São Paulo, domingo, 22 de julho de 2001

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O jaguar civilizado


Em "Um Estudo Crítico da História" Helio Jaguaribe faz um balanço das principais civilizações, desde a Mesopotâmia e o Egito Antigo até o mundo moderno


Francisco Alambert
especial para a Folha

Como sempre, antes de falar da civilização, convém lembrar a barbárie. Alguns anos atrás, o eminente sociólogo Helio Jaguaribe, digno representante da civilização brasileira em todas as suas ambiguidades, arrumou tremendo quiproquó ao enunciar, com a clareza e objetividade que lhe são peculiares, a necessidade da extinção das tribos indígenas brasileiras para o bem delas mesmas!
Pautado por um reto raciocínio histórico-civilizacional, argumentava que era maldade deixar, como querem antropólogos e afins (gente bárbara, portanto), os elementares primitivos em seu estado "paleolítico". Para Jaguaribe, índio quer apito e a marcha inexorável da civilização deverá recair sobre eles, que de quebra desejam isso como qualquer um.
Assim, deveriam ceder suas terras para a exploração racional de gente como nós (ou como os militares da platéia, já que falava na Escola Superior de Guerra) e receber de volta um salto histórico que lhes daria as benesses desse nosso bom mundo. Tornar-se-iam, quem sabe, "jaguaribes" (ouvi dizer que "jaguaribe" é um nome de origem indígena e em tradução livre pode significar algo como "pessoa que tem o costume do jaguar") no mundo ordenado da "pax universalis" kantiana. Diga-se de passagem, a idéia, de tão civilizada, chocou até mesmo líderes tucanos, colegas de partido do nosso sociólogo.
Tudo isso sucede à passagem meteórica do grande planejador pelo Ministério da Ciência e Tecnologia do governo de Fernando Collor (1990-92). Dali, onde compartilhou o convívio com outros exemplos da civilização brasileira, como Sergio Paulo Rouanet, Celso Lafer, PC Farias ou Cláudio Humberto, o decano da sociologia carioca partiu para reelaborar e dar sentido ao curso da história universal. É claro que empreitada tão colossal não deveria ser abordada a partir de picuinhas conjunturais. Mas é que me parece impossível encarar as 1.472 páginas do livro e não pensar: será que depois de ler tudo isso eu vou acabar defendendo o fim das culturas indígenas e avaliar que o governo Collor pode ser um avanço civilizacional? Ao final da leitura, minha resposta é, felizmente, não. Esse livro admirável não é tão bom a ponto de fazer com que o leitor conceda os mesmos desvarios de seu autor. De minha parte, continuo pensando que, se uma "civilização" não é capaz de incorporar a diferença em seu universo, há algo muito errado em seus pressupostos. Do mesmo modo, se a tecnologia moderna não é capaz de se desenvolver sem ter que assaltar as terras de outras culturas, então há também algo de muito errado nas formulações tecnológicas e naqueles que decidem quais são suas prioridades (especialmente porque o "desenvolvimento" tecnológico não é neutro, não segue apenas sua lógica interna, mas é resultado de decisões e escolhas de grupos, coisa que o culturalismo do autor não pode reconhecer). Mas, para quem quiser entender como um intelectual capacitado pode não apenas formular tais barbaridades, mas também recorrer ao auxílio de um governo reacionário e corrupto, é muito bom ler esse livro... O currículo do professor Jaguaribe é sem dúvida um dos mais prestigiosos da intelectualidade brasileira. Foi um dos fundadores do Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), um dos responsáveis pela teoria do nacional-desenvolvimentismo do governo Juscelino Kubitschek (1956-1960), autor do projeto "Brasil 2000" para o governo Sarney. Ex-secretário de Ciência e Tecnologia do governo Collor, ex-professor nas universidades Stanford e Harvard e no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts). Autor de obra gigantesca (15 livros individuais e 26 com outros autores), teve recentemente publicada uma obra comemorativa, "Estudos em Homenagem a Helio Jaguaribe" (ed. Paz e Terra).

"Olhar sociológico"
"Um Estudo Crítico da História" é resultado do trabalho a que o hoje decano do Instituto de Pesquisas Sociais (Ipes) se dedicou após abandonar a "civilidade" collorida. Trata-se de uma das empreitadas de maior envergadura das ciências sociais brasileiras. A proposta é percorrer as principais civilizações da história, começando pela Pré-História, passando pela Mesopotâmia, Egito, Israel, Pérsia, Grécia, Roma, Bizâncio, Islã, Índia, China para chegar à civilização ocidental, desde a Idade Média até o mundo moderno. Mas o que difere então esse trabalho de um aplicado manual escolar? O autor enfatiza que seu intuito não é reescrever a história universal, mas sim, a partir de "um olhar sociológico", identificar as causas da ascensão, florescimento e crise dessas civilizações. Tal questão não é nova, foi sempre a obsessão da filosofia da história, como em Hegel ou Toynbee. Para Jaguaribe, seus antecessores falhavam por conta de pressupostos ideológicos que ele pretende superar. Em sua obra não se vê o "espírito absoluto" hegeliano, a vontade divina ou, muito menos, a luta de classes marxista. Só a objetividade sociológica "empírica". O projeto é abordar o processo histórico com instrumental inspirado nas estruturas históricas de Toynbee e nos conceitos de Alfred Weber (o irmão menos famoso de Max Weber). Além deles, vê-se claramente, até porque um dos méritos do autor é deixar sempre muito claros seus pressupostos e influências, a presença das idéias de Ortega y Gasset e do culturalismo alemão (Windelband, Cassirer, Max Scheler). Nesse sentido, o livro realiza um projeto sociológico que incorpora visões do culturalismo germânico, afastando-se da influência francesa da sociologia uspiana e, especialmente, do marxismo. Para executar essa empiria crítica no estudo da história universal, a análise se divide em dois momentos. Primeiro, apresenta separadamente cada conjunto civilizatório, para depois comparar as constatações e avaliar se fatores semelhantes levam a resultados semelhantes em diferentes contextos históricos. Tal processo exigiu uma ação metodológica específica, uma das partes mais interessantes da obra. O autor preparava um texto básico que era remetido a um grupo de prestigiosos sociólogos. Com base no consenso dos sociólogos, um novo texto era submetido a historiadores especializados em cada "civilização". Dentre esses consultores estão intelectuais como Peter Gay, Gabriel Almond e Albert Hirschman. O texto final, de inteira responsabilidade do autor, só era finalizado após esse trânsito e esses debates. Jaguaribe publica no livro todos os comentários e observações desses colaboradores, textos de leitura muito instrutiva. Ou seja, como não pode "dar conta" da história e de suas especificidades, o projeto se organiza como uma verdadeira máquina: colaboradores, consultores, leitores, redatores (até um contador merece entrar nos agradecimentos); Unesco, Ministério da Cultura, Petrobrás, CNPq, embaixadores, tradutores etc. O livro é quase um ministério... Mas aonde chegamos após centenas de páginas que sobrevoam as estruturas básicas de complexos históricos, suas figuras decisivas e suas conquistas tecnológicas (a tecnologia é uma obsessão do autor)? Primeiro, que o grande inimigo é o marxismo, que ele enquadra na linhagem do positivismo (vol. 1, pág. 34) ou do evolucionismo social (vol. 2, pág. 684). Trata-se de explicar a história sem recorrer jamais a conceitos como classe social, luta de classes, relações de propriedade ou dominação. Segundo, que, para o autor, as religiões, as "idéias" e, sobretudo, o "relacionamento elite-massa" são as estruturas fundamentais da história e orientam sua mudança.

"Civilização planetária"
Ou seja, dentro de uma "civilização" (seja entre os persas ou os norte-americanos de hoje), forma-se uma "elite" que se constitui fraca ou forte segundo sua capacidade e funcionalidade. Quando perde a funcionalidade, a elite tende a se tornar parasitária e, aí sim, exploradora. Essa teria sido a causa da Revolução Francesa (vol. 2, pág. 667). Assim, se uma civilização mantém uma relação funcional entre sua elite e as massas e, sobretudo, escolhe bem seus funcionários públicos, não haverá mais revoluções. Voltando até nós, parece então que o erro de Collor foi escolher mal seus colaboradores...
Mas "Um Estudo Crítico da História" não quer apenas, academicamente, apresentar questões históricas. O livro é sobretudo uma tentativa de identificar um processo que o autor crê estar chegando a um final feliz. Dadas as condições tecnológicas contemporâneas, a globalização econômica e a crescente democratização do mundo após a derrocada do comunismo, estaríamos propensos a constituir aquilo que o autor chama de "civilização planetária", cujo estatuto seria a famosa "pax universalis" kantiana.
Tal civilização nasceria da independência da cultura européia da dominação conjuntural norte-americana e seria patrocinada pelas Nações Unidas (como esse livro, aliás, é patrocinado pela Unesco), dando início a uma "ordem mundial multipolar" que, efetivamente, terminaria com a história.
Uma década após o ideólogo Francis Fukuyama decretar o fim da história a partir da "vitória" neoliberal, um sociólogo caboclo, num livro monumental, vem tingir com o cor-de-rosa social-democrata ultracivilizado, pragmático e empiricista o sonho das elites ultrafuncionais de hoje: fazer prevalecer para sempre o capitalismo dentro de uma ordem que preserve seus interesses (sem, entretanto, conceder nada aos "bárbaros" e "primitivos"). Como se vê, o livro fala diretamente ao coração de nossa época.


Francisco Alambert é doutor em história pela USP e professor do Instituto de Artes da Unesp (Universidade Estadual Paulista).



Um Estudo Crítico da História
Vol. 1, 682 págs., R$ 42,00 Vol. 2, 790 págs., R$ 45,00 de Helio Jaguaribe. Ed. Paz e Terra (r. do Triunfo, 177, CEP 01212-010, SP, tel. 0/ xx/11/ 223-6522).




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