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O jaguar civilizado
Em "Um Estudo Crítico da História" Helio Jaguaribe faz um balanço das principais civilizações, desde a Mesopotâmia e o Egito Antigo até o mundo moderno
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Francisco Alambert
especial para a Folha
Como sempre, antes de falar da civilização, convém lembrar a barbárie. Alguns anos atrás, o eminente sociólogo Helio Jaguaribe,
digno representante da civilização brasileira em todas as suas ambiguidades, arrumou tremendo quiproquó ao enunciar, com a clareza e objetividade que lhe
são peculiares, a necessidade da extinção
das tribos indígenas brasileiras para o
bem delas mesmas!
Pautado por um reto raciocínio histórico-civilizacional, argumentava que era
maldade deixar, como querem antropólogos e afins (gente bárbara, portanto),
os elementares primitivos em seu estado
"paleolítico". Para Jaguaribe, índio quer
apito e a marcha inexorável da civilização deverá recair sobre eles, que de quebra desejam isso como qualquer um.
Assim, deveriam ceder suas terras para
a exploração racional de gente como nós
(ou como os militares da platéia, já que
falava na Escola Superior de Guerra) e
receber de volta um salto histórico que
lhes daria as benesses desse nosso bom
mundo. Tornar-se-iam, quem sabe, "jaguaribes" (ouvi dizer que "jaguaribe" é
um nome de origem indígena e em tradução livre pode significar algo como
"pessoa que tem o costume do jaguar")
no mundo ordenado da "pax universalis" kantiana. Diga-se de passagem, a
idéia, de tão civilizada, chocou até mesmo líderes tucanos, colegas de partido
do nosso sociólogo.
Tudo isso sucede à passagem meteórica
do grande planejador pelo Ministério da
Ciência e Tecnologia do governo de Fernando Collor (1990-92). Dali, onde compartilhou o convívio com outros exemplos da civilização brasileira, como Sergio Paulo Rouanet, Celso Lafer, PC Farias ou Cláudio Humberto, o decano da
sociologia carioca partiu para reelaborar
e dar sentido ao curso da história universal. É claro que empreitada tão colossal
não deveria ser abordada a partir de picuinhas conjunturais. Mas é que me parece impossível encarar as 1.472 páginas
do livro e não pensar: será que depois de
ler tudo isso eu vou acabar defendendo o
fim das culturas indígenas e avaliar que o
governo Collor pode ser um avanço civilizacional? Ao final da leitura, minha resposta é, felizmente, não. Esse livro admirável não é tão bom a ponto de fazer com
que o leitor conceda os mesmos desvarios de seu autor.
De minha parte, continuo pensando
que, se uma "civilização" não é capaz de
incorporar a diferença em seu universo,
há algo muito errado em seus pressupostos. Do mesmo modo, se a tecnologia
moderna não é capaz de se desenvolver
sem ter que assaltar as terras de outras
culturas, então há também algo de muito
errado nas formulações tecnológicas e
naqueles que decidem quais são suas
prioridades (especialmente porque o
"desenvolvimento" tecnológico não é
neutro, não segue apenas sua lógica interna, mas é resultado de decisões e escolhas de grupos, coisa que o culturalismo
do autor não pode reconhecer). Mas, para quem quiser entender como um intelectual capacitado pode não apenas formular tais barbaridades, mas também
recorrer ao auxílio de um governo reacionário e corrupto, é muito bom ler esse
livro...
O currículo do professor Jaguaribe é
sem dúvida um dos mais prestigiosos da
intelectualidade brasileira. Foi um dos
fundadores do Iseb (Instituto Superior
de Estudos Brasileiros), um dos responsáveis pela teoria do nacional-desenvolvimentismo do governo Juscelino Kubitschek (1956-1960), autor do projeto
"Brasil 2000" para o governo Sarney. Ex-secretário de Ciência e Tecnologia do governo Collor, ex-professor nas universidades Stanford e Harvard e no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts).
Autor de obra gigantesca (15 livros individuais e 26 com outros autores), teve recentemente publicada uma obra comemorativa, "Estudos em Homenagem a
Helio Jaguaribe" (ed. Paz e Terra).
"Olhar sociológico"
"Um Estudo
Crítico da História" é resultado do trabalho a que o hoje decano do Instituto de
Pesquisas Sociais (Ipes) se dedicou após
abandonar a "civilidade" collorida. Trata-se de uma das empreitadas de maior
envergadura das ciências sociais brasileiras. A proposta é percorrer as principais
civilizações da história, começando pela
Pré-História, passando pela Mesopotâmia, Egito, Israel, Pérsia, Grécia, Roma,
Bizâncio, Islã, Índia, China para chegar à
civilização ocidental, desde a Idade Média até o mundo moderno. Mas o que difere então esse trabalho de um aplicado
manual escolar?
O autor enfatiza que seu intuito não é
reescrever a história universal, mas sim,
a partir de "um olhar sociológico", identificar as causas da ascensão, florescimento e crise dessas civilizações.
Tal questão não é nova, foi sempre a
obsessão da filosofia da história, como
em Hegel ou Toynbee. Para Jaguaribe,
seus antecessores falhavam por conta de
pressupostos ideológicos que ele pretende superar. Em sua obra não se vê o "espírito absoluto" hegeliano, a vontade divina ou, muito menos, a luta de classes
marxista. Só a objetividade sociológica
"empírica".
O projeto é abordar o processo histórico com instrumental inspirado nas estruturas históricas de Toynbee e nos
conceitos de Alfred Weber (o irmão menos famoso de Max Weber). Além deles,
vê-se claramente, até porque um dos méritos do autor é deixar sempre muito claros seus pressupostos e influências, a
presença das idéias de Ortega y Gasset e do culturalismo alemão (Windelband, Cassirer, Max Scheler). Nesse sentido, o livro
realiza um projeto sociológico que incorpora visões do culturalismo germânico, afastando-se da
influência francesa da sociologia uspiana e, especialmente, do
marxismo.
Para executar essa empiria crítica no
estudo da história universal, a análise se
divide em dois momentos. Primeiro,
apresenta separadamente cada conjunto
civilizatório, para depois comparar as
constatações e avaliar se fatores semelhantes levam a resultados semelhantes
em diferentes contextos históricos. Tal
processo exigiu uma ação metodológica
específica, uma das partes mais interessantes da obra. O autor preparava um
texto básico que era remetido a um grupo de prestigiosos sociólogos.
Com base no consenso dos sociólogos,
um novo texto era submetido a historiadores especializados em cada "civilização". Dentre esses consultores estão intelectuais como Peter Gay, Gabriel Almond e Albert Hirschman. O texto final,
de inteira responsabilidade do autor, só
era finalizado após esse trânsito e esses
debates. Jaguaribe publica no livro todos
os comentários e observações desses colaboradores, textos de leitura muito instrutiva.
Ou seja, como não pode "dar conta" da
história e de suas especificidades, o projeto se organiza como uma verdadeira
máquina: colaboradores, consultores,
leitores, redatores (até um contador merece entrar nos agradecimentos); Unesco, Ministério da Cultura, Petrobrás,
CNPq, embaixadores, tradutores etc. O
livro é quase um ministério...
Mas aonde chegamos após centenas de
páginas que sobrevoam as estruturas básicas de complexos históricos, suas figuras decisivas e suas conquistas tecnológicas (a tecnologia é uma obsessão do autor)? Primeiro, que o grande inimigo é o
marxismo, que ele enquadra na linhagem do positivismo (vol. 1, pág. 34) ou
do evolucionismo social (vol. 2, pág.
684). Trata-se de explicar a história sem
recorrer jamais a conceitos como classe social, luta de classes, relações de
propriedade ou dominação. Segundo, que, para o
autor, as religiões, as
"idéias" e, sobretudo, o
"relacionamento elite-massa" são as estruturas
fundamentais da história
e orientam sua mudança.
"Civilização planetária"
Ou seja,
dentro de uma "civilização" (seja entre
os persas ou os norte-americanos de hoje), forma-se uma "elite" que se constitui
fraca ou forte segundo sua capacidade e
funcionalidade. Quando perde a funcionalidade, a elite tende a se tornar parasitária e, aí sim, exploradora. Essa teria sido a causa da Revolução Francesa (vol. 2,
pág. 667). Assim, se uma civilização
mantém uma relação funcional entre sua
elite e as massas e, sobretudo, escolhe
bem seus funcionários públicos, não haverá mais revoluções. Voltando até nós,
parece então que o erro de Collor foi escolher mal seus colaboradores...
Mas "Um Estudo Crítico da História"
não quer apenas, academicamente, apresentar questões históricas. O livro é sobretudo uma tentativa de identificar um
processo que o autor crê estar chegando
a um final feliz. Dadas as condições tecnológicas contemporâneas, a globalização econômica e a crescente democratização do mundo após a derrocada do comunismo, estaríamos propensos a constituir aquilo que o autor chama de "civilização planetária", cujo estatuto seria a
famosa "pax universalis" kantiana.
Tal civilização nasceria da independência da cultura européia da dominação conjuntural norte-americana e seria
patrocinada pelas Nações Unidas (como
esse livro, aliás, é patrocinado pela Unesco), dando início a uma "ordem mundial
multipolar" que, efetivamente, terminaria com a história.
Uma década após o ideólogo Francis
Fukuyama decretar o fim da história a
partir da "vitória" neoliberal, um sociólogo caboclo, num livro monumental,
vem tingir com o cor-de-rosa social-democrata ultracivilizado, pragmático e
empiricista o sonho das elites ultrafuncionais de hoje: fazer prevalecer para
sempre o capitalismo dentro de uma ordem que preserve seus interesses (sem,
entretanto, conceder nada aos "bárbaros" e "primitivos"). Como se vê, o livro
fala diretamente ao coração de nossa
época.
Francisco Alambert é doutor em história pela
USP e professor do Instituto de Artes da Unesp
(Universidade Estadual Paulista).
Um Estudo Crítico
da História
Vol. 1, 682 págs., R$ 42,00
Vol. 2, 790 págs., R$ 45,00
de Helio Jaguaribe. Ed. Paz e
Terra (r. do Triunfo, 177, CEP
01212-010, SP, tel. 0/ xx/11/
223-6522).
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