São Paulo, domingo, 22 de maio de 2005

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A imagem artística deve ser examinada como a elaboração de uma figura à procura de sua referência, e não pensada como composta a partir de coisas e fatos anteriormente presentes

O construtor de inversões

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA

Desde a Antigüidade, a imaginação tem sido posta como aquela faculdade de ter presente uma coisa ausente, de imaginar agora como será a reação do leitor ao ler estas páginas ou meu próximo passeio pelo parque Volpi [em SP]. É por isso uma espécie de memória revirada, pois sempre tem, de um lado ou de outro, a percepção como ponto de partida.
Nada mais natural, portanto, que as figuras desenhadas nas grutas habitadas por nossos antepassados, os afrescos e mosaicos, os quadros e mesmo a fotografia artística sejam pensados como imagens compostas a partir de coisas e fatos anteriormente presentes, agora sendo evocados por elas.
Tudo se passa como se a imagem de uma obra de arte copiasse o pé que deixa sua pegada na areia ou a mão que suja o papel com suas marcas. No quadro haveria, então, uma semelhança originária entre a imagem e a coisa afigurada que não precisaria ancorar-se num decalque ou num método de projeção, capaz de estabelecer semelhança entre uma curva e uma expressão algébrica, tal como aquele inventado por Descartes. Mas sempre estaria pressuposto que o artista trabalharia a partir de um modelo, percebido num relance ou pairando no céu das essências.
As artes plásticas não poderiam fugir dessa imitação ou, como querem alguns, da mimese.

Para além da mimese
No entanto, se refletirmos sobre a maneira pela qual nos tornamos familiar com um belo quadro -ou qualquer adjetivo que lhe queiramos dar, como "interessante", "bom", "extraordinário" etc.-, logo verificamos que as coisas só se passariam assim se invocássemos aquela relação mística segundo a qual Deus, artista por excelência, pôde criar o homem à sua imagem e semelhança.
Não seria possível pensar além da mimese e a partir de novos parâmetros? O pintor, no final das contas, constrói imagens, o escultor fabrica bustos e estátuas.
Por que não examinar desde logo a imagem artística como construção de uma figura à procura de sua referência, de algo que possa representar, digamos, seu imageado? Ao caminhar da imagem para o imageado, ainda necessitamos considerar o papel do construtor, de sorte que a relação, agora, passa a ser ternária.
Percebe-se de imediato o primeiro lucro dessa operação, ao introduzir o modo de ver do próprio pintor ou do espectador entre a imagem e o imageado. A imagem surge como figura ambígua, pois, de um lado, nela se vê o imageado; de outro, o traço, o desenho vistos tal como invoca a coisa. No seu livro "A Pintura como Arte" (Cosacnaify), Richard Wollheim distingue, na percepção do quadro, o ver o objeto retratado e o ver no suporte a figura.
Desde que passemos a privilegiar o ato construtivo no quadro -ou em qualquer outro suporte de uma pintura-, passamos a notar no traçado o afloramento de relações internas entre suas partes. Por exemplo, o modo como aquela figura se destaca de forma muito especial da paisagem, indicando como é capaz de manter com a natureza retratada uma relação distante, ou ainda como aquela mancha de cor a invadir um pedaço da tela transforma o preto ao lado num foco de luz e assim por diante.
Desse ponto de vista, o quadro, mais que combinar o ver algo e o ver no suporte igualmente algo, ressalta a ambigüidade da figura, seja apresentando uma coisa ou uma cena, seja se apresentando como arranjo significativo e expressivo de partes. Noutras palavras, ressalta o que se narra e a carne da narração.


A avaliação de uma obra há de partir dela mesma na sua ambigüidade

Essa distinção inscrita no significado do verbo "ver", que tanto quer dizer ver algo quanto ver como, permite-nos procurar na obra de arte processos de variação de aspectos inscritos nelas mesmas. Vejo um cubo deste ou daquele ângulo, mas para isso ando em volta dele sempre à espera que o imaginado se cumpra.
Mas, quando giro em torno daquela mulher reclinada, esculpida por Henry Moore e exposta numa loja externa da Pinacoteca do Estado de SP, mais que variar meus pontos de vista, estou a seguir uma curva que, passando para o outro lado, se revela como mármore irradiado ou ainda meus olhos se fixam em seus pés até que me façam esquecer o que representam para se mostrarem exemplos de uma matéria tipicamente esburacada.
Se o objeto da percepção se dá, em termos fenomenológicos, por perfis ligados entre si segundo "sínteses passivas", em contrapartida o objeto artístico desdobra seus perfis como se ligados por uma linha mágica a levar-nos a ver algo e também como algo é visto. Isso se dá até mesmo no caso-limite do "ready made", em que a coisa apresentada deixa de valer por seus perfis de coisa para impor apenas sua presença vicária, porque industrial. Tenho me ocupado com esses problemas ("O Jogo do Belo e do Feio", Cia. das Letras) e precisaria mais tempo e ócio para levá-los adiante.
No entanto importa aqui salientar que esse modo de ver um quadro realça o lado construtivo da imagem, livrando-nos do tradicional império da mimese. Em vez de ir da coisa para a imagem, a avaliação de uma obra há de partir dela mesma na sua ambigüidade, jogando com a visão do que vem a ser retratado e as diversas maneiras de compor a imagem utilizando diferentes materiais. O referente, o imageado, nasce, pois, desse jogo que, às vezes, trabalha com semelhanças, mas cujo valor estético não depende delas.
Isso é evidente na pintura abstrata. Sua composição sempre procura sair do suporte, construir uma espécie de paisagem que vai além do enquadramento da tela, abrindo-se para um mundo diferente daquele do cotidiano, na medida em que assinado por um artista, mesmo quando um desconhecido. Esse extravasar regulado além do enquadramento acontece até mesmo com artistas que trabalham com pouquíssimos elementos. Veja-se Barnett Newman, cujas telas apresentam um campo colorido talhado por uma ou mais faixas verticais. Poderia haver composição mais simples?
Aí o jogo do fundo e das faixas cria um espaço vazio à procura de preenchimento, de sorte que o espaço sugerido vai além do retângulo do suporte, sem que este seja transformado numa janela na qual seja visto aquele espaço, sempre demarcado pela trama das listas.

Semelhanças
Bem sei que contrario a prosa de muitos artistas, a maneira pela qual falam de seus trabalhos. Durante séculos não se propunham a narrar o encontro de deuses com homens, fatos marcantes e, mais tarde, a presença de uma paisagem ou natureza morta? Picasso, por exemplo, está sempre reafirmando que parte de semelhanças, e quem for à Pinacoteca ver a belíssima exposição de Henry Moore poderá assistir a um filme em que o artista relata que muitas vezes se inspira no aspecto de uma pedra que lhe lembra um pássaro ou de um tronco calcinado que lhe sugere um guerreiro.
Mas já não se infiltraria, nessa maneira de dizer alimentada por uma tradição secular, aquela inversão que vai da imagem ao imageado a fim de que a obra de arte possa fazer ver? O próprio Picasso nos lembra que suas deformações se concentram em determinados pontos do quadro, de que sua composição implica variação de aspectos: "Só se pode acompanhar realmente o ato criador por meio da série de todas as variações", diz ele nos diálogos com Brassaï ("Conversas com Picasso").
Ora, por que todas as variações? Essa alusão a uma totalidade não remeteria ao espaço do suporte? Além disso, basta assistir ao filme de Clouzot em que o pintor aparece trabalhando em telas transparentes, o que permite filmar sua operação pelos fundos, para que se perceba que não lhe interessa pintar este ou aquele animal, esta ou aquela coisa, mas explorar as junções e disjunções que seu ato está criando no objeto.
Não se constituiria, a partir dessa produção singular, justamente o jogo do belo e do feio?

José Arthur Giannotti é professor emérito na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.

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