterns que McEwan uma vez quase alugou, enquanto a fria família de Florence ocupa a casa no norte de Oxford em que ele viveu durante os anos 1980.
"Cheguei a isso tarde na vida", diz ele, "e é uma coisa tão padronizada no romance inglês: o senso de lugar. Isso é algo que sempre me fez falta, acho, por ser filho de um militar, depois ter estudado numa escola interna e, mais tarde, numa universidade moderna", a de Sussex, seguida por sua iniciativa de ser o primeiro estudante de redação criativa na Universidade East Anglia.
O escritor também mergulha fundo em discussões ecológicas.
Em 2005 ele participou de uma viagem ao arquipélago de Svalbard, 79 graus norte no Ártico, para o projeto Cape Farewell, liderado pelo artista David Buckland, que visa a elevar a consciência cultural dos problemas do aquecimento global.
McEwan faz amplas leituras científicas e, antes de nosso encontro, tinha viajado a Hamburgo para um diálogo público com John Schellnhuber, o assessor do governo alemão para questões de mudanças climáticas.
No entanto, McEwan, o intelectual engajado (como ele foi durante uma onda anterior de ansiedade sobre o fim dos tempos, a corrida armamentista nuclear do início dos anos 1980), e McEwan, o romancista, são seres distintos.
"A ficção rejeita o tom de pregação", ele afirma. "Tampouco aprecia muito os dados, números, tendências ou curvas em gráficos. E os leitores não gostam muito de ser alvos de reprimendas."
Ele diz que, "apesar de tudo o que eu já li sobre as mudanças climáticas, nada nessas leituras me sugeriu qualquer coisa útil em termos de abordar essa questão num romance".
McEwan, que acompanhou um neurocirurgião respeitado quando pesquisava para escrever "Sábado", aprecia a companhia e o ponto de vista dos cientistas, que vê como antídoto ao desespero indolente dos docentes de disciplinas artísticas.
"O pessimismo é o estilo dominante entre os intelectuais culturais", diz ele com leve toque de desprezo. "Você não é membro de carteirinha se não tiver uma visão sombria."

De bem com a ciência
Mas, quando se trata das mudanças climáticas, ele constata (citando o revolucionário italiano Gramsci) que os cientistas são capazes de combinar "pessimismo do intelecto" com "otimismo da vontade".
"A ciência é um projeto intrinsecamente otimista. Não é possível ser curioso e deprimido ao mesmo tempo. A própria curiosidade representa uma aposta na vida. E, com freqüência, a ciência tem consciência do prazer intelectual de um modo que as humanidades não têm."
A ciência também pode, hoje, "invadir" a seara tradicionalmente artística. McEwan recentemente ouviu uma palestra sobre a neurociência da vingança, na qual a vontade furiosa de se vingar -esse combustível inesgotável tanto para a tragédia quanto para a comédia- ilumina partes do cérebro "em tempo real, funcionando como imagens de ressonância magnética", conta ele.
"O que foi demonstrado foi que as pessoas se dispõem a castigar a elas mesmas para castigar aos outros -um altruísmo negativo." Mas McEwan continua a acreditar nas atribuições especiais da arte.
"Eu me apego à visão de que o romancista pode ir a lugares que podem ser paralelos a uma investigação científica, mas que nunca poderiam ser realmente substituídos por ela: a investigação de nossa natureza, nossa condição."
"Na Praia" mostra em sua conclusão infinitamente triste um exemplo de "altruísmo negativo" autopunitivo em ação.
E, se a comunicação e a solidariedade humanas podem afundar tão totalmente no pequeno poço de medo e frustração deste romance, quais serão suas perspectivas no grande oceano do comportamento humano?
Fala-se em reduzir emissões de carbono, sacrifícios que esta geração poderá ter que fazer para poupar recursos humanos em prol das futuras gerações, e McEwan comenta que mesmo esse altruísmo de longo prazo "vai um pouco contra nossas inclinações".
Mesmo assim, prossegue: "Alegro-me ao pensar nos construtores das catedrais medievais, que construíam para o futuro, ou nos plantadores de árvores do século 18, que plantaram carvalhos de que nunca chegariam a desfrutar. O que vivemos hoje é muito mais duro, mas somos obrigados a pensar em nossos filhos, ou pelo menos em nossos netos".
"O pior destino seria concluir que "não há nada que possamos fazer a esse respeito, e, logo, façamos festa até tudo chegar ao fim"."



A íntegra deste texto saiu no "Independent". Tradução de Clara Allain.



Texto Anterior: No corredor polonês
Próximo Texto: Trajetória do autor é marcada por confusões
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.