São Paulo, domingo, 22 de julho de 2001

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A linguagem saturada


"A Eva Futura", de L'Isle-Adam, e "Baudelaire", de Théophile Gautier, resgatam modernidade da literatura fim-de-século


Marcos Flamínio Peres
Editor-adjunto do Mais!

O francês Villiers de L'Isle-Adam é, com J.-K. Huysmans, o escritor que ajudou a fixar em fins do século 19 o que se conhece hoje por decadentismo.
Personagens refinadas deslocadas em seu tempo, movimentando-se por cenários orientalizados e linguagem coalhada de termos raros ou exóticos, seu "Axel" (1890), assim como o Des Esseintes de "Às Avessas" (1894), de Huysmans, se refugia na imaginação e na linguagem como contraponto à ascensão dos valores da burguesia, em seu apreço pela ciência, e do proletariado, com suas reivindicações democráticas.
Essa tentativa de fuga do real deriva em linha direta da notável tríade de poetas que a França produziu na segunda metade do século 19, Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé. E seria de um ensaio do último -"Sobre a Evolução Literária" (1869)- que o decadentismo tomaria suas coordenadas principais: "Dar um nome a uma coisa significa destruir três quartos do prazer do poema".
Grande amigo de Mallarmé e, como ele, leitor de dicionários, L'Isle-Adam (1838-89) iria levar às últimas consequências a premissa mallarmaica da autonomia da linguagem, contrapondo-a ao modo de dominação da natureza pretendido pela "civilização positivista". Pelo modo feliz com que a forma adere ao tema, "A Eva Futura", publicada quatro anos antes de "Axel" e que está saindo agora pela Edusp, talvez seja sua obra mais consciente e moderna.
Nela, o cientista Thomas Edison, o inventor do fonógrafo, recebe a visita de Ewald, lorde inglês que o salvara da miséria muito tempo atrás, mas que se encontra agora seriamente desiludido com a mulher por quem se apaixonou.
Um "desses últimos grandes melancólicos", para quem a vida é uma "comédia inevitável", o lorde é de uma desesperança que remete ao próprio Axel: "Demito-me da vida -e que passe o século!". De beleza olímpica, sua amada Alicia Clairy é, porém, de um arrivismo que a sintoniza plenamente com o tempo. Personagem genuinamente romanesca, que recusa o sublime e chora ao assistir a um melodrama, ela desnorteia Ewald e Edison, desconcertados pelo "total desequilíbrio" entre corpo e alma dessa "deusa burguesa", que "gostaria de usar o espírito como uma máscara, (...) sem nenhuma seriedade". A solução que Edison propõe a Ewald é sobrepor as características físicas de Alicia a um andróide eletromagnético -Hadaly- que o cientista vinha desenvolvendo desde muito tempo. Fausto moderno, Edison deseja submeter a metafísica à ciência e construir o ser perfeito, "feito à nossa imagem, e que será para nós, em consequência disso, o que somos para Deus". Vem daí seu sonho grotesco de paralisar o tempo e aprisionar o ideal por meio da produção em série: "O primeiro industrial a chegar montará uma fábrica de ideais!". Uma Eva científica para os tempos modernos -"degradados", diria Lukács.

Tópos antiquíssimo
O tema do desdobramento da personalidade já fora então explorado à exaustão pelas narrativas góticas do século 18 e pelos românticos, como no "Doutor Coppelius" e "O Autômato", de Hoffmann. Esse tópos antiquíssimo -a expressão do baixo por meio do elevado- atualizado pelos românticos receberia tratamento inteiramente moderno de Baudelaire, tanto nos poemas de "As Flores do Mal" quanto em seus pequenos ensaios, como o "Elogio da Maquiagem". Théophile Gautier, mais cotado hoje pelos contos que pelos versos, já havia apontado o pendor do poeta de "As Flores do Mal" por "toaletes de elegância estranha (...), onde se mesclava algo de atriz e de cortesã" em prefácio que escreveu para a primeira edição das obras completas -"Baudelaire" (1868)-, que está saindo aqui pela Boitempo Editorial. Nesse texto de Gautier, um parnasiano de versos um tanto áridos, percebe-se o quanto Baudelaire desorientou seus contemporâneos por comentários como: "Para nós, Baudelaire tem esta vantagem: pode não ser bom, mas nunca é comum. Suas falhas são originais como suas qualidades". Em que pese o gosto da época, Gautier tocou em todas as questões que tornariam Baudelaire central para a poesia moderna e também a L'Isle-Adam. É aquilo que o cientista de "A Eva Futura", voltando ao romance, chamou de "artifícios da toalete". Pois foi justamente uma "atriz" que o motivou a desenvolver seu andróide. A sedutora dançarina que havia levado à perdição um digno pai de família e amigo íntimo de Edison tem desmascarados pelo cientista, em uma cena baudelairiana, seu "arsenal de feiticeira": maquiagem carregada, sinais postiços, grampos de cabelo, lápis, pincéis, bastões de nanquim, dentadura, algodão para moldar os seios, corpetes. Mas é também em um ambiente de simulação que Edison guarda sua criação: em um "Éden sob a terra", escondido sob o laboratório, saturado de todos os elementos fin-de-siècle -paredes ao gosto assírio, rosas do Oriente desenhadas nos pórticos, decoração em ouro, prata, marfim, cristal, seda, cetim negro, uma ave-do-paraíso programada para declamar -sintomaticamente- todo o "Fausto" de Berlioz. Nesse sentido a dançarina Evelyn Habal se constitui em um contraponto perfeito ao andróide, pois ela também é o resultado do artifício, mas já corrompido. Espécie de Eva decaída, que ironiza o "paraíso perdido e reencontrado", sarcasticamente falso, onde vive Hadaly.

Subversão pelo discurso
Criando seu andróide, Edison rebaixa o mito, pois pretende resgatar o fogo da vida não para toda a humanidade, como fez Prometeu, mas em benefício da ordem burguesa. "Em nome do escrúpulo", arremata, "cabe-nos tentar obter da Ciência uma equação do Amor que, acima de tudo, não cause à espécie humana esses malefícios inevitáveis; e que limitará a paixão". L'Isle-Adam faz de Edison um Fausto a serviço da ordem burguesa.
Sintomaticamente, Alicia e Hadaly raramente têm voz na narrativa e são tratadas como objetos de estudo e modificação pelo cientista e seu amigo. Em uma leitura culturalista, de que, aliás, "A Eva Futura" não escapou nos meios acadêmicos americanos, Hadaly é o protótipo ideal da função reservada à mulher na sociedade burguesa. É por essa mesma razão que a sedutora Evelyn Habal é quase amaldiçoada por Edison.
Mas o maior empecilho às pretensões de Edison vem da linguagem. Seu discurso cientificista é constantemente minado por suas próprias pretensões metafísicas e pelo ideal fáustico, colocando às claras a ideologia que o sustenta. Revela o movimento dúplice da narrativa, que, em um plano, avança o discurso totalitário de dominação e, em outro, no plano da forma, o desautoriza. Daí vem a ironia devastadora que impregna "A Eva Futura", beirando, por vezes, o sarcasmo.
É justamente dessa saturação irônica da linguagem - que seria, do ponto de vista clássico, um desequilíbrio- que vem a força e a modernidade de "A Eva Futura", coisa que Mallarmé já havia percebido: "Panfleto por excelência, (...) que atinge esse resultado outrora recusado, o de conduzir a ironia a um grau acima, em que o espírito vacila". Pouco tempo depois André Gide, em um artigo de 1901, observaria, de modo prefigurador, o caráter absolutamente moderno de "A Eva Futura": trata-se de uma "admirável e deslumbrante impostura".



A Eva Futura
424 págs., R$ 35,00 de Villiers de L'Isle-Adam. Tradução de Ecila de Azeredo Grünewald. Edusp (av. Prof. Luciano Gualberto, 374, travessa J, 6º andar, CEP 05508-900, SP, tel. 0/ xx/ 11/ 3818-4008).
Baudelaire
144 págs., R$ 22,00 de Théophile Gautier. Trad. de Mário Laranjeira. Boitempo Editorial (av. Pompéia, 1.991, CEP 05023-001, SP, tel. 0/ xx/ 11/ 3865-6947).




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