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A linguagem saturada
"A Eva Futura", de L'Isle-Adam, e "Baudelaire", de Théophile Gautier, resgatam modernidade da literatura fim-de-século
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Marcos Flamínio Peres
Editor-adjunto do Mais!
O francês Villiers de L'Isle-Adam
é, com J.-K. Huysmans, o escritor que ajudou a fixar em fins
do século 19 o que se conhece
hoje por decadentismo.
Personagens refinadas deslocadas em
seu tempo, movimentando-se por cenários orientalizados e linguagem coalhada
de termos raros ou exóticos, seu "Axel"
(1890), assim como o Des Esseintes de
"Às Avessas" (1894), de Huysmans, se
refugia na imaginação e na linguagem
como contraponto à ascensão dos valores da burguesia, em seu apreço pela
ciência, e do proletariado, com suas reivindicações democráticas.
Essa tentativa de fuga do real deriva em
linha direta da notável tríade de poetas
que a França produziu na segunda metade do século 19, Baudelaire, Rimbaud e
Mallarmé. E seria de um ensaio do último -"Sobre a Evolução Literária"
(1869)- que o decadentismo tomaria
suas coordenadas principais: "Dar um
nome a uma coisa significa destruir três
quartos do prazer do poema".
Grande amigo de Mallarmé e, como
ele, leitor de dicionários, L'Isle-Adam
(1838-89) iria levar às últimas consequências a premissa mallarmaica da autonomia da linguagem, contrapondo-a
ao modo de dominação da natureza pretendido pela "civilização positivista". Pelo modo feliz com que a forma adere ao
tema, "A Eva Futura", publicada quatro
anos antes de "Axel" e que está saindo
agora pela Edusp, talvez seja sua obra
mais consciente e moderna.
Nela, o cientista Thomas Edison, o inventor do fonógrafo, recebe a visita de
Ewald, lorde inglês que o salvara da miséria muito tempo atrás, mas que se encontra agora seriamente desiludido com
a mulher por quem se apaixonou.
Um "desses últimos grandes melancólicos", para quem a vida é uma "comédia
inevitável", o lorde é de uma desesperança que remete ao próprio Axel: "Demito-me da vida -e que passe o século!". De
beleza olímpica, sua amada Alicia Clairy é, porém, de um arrivismo
que a sintoniza plenamente com o tempo. Personagem genuinamente romanesca, que recusa o sublime e chora ao
assistir a um melodrama, ela desnorteia
Ewald e Edison, desconcertados pelo
"total desequilíbrio" entre corpo e alma
dessa "deusa burguesa", que "gostaria de
usar o espírito como uma máscara, (...)
sem nenhuma seriedade".
A solução que Edison propõe a Ewald é
sobrepor as características físicas de Alicia a um andróide eletromagnético
-Hadaly- que o cientista vinha desenvolvendo desde muito tempo. Fausto
moderno, Edison deseja submeter a metafísica à ciência e construir o ser perfeito, "feito à nossa imagem, e que será para
nós, em consequência disso, o que somos para Deus". Vem daí seu sonho grotesco de paralisar o tempo e aprisionar o
ideal por meio da produção em série: "O
primeiro industrial a chegar montará
uma fábrica de ideais!". Uma Eva científica para os tempos modernos -"degradados", diria Lukács.
Tópos antiquíssimo
O tema do
desdobramento da personalidade já fora
então explorado à exaustão pelas narrativas góticas do século 18 e pelos românticos, como no "Doutor Coppelius" e "O
Autômato", de Hoffmann.
Esse tópos antiquíssimo -a expressão
do baixo por meio do elevado- atualizado pelos
românticos receberia tratamento inteiramente
moderno de Baudelaire,
tanto nos poemas de "As
Flores do Mal" quanto em
seus pequenos ensaios,
como o "Elogio da Maquiagem".
Théophile Gautier, mais
cotado hoje pelos contos
que pelos versos, já havia
apontado o pendor do
poeta de "As Flores do
Mal" por "toaletes de elegância estranha (...), onde
se mesclava algo de atriz e
de cortesã" em prefácio
que escreveu para a primeira edição das
obras completas -"Baudelaire"
(1868)-, que está saindo aqui pela Boitempo Editorial.
Nesse texto de Gautier, um parnasiano
de versos um tanto áridos, percebe-se o
quanto Baudelaire desorientou seus contemporâneos por comentários como:
"Para nós, Baudelaire tem esta vantagem: pode não ser bom, mas nunca é comum. Suas falhas são originais como
suas qualidades". Em que pese o gosto da
época, Gautier tocou em todas as questões que tornariam Baudelaire central
para a poesia moderna e também a L'Isle-Adam. É aquilo que o cientista de "A
Eva Futura", voltando ao romance, chamou de "artifícios da toalete".
Pois foi justamente uma "atriz" que o
motivou a desenvolver seu andróide. A
sedutora dançarina que havia levado à
perdição um digno pai de família e amigo íntimo de Edison tem desmascarados
pelo cientista, em uma cena baudelairiana, seu "arsenal de feiticeira": maquiagem carregada, sinais postiços, grampos
de cabelo, lápis, pincéis, bastões de nanquim, dentadura, algodão para moldar
os seios, corpetes.
Mas é também em um ambiente de simulação que Edison guarda sua criação:
em um "Éden sob a terra", escondido
sob o laboratório, saturado de todos os
elementos fin-de-siècle -paredes ao
gosto assírio, rosas do
Oriente desenhadas nos
pórticos, decoração em
ouro, prata, marfim, cristal, seda, cetim negro,
uma ave-do-paraíso programada para declamar
-sintomaticamente-
todo o "Fausto" de Berlioz.
Nesse sentido a dançarina Evelyn Habal se constitui em um contraponto
perfeito ao andróide, pois
ela também é o resultado
do artifício, mas já corrompido. Espécie de Eva
decaída, que ironiza o
"paraíso perdido e reencontrado", sarcasticamente falso, onde
vive Hadaly.
Subversão pelo discurso
Criando
seu andróide, Edison rebaixa o mito,
pois pretende resgatar o fogo da vida não
para toda a humanidade, como fez Prometeu, mas em benefício da ordem burguesa. "Em nome do escrúpulo", arremata, "cabe-nos tentar obter da Ciência
uma equação do Amor que, acima de tudo, não cause à espécie humana esses
malefícios inevitáveis; e que limitará a
paixão". L'Isle-Adam faz de Edison um
Fausto a serviço da ordem burguesa.
Sintomaticamente, Alicia e Hadaly raramente têm voz na narrativa e são tratadas como objetos de estudo e modificação pelo cientista e seu amigo. Em uma
leitura culturalista, de que, aliás, "A Eva
Futura" não escapou nos meios acadêmicos americanos, Hadaly é o protótipo
ideal da função reservada à mulher na
sociedade burguesa. É por essa mesma
razão que a sedutora Evelyn Habal é quase amaldiçoada por Edison.
Mas o maior empecilho às pretensões
de Edison vem da linguagem. Seu discurso cientificista é constantemente minado
por suas próprias pretensões metafísicas
e pelo ideal fáustico, colocando às claras
a ideologia que o sustenta. Revela o movimento dúplice da narrativa, que, em
um plano, avança o discurso totalitário
de dominação e, em outro, no plano da
forma, o desautoriza. Daí vem a ironia
devastadora que impregna "A Eva Futura", beirando, por vezes, o sarcasmo.
É justamente dessa saturação irônica
da linguagem - que seria, do ponto de
vista clássico, um desequilíbrio- que
vem a força e a modernidade de "A Eva
Futura", coisa que Mallarmé já havia
percebido: "Panfleto por excelência, (...)
que atinge esse resultado outrora recusado, o de conduzir a ironia a um grau acima, em que o espírito vacila". Pouco
tempo depois André Gide, em um artigo
de 1901, observaria, de modo prefigurador, o caráter absolutamente moderno
de "A Eva Futura": trata-se de uma "admirável e deslumbrante impostura".
A Eva Futura
424 págs., R$ 35,00
de Villiers de L'Isle-Adam. Tradução de Ecila de Azeredo Grünewald. Edusp (av. Prof. Luciano Gualberto, 374, travessa J, 6º
andar, CEP 05508-900, SP, tel.
0/ xx/ 11/ 3818-4008).
Baudelaire
144 págs., R$ 22,00
de Théophile Gautier. Trad. de
Mário Laranjeira. Boitempo Editorial (av. Pompéia, 1.991, CEP
05023-001, SP, tel. 0/ xx/ 11/
3865-6947).
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