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São Paulo, domingo, 22 de junho de 2003

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+ cultura

FORMULAÇÃO DO IMAGINÁRIO DEVE LEVAR EM CONTA A FICCIONALIZAÇÃO DA REALIDADE E SE FUNDAR TANTO NO PADRÃO QUANTO EM FORMAS ALTERNATIVAS DE RUPTURA, RESISTÊNCIA E SUPERAÇÃO

Um conceito de imaginário do povo brasileiro

Jarbas Oliveira - 2.nov.1999/Folha Imagem
Romeira chora no aniversário de inauguração de estátua de padre Cícero (CE)


Ivan Teixeira
especial para a Folha

Se a etimologia for aceitável como forma de investigação de um conceito, a idéia de imaginário pertencerá à esfera semântica da utopia, do mito e da criação artística. Hipoteticamente, sua incorporação ao campo da representação o separa do universo da tecnologia, que, em princípio, procura transformar o real, ao passo que o imaginário procura imitá-lo para melhor conhecê-lo, geralmente em perspectiva contemplativa, crítica ou reflexiva. Por isso, é possível supor que o próprio conhecimento artístico, primordialmente caracterizado pelo desejo de análise, sempre se apresentou, também, como estágio importante ao projeto humano de dominação do real. Desde o tempo das imagens rupestres, com todas as nuanças ritualísticas que implicavam, as práticas representativas jamais se desvincularam do vago propósito de controlar os animais por meio da produção de suas imagens. Assim, simulacro e realidade se misturavam de forma meio inconsciente, até que Aristóteles consolidou a teoria da arte como mimese ou imitação do real, cuja finalidade, em última análise, é o conhecimento e o domínio do homem sobre as próprias paixões. Ao falar em imitação da natureza, o filósofo pressupunha um inequívoco conjunto de mediações discursivas, que inclui não só a idéia de gênero e decoro, mas também um vasto conjunto de normas que definem o que deveria ou não ser incorporado ao campo da arte. Em síntese, a arte não imita propriamente a vida, mas sim conceitos de realidade. Convertidos em código do imaginário, tais conceitos produzem a impressão de verdade. A partir da teoria aristotélica, cada vez se torna mais possível a formulação de hipóteses segundo as quais os signos são mais importantes do que as coisas que, supostamente, representam. Não só porque possibilitam o conhecimento das coisas, mas também porque, transformando-as em conceitos, facultam sua classificação, isto é, sua incorporação ao âmbito da cultura e sua consequente dominação. A própria concepção platônica de que o mundo não passa de reflexo de essências favorece o princípio de que as imagens podem atuar sobre os fatos e as ações. Retomando algo da concepção platônica, Derrida afirma, em sua teoria da suplementaridade, que aquilo que chamamos de realidade não passa de efeito do signo.

Mediações discursivas Ao instituir o real, o signo nos impossibilita de alcançá-lo em sua fisicalidade extratextual: só é acessível por meio de interminável sucessão de mediações discursivas. Isso não quer dizer que nossos corpos não tenham nascimento, vida e morte empiricamente demonstráveis.
Mas também não inviabiliza a noção de que nossa experiência sobre o nascimento e a morte só se torna possível por meio de relatos alheios, fundados, por sua vez, em discursos que se perdem no tempo. A humanidade incorpora tais discursos como realidades vividas. Mas, na verdade, eles só se transformam em logoi ou imagens cognoscíveis por meio da complementação de discursos, que se fundam em discursos que se fundam em discursos e assim por diante.
Na análise do imaginário popular, não importa tanto ao intérprete enfatizar suas relações com o universo psicossocial de que se origina quanto estabelecer o tipo de sintaxe que rege as conexões do imaginário com o discurso social de que emana ou que representa. O intérprete deve examinar o grau de importância dos elementos combinatórios que participam da geração do sentido naquele processo.
Assim, o significado não decorrerá de nenhuma imanência transcendental, mas de relações estabelecidas pela leitura e também pela história da leitura. Por essa perspectiva, uma das suposições menos desejáveis quando se trabalha com as produções do imaginário de um povo é entendê-las como expressão da alma ou da essência desse povo. Pois a própria idéia de alma, de essência ou de povo já é, em si mesma, manifestação do imaginário coletivo, construções resultantes do trabalho de intérpretes ou instituições consagradas, e não revelação espontânea de uma presumida essência que jaz para além das configurações concretas da cultura do mesmo povo.
Como se sabe, em "Imagined Communities - Reflections on the Origin and Spread of Nationalism" [Comunidades Imaginadas - Reflexões sobre a Origem e Expansão do Nacionalismo", Verso Books], Benedict Anderson, em sintonia com certas premissas da linguística saussuriana e com alguns princípios da retórica sofística, formulou uma teoria muito influente sobre a idéia de nação e de nacionalismo. Conforme Anderson, não há uma essência espontânea que unifique as pessoas de uma mesma nação. O que ocorre, segundo ele, é a construção cultural de um logos discursivo que institui um simulacro apreendido como verdade natural ou como imanência preexistente ao discurso, à espera de assimilação pelos membros da comunidade. As pessoas, empiricamente concebidas, não se confundem com o país. Ao contrário, elas só podem ser concebidas como representantes do povo de qualquer país quando passam a incorporar traços da normatividade discursiva que institui a idéia de nação -normatividade que pode ou não representar as instituições oficiais.


Entre os camelôs e os parlamentares, o conceito proposto opta pelo discurso dos ambulantes, entendido como símbolo da invenção provisória do imediato


Não se trata, portanto, de defender uma concepção idealista de cultura ou de imaginário, porque o discurso que pode eventualmente representar um povo integra também a existência concreta e singular desse povo. Ao contrário do idealismo como postura epistemológica, essa noção conduz ao conceito de identidade nacional não como essência imanente, mas como construção que partilha do materialismo cultural, pois mantém contínua relação de reciprocidade entre imagem e prática social.
Um conceito operante de imaginário do povo brasileiro tem de evitar a falácia romântica segundo a qual as criações populares se entendem como reflexo do Real Absoluto. Teria também de contrariar os pressupostos que fazem crer na imanência do nacional.
De acordo com esse conceito, o Brasil não existe senão como discurso cultural, concebido como aspecto importante de sua própria história: ora institucional e reguladora, ora popular e transgressiva, ora intelectual e conservadora, ora intelectual e renovadora, ora popular e reacionária e assim por diante. Entre os camelôs e os parlamentares, o conceito aqui proposto opta pelo discurso dos ambulantes, entendido como símbolo da invenção provisória do imediato. Mas entre um e outro, seria prudente inserir a consciência crítica do intérprete, que deverá arbitrar entre o caos criativo e a ordem opressiva.
A concepção aqui esboçada procura valorizar as formas de resistência cultural em sentido amplo, que tanto se observam num texto de João Cabral de Melo Neto quanto no sincretismo religioso da Bahia. Por outro lado, leva em conta as construções artísticas de pessoas que, oriundas das classes populares, se apropriaram de esquemas e comportamentos da elite para refletir sobre questões importantes acerca do modo como as elites controlam as camadas populares. Nesse sentido, seria interessante focalizar o processo de verticalização de baixo para cima, tal como se percebe, por exemplo, nos romances de Lima Barreto e, sobretudo, nos de Machado de Assis.
O conceito investigaria, também, como a Igreja Católica participa de um processo de verticalização de cima para baixo: ela penetra nas camadas populares para promover a construção de uma suposta identidade espontânea entre os valores católicos e a população brasileira. A rigor, tal identidade decorre de secular impregnação catequética, que implica exclusões e as mais variadas formas de imposições. Assim, movimentos como os de padre Cícero, por exemplo, poderiam ser reexaminados como elos de ligação entre manifestações espontâneas do povo e certas formas de controle calculado das elites.
Alguns movimentos fazem crer que, quando o povo fala, já não fala o povo. Em casos como os de Machado de Assis, quando fala a elite, já não é a elite que fala. Personagens como Lampião, se bem abordados, poderiam representar, com ânimo mais vivaz, o imaginário da resistência cultural no Brasil, com todo o seu poder de sugestão e desdobramentos temáticos. Afinal, quem foi Lampião? Quais as imagens que se construíram dele ao longo dos tempos? Há uma motivação sustentável em seu projeto de ação política? Encarna o ideal de violência em si ou deve ser visto como resposta consciente à perversão arcaica das elites nordestinas?
No início deste texto, o conceito de imaginário foi associado ao ato da criação artística, no sentido de instauração poética do mundo, que assume, dentre outras, a forma do discurso verbal. Imaginário seria, então, o conjunto de artifícios que atribui dimensão polissêmica ao enunciado. Tal princípio se apreende tanto nas curvas de um entalhe de Aleijadinho quanto numa estrofe de cordel ou num trecho de João Cabral de Melo Neto, que mistura técnicas da chamada poesia erudita com elementos da elocução popular para operar a instauração do imaginário:
"A aranha passa a vida
tecendo cortinados
com o fio que fia
de seu cuspe privado".
O efeito de engenho milagroso da estrofe decorre da atribuição de intencionalidade humana aos movimentos da aranha. Daí a sagacidade de imaginá-la tecendo, fiando e cuspindo. A voz poética vê um animal, mas o interpreta como gente. Graças ao uso imaginoso da língua, o poema se transforma em pequena alegoria do trabalho da criação poética, que deve brotar das entranhas de quem o produz. Insinua um paralelo com o rigor construtivo de uma certa família de poetas, dentre os quais se coloca o próprio João Cabral.
Todavia a lição mais abrangente que se infere do poema para a formulação de um conceito de imaginário é a noção de ficcionalização da realidade, por meio da alegoria, que possibilita falar de uma coisa por meio de outra. A exemplo do que se observa no texto de Cabral, independentemente do material escolhido, o conceito de imaginário fundar-se-á sempre na dilatação iluminadora do sentido do mundo, que pressupõe tanto o padrão quanto formas alternativas de ruptura, de resistência e de superação.

Ivan Teixeira é professor de literatura brasileira no departamento de jornalismo e editoração da Escola de Comunicações e Artes da USP. O artigo acima faz parte de uma pesquisa mais ampla escrita durante período em que o autor foi professor convidado no departamento de espanhol e português da Universidade do Texas (EUA).


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