São Paulo, domingo, 22 de junho de 2008

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Um para o outro

Leia trecho de conto de Machado de Assis que tinha partes consideradas desaparecidas e que sai pela primeira vez na íntegra no mês que vem

Vivam um para o outro, foi a última palavra do coronel Trindade no leito da morte.
Ouviram-lhe, com religioso respeito, seus dois filhos Henriqueta e Julião, ela de 18 anos, ele de 20; mas nada lhe puderam responder. Cabia a vez ao soluço: a dor de perder o pai era mais que tudo naquela ocasião.
Também nada mais disse o moribundo; foi aquela a última palavra, se palavra se pode chamar um som mal expresso e já tingido da descor da morte.
Poucos minutos depois morreu o coronel, e morreu sobre a tarde do dia 4 de outubro de 1862.
A casa em que se finava era situada no Engenho Velho, e fora mandada construir por ele mesmo, alguns anos antes.
- Já sei que te pretendes casar, disse-lhe por essa ocasião o mais galhofeiro de seus amigos, o desembargador Tinoco.
- Não, retorquiu ele; a minha vida é cair com a casa -cairmos de velhos.
Mas a idéia falhou, e o coronel morreu com pouco mais de cinqüenta anos, viúvo qual era desde os quarenta, entre seus dois filhos e alguns parentes, mais ou menos chegados. Julião e Henriqueta deram ao morto as lágrimas do mais sincero desespero: não houve consolações, naquele lance, que pudessem entorpecer a dor íntima e profunda, nem minguar-lhes a manifestação ruidosa; não as podia haver. Desde longos anos, o velho coronel era para eles pai e mãe; era quem lhes substituía a esposa extinta e nunca deslembrada.
Acresce que a doença que levava o pai fora rápida, e destruíra em poucos dias um organismo que parecia destinado a enterrar ainda muitos anos; e, ao cabo, o enterrado era ele, com todo o vigor de que dispunha.
Não era pobre o coronel Trindade, mas abastado, e sobre abastado, econômico; de maneira que, ao menos, não teve a dor de deixar os filhos ao desamparo -e digo ao desamparo, porque Julião não completara ainda os estudos, não tinha posição ou emprego, donde tirasse a subsistência, se precisasse de a ganhar. Estudava na Escola Central, diziam ser bom estudante, e assim provou ser em todos os exames que fez, e dos quais se saiu com aprovação plena, e não raras vezes com louvor. A esperança do coronel era ver o filho engenheiro, louvado e procurado -o engenheiro Trindade- filho do coronel Trindade; era a sua esperança e seria a sua glória. A realidade foi outra -tão certo é que a esperança é nada.

2.
Um ano depois do acontecimento, apenas indicado no outro capítulo, recebeu Julião o seu diploma de engenheiro -e esse remate de alguns anos de honrado labor, de estudos sérios, não lhe deu a alegria com que contava; faltava uma pessoa. A irmã, que não menos do que ele sentia aquela ausência, buscou ainda assim dissimulá-la; e ele, pela sua parte, tratou de esconder o que sentia. Esses dois corações possuíam o melindre dos sentimentos, a discrição das dores repartidas, que não desejam agravar-se mutuamente, e portavam-se com a habilidade que a natureza não concede a muitos, talvez a raros.
- Julião, disse Henriqueta três dias antes deste tomar o grau de engenheiro- tive uma idéia.
- Que é?
- Quero primeiro que você aprove.
- Mas que é?
- Aprova?
Julião sorriu.
- Se não é enforcar-me, aprovo, disse ele.
- Não é enforcar, é jantar; é jantar no dia em que você receber o seu diploma de engenheiro.
- Ora!
- Qual ora! Já tenho a lista dos convidados; são os nossos parentes.
- Só?
- Só.
- Titia, que diz? perguntou Julião a uma senhora idosa que estava na sala, a poucos passos, com um jornal na mão.
- Digo que Henriqueta pensa muito bem
. A tia de que se trata era-o por parte de mãe; tinha os seus cinqüenta anos, chamava-se D. Antonica; vivia com eles desde a morte do irmão.
Não havia remédio: Julião aceitou o jantar; limitou-se, todavia, a pedir que não fosse lauto nem ruidoso; queria uma coisa puramente de família, porque o acontecimento era de família.
Já sabemos que Julião fora bom estudante; sabemos também que era excelente rapaz; acrescentemos que não era feio, antes bonito, gravemente bonito, másculo e sério. Não se imagine um jarreta, enfronhando a sua mocidade numa gravata de sete voltas; não: sabia ser elegante, gostava de andar à moda; não usava, porém, pedir à moda todas as suas extravagâncias e excessos; era discreto até no vestir.
Henriqueta pertencia à classe de mulheres que sabem ornar-se, qualquer que seja a qualidade do estofo ou o corte do vestido; tinha a elegância nativa. Era alta, cheia, musculosa, talhada com amor no mais belo mármore humano. Talvez não agradassem a alguns os olhos pardos e pequeninos; mas o olhar que chispava deles devia por força angariar adoradores ou amigos; amigos sim, que eram da natureza dos que falam mais aos sentimentos do que aos sentidos. Eram pequenos de si, e pequenos porque a testa era larga, uma testa serena e pura; tão pura e tão serena como o pensamento que ardia no interior. Nunca esse pensamento cogitara no mal; ignorava-o, que é o melhor meio de o não atrair. A boca, que era delicadamente fendida sobre um queixo macio e redondo, não conhecera ou não pronunciara jamais uma só palavra de cólera, porque a própria travessura de Henriqueta, quando criança, era das que se acomodam sem gritos nem lágrimas.
Henriqueta era o tipo da complacência, da bondade, da resignação branda e modesta. Quem lho não lesse na figura e nas maneiras, compreendê-lo-ia no fim de alguns dias de trato.
A pontualidade com que ela obedeceu ao desejo do irmão provava o que já sabemos -isto é, que era de sua parte dócil, e que também sentia a ausência do chefe da família. O jantar foi simples, modesto e tranqüilo; nenhum tumulto, nenhuma excessiva alegria. Os donos da casa deram o tom aos convivas; cada um destes compreendeu que faltava alguém pessoa e que era acertado não acordá-lo do sono.


O trecho acima é o início do conto "Um para o Outro", de Machado de Assis, que será publicado pela primeira vez em sua íntegra no mês que vem, em "Contos de Machado de Assis - Relicários e Raisonnés" (co-edição ed. Loyola/ed. PUC-RJ), com organização de Mauro Rosso.


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