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Três obras do filósofo francês Jacques Derrida discutem os limites da t radução
Arquivos secretos
Que futuro terão as
representações tópicas e
econômicas do inconsciente
na era do correio eletrônico?
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Paulo Ottoni
especial para a Folha
Uma das características mais importantes dos
textos de Jacques Derrida é o papel que exercem a tradução e os tradutores no seu pensamento. Segundo ele, é com os tradutores de
todos os países que trabalha melhor, se perguntando
sempre como os tradutores agiriam ao traduzir os sintagmas idiomáticos -figuras ou fórmulas- específicos do francês, na sua essência impossíveis de serem
traduzidos no interior de
toda operação de tradução.
Três publicações recentes,
em português, mostram diferentemente as participações e as responsabilidades
que a tradução, os tradutores e as tradutoras têm na disseminação do pensamento derridiano.
Em "Mal de Arquivo -Uma Impressão Freudiana",
traduzido por Claudia de Moraes Rego, Derrida pergunta por que reelaborar hoje um conceito de arquivo,
numa única e mesma configuração, a um só tempo técnica e política, ética e jurídica.
Sua resposta será a desconstrução do texto freudiano,
por meio das tensões, contradições e aporias do projeto
teórico de Freud, que representam um momento da
história da técnica e da política do arquivo e de seu lugar
de impressão.
Que futuro terão as representações tópicas e econômicas do inconsciente na era do correio eletrônico, do
cartão telefônico, da multimídia e do CD-ROM? Os responsáveis pela tradução se esqueceram
de indicar na nota nš 5 a referência que
Derrida faz a seu próprio texto "Freud e a
Cena da Escritura", tradução de Maria
Beatriz Marques Nizza da Silva (Perspectiva, 1971). Mas lembraram, como era de
esperar, de complementar as notas já
existentes com as referências dos textos
de Freud em português e de anexar a separata, da edição francesa, no início do
livro.
Solução para a psicanálise
A psicanálise, para Derrida, seria o nome disso que, sem álibi teológico ou outro, voltar-se-ia para o que a crueldade psíquica
tem de mais própria ("propre"); ela seria
o outro nome do "sem álibi". A confissão
de um "sem álibi". Se fosse possível (pág.
9). Essa confidência é o cenário da sua
conferência "Estados-da-Alma da Psicanálise - O Impossível para Além da Soberana Crueldade", que foi proferida em
junho de 2000 em Paris no evento "Estados Gerais da Psicanálise". Derrida chega a perguntar se
"existe uma solução para a psicanálise" (pág. 12).
Ao fazer um comentário, no postscriptum, sobre as figuras idiomáticas que envolvem as palavras "avoir",
"faire", "vouloir" e "mal", presentes em toda a sua argumentação em torno da questão psicanalítica, ele está
preocupado com os sofrimentos do tradutor e da tradutora que gostariam de respeitar, em suas traduções, cada uma dessas palavras singulares do idioma francês.
Como herdeiro da língua francesa, questiona se tem
culpa nessa suposta impossibilidade de traduzir e nessa
impossibilidade de uma tradução econômica palavra por
palavra. Por um lado, responde não ter culpa, essa impossibilidade faz parte da língua,
ele a herdou; por outro tem
culpa, e essa herança faz com que ele traia a sua verdade.
Encerra o livro perguntando: o álibi ainda é inevitável?
Não seria muito tarde? O tradutor Antonio Romane
Nogueira e a tradutora Isabel Kahn Marin entram no
jogo da tradução e da desconstrução e, numa nota surpreendente, aos leitores, afirmam: "Herdeiros da língua
portuguesa, os tradutores acreditam ter traduzido Derrida. Sem álibi" (pág. 93).
Na coletânea "Três Tempos sobre a História da Loucura", a organizadora Maria Cristina Franco Ferraz reuniu três textos em torno das questões da história da loucura. O primeiro, a conferência "Cogito e História da
Loucura", traduzido por Pedro Leite Lopes, é um dos
textos que, como foi publicado na França, faz parte do
livro "A Escritura e a Diferença" (editora Perspectiva,
1971. Não há nenhuma explicação dos
editores, nem na primeira nem na sua
reedição de 1995, do porquê da ausência
desse texto e de mais outros dois na publicação em português).
Nessa conferência, Derrida desconstrói de maneira implacável o pensamento foucaultiano que sustenta a sua "História da Loucura na Idade Clássica" (tradução de José Teixeira Coelho Netto, coleção "Estudos", Perspectiva, 1978). Ataca a lógica da história da loucura e todo o
projeto de Foucault e para isso concentra
sua desconstrução discutindo um trecho
das "Meditações" em que Foucault faz
sua leitura do "cogito" cartesiano.
Nove anos depois, na "Resposta a Derrida", tradução de Vera Lucia Avellar Ribeiro (publicada na segunda edição francesa, em 1972), Foucault, mesmo admitindo que Derrida é, na França naquele
momento, o filósofo mais profundo e radical, afirma que ele não leu "devidamente" Descartes. Não hesita ainda em afirmar que tanto Derrida como o seu discurso são
ingênuos. "Fazer Justiça a Freud -A História da
Loucura na Era da Psicanálise", tradução de Maria
Inês Duque Estrada, é o título da conferência proferida em 1991, num seminário em homenagem à
história da loucura, 30 anos depois da defesa da tese "Folie et Déraison -Histoire de la Folie à l'Âge
Classique" por Michel Foucault, em 20 de maio de
1961.
Derrida não retoma diretamente a antiga questão com Foucault nem estuda exclusivamente o
papel da psicanálise no projeto foucaultiano da
história da loucura. Procura mostrar que Foucault
objetiva e reduz a psicanálise àquilo do que ele fala,
mais do que àquilo a partir de que ele fala (pág. 98).
A coletânea tem o mérito de reunir essa polêmica num único volume para o leitor brasileiro, mas
o fato de os tradutores do "Cogito e História da
Loucura" não fazerem referências ao livro de Foucault em português e também não recorrerem às
traduções já existentes de Derrida produziu um
descuido linguístico-filosófico com consequências
graves. O neografismo "différance" tem um funcionamento peculiar, crucial e econômico no pensamento derridiano; qualquer tentativa de traduzi-lo -e há uma dezena de possibilidades- será
sempre motivo de polêmica.
No final do texto (págs. 60-1) e também no livro
"Estados-da-Alma da Psicanálise" (pág. 74), esse
neografismo foi traduzido por "diferença", sem
nenhuma explicação, o que provoca não só uma
confusão como compromete significativamente a
leitura do pensamento derridiano. Quem é o responsável por esse "erro de tradução"? É somente
de responsabilidade dos tradutores? Nesse caso
não ocorreu simplesmente a tradução inadequada
de uma palavra por outra. É um acontecimento
que compromete a língua, o idioma e a nacionalidade não só do tradutor. Como falantes dessa língua, devemos também nos considerar responsáveis?
Questionado sobre a tradução dos seus textos,
Derrida comenta que os textos traduzidos nunca
dizem as mesmas coisas que os textos originais,
sempre ocorre algo de novo; o paradoxo da tradução é o fato de que um texto traduzido chega a outra coisa, mas outra coisa que está em relação consigo mesma. Traduzir não seria dar nossa língua,
nosso idioma, o que não nos pertence, para o outro? Como é possível, então, traduzir Derrida a
partir de Derrida, sem a psicanálise, com a psicanálise e às vezes contra a psicanálise? E fazer com
que ele, cada vez mais, fale nossa língua e nosso
idioma?
Paulo Ottoni é professor associado do Instituto de Estudos da
Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. É autor de
"Visão Performativa da Linguagem" e organizador da coletânea "Tradução - A Prática da Diferença", ambos pela editora da
Unicamp.
Mal de Arquivo
130 págs., R$ 18,00
de Jacques Derrida. Trad. Claudia de Moraes Rego. Ed. Relume-Dumará (travessa Juraci,
37, RJ, CEP 21020-220, tel. 0/
xx/21/ 564-6869).
Três Tempos sobre
a História da Loucura
151 págs., R$ 22,00
de Jacques Derrida e Michel
Foucault. Maria Cristina Franco
Ferraz (org.). Relume-Dumará.
Estados-da-Alma
da Psicanálise
104 págs., R$ 15,50
de Jacques Derrida. Trad. Antonio Romane e Isabel Kahn Marin. Ed. Escuta (r. Dr. Homem de
Mello, 351, CEP 05007-001, SP,
tel. 0/xx/11/ 3865-8950).
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