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São Paulo, domingo, 22 de junho de 2003

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PONTO DE FUGA

Tiroteio

A resposta não é tão evidente quanto parece. "Tiros em Columbine" quer saber a causa de tantas mortes provocadas por armas de fogo nos Estados Unidos, um triste recorde. A história norte-americana não é mais violenta do que a de qualquer outro país. No mundo inteiro, um público ávido acorre a filmes em que a crueldade é o espetáculo. No Canadá, onde a caça é esporte nacional, o número de armas por habitante é também elevado. Nenhuma dessas razões parece satisfatória. O filme insinua uma resposta inesperada: há, nos EUA, uma cultura do medo, paranóica, assustada. As mortes por balas domésticas são consequência desse pavor.
O filme de Michael Moore é inteligente. Talvez um pouco demais. Transparece esperteza nas imagens que lutam por um bom combate, em clara estratégia. Não só porque a sequência inicial, de um banco oferecendo rifles a quem abre uma conta, tenha sido manipulada. Documentários são tão verdadeiros, ou tão mentirosos, quanto a ficção. Ocorre, no entanto, que a estratégia é inimiga da sinceridade. Na cena de confronto com Charlton Heston, que milita pelo direito ao armamento, o retrato de uma garotinha baleada na escola por um colega de 6 ou 7 anos torna-se uma isca sentimental insuportável. Em que pesem suas boas convicções, o filme tem alvo certeiro: o público anti-Bush, anti-"americano", que ele sabe adular. Tanto melhor, talvez. Hábil, confirma seu diretor num papel contestatário bem construído.

Aparências - "Tiros em Columbine" traz uma dúvida ética. Vale sacrificar a sinceridade dos meios por uma causa? São graves as questões do filme: armamento pessoal, paranóia coletiva, mortes de inocentes. A denúncia deveria evitar qualquer oportunismo, mesmo o que vem de leve, disfarçado, de contrabando, por assim dizer. Existe um paralelismo pertinente. A fome é abominável e deve ser combatida. Mas até que ponto um slogan como "fome zero" recobre, de fato, seu objetivo? Até que ponto ele não é, também, ou sobretudo, marketing político? O marketing parece ter se tornado a essência da política, afastando, como ingênua, a ética da sinceridade.
O presidente da República associou o combate contra a fome à venda internacional de armas. Propôs taxar um negócio infame em beneficio dos famélicos da terra. Luminoso achado. Basta porém uma pergunta incômoda e as perversões afloram: uma vez o comércio de armas submetido a um imposto contra a fome, deve-se desejar que ele prospere? A lógica é indiscutível: quanto mais guerras, menos desnutridos. Esse comércio se legitima, participando de luta tão nobre: ao comprar seu calibre 32, você estará fazendo diminuir a fome no mundo. "Tiros em Columbine", pelo menos, não sugere que brote, da venda de rifles e pistolas, algum subsídio para o cinema independente. O que já é um bom ponto para o filme.

Marco - No dia 7 de julho de 1973, 8.600 pessoas se amontoavam no antigo teatro romano de Orange, cidadezinha da Provença. O festival de óperas apresentava ali uma única récita de "Tristão e Isolda". Foi algo assim como um milagre. Os protagonistas eram Jon Vickers e Birgit Nilsson, dirigidos por Karl Böhm. A concepção cênica de Nikolaüs Lehnhoff, baseada em intensidades luminosas, incendiava-se no amor sublimado pela música. Há um CD (selo Rodolphe), de ótimo som, desse espetáculo. Saiu agora, nas bancas de jornal, o filme, em DVD (DVD Ópera). A qualidade sonora não é tão boa, mas o deslumbramento persiste.

Escolha - Vickers e Nilsson, cantores wagnerianos maiores no pós-guerra, nunca se reuniram em estúdio para gravar "Tristão", tornando ainda mais precioso o registro de Orange. Há uma outra gravação mítica, muito mais antiga, ao vivo, tomada no Covent Garden em 1937 (EMI). Ela provém, na verdade, de récitas diferentes que misturam dois maestros lendários, Beecham e Reiner! Mas a unidade permanece e o canto atinge o apogeu de sua história com Lauritz Melchior e Kirstin Flagstad em plena maturidade vocal.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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