São Paulo, domingo, 22 de julho de 2001

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Três obras do filósofo francês Jacques Derrida discutem os limites da t radução

Arquivos secretos


Que futuro terão as representações tópicas e econômicas do inconsciente na era do correio eletrônico?


Paulo Ottoni
especial para a Folha

Uma das características mais importantes dos textos de Jacques Derrida é o papel que exercem a tradução e os tradutores no seu pensamento. Segundo ele, é com os tradutores de todos os países que trabalha melhor, se perguntando sempre como os tradutores agiriam ao traduzir os sintagmas idiomáticos -figuras ou fórmulas- específicos do francês, na sua essência impossíveis de serem traduzidos no interior de toda operação de tradução. Três publicações recentes, em português, mostram diferentemente as participações e as responsabilidades que a tradução, os tradutores e as tradutoras têm na disseminação do pensamento derridiano. Em "Mal de Arquivo -Uma Impressão Freudiana", traduzido por Claudia de Moraes Rego, Derrida pergunta por que reelaborar hoje um conceito de arquivo, numa única e mesma configuração, a um só tempo técnica e política, ética e jurídica. Sua resposta será a desconstrução do texto freudiano, por meio das tensões, contradições e aporias do projeto teórico de Freud, que representam um momento da história da técnica e da política do arquivo e de seu lugar de impressão. Que futuro terão as representações tópicas e econômicas do inconsciente na era do correio eletrônico, do cartão telefônico, da multimídia e do CD-ROM? Os responsáveis pela tradução se esqueceram de indicar na nota nš 5 a referência que Derrida faz a seu próprio texto "Freud e a Cena da Escritura", tradução de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva (Perspectiva, 1971). Mas lembraram, como era de esperar, de complementar as notas já existentes com as referências dos textos de Freud em português e de anexar a separata, da edição francesa, no início do livro.

Solução para a psicanálise
A psicanálise, para Derrida, seria o nome disso que, sem álibi teológico ou outro, voltar-se-ia para o que a crueldade psíquica tem de mais própria ("propre"); ela seria o outro nome do "sem álibi". A confissão de um "sem álibi". Se fosse possível (pág. 9). Essa confidência é o cenário da sua conferência "Estados-da-Alma da Psicanálise - O Impossível para Além da Soberana Crueldade", que foi proferida em junho de 2000 em Paris no evento "Estados Gerais da Psicanálise". Derrida chega a perguntar se "existe uma solução para a psicanálise" (pág. 12).
Ao fazer um comentário, no postscriptum, sobre as figuras idiomáticas que envolvem as palavras "avoir", "faire", "vouloir" e "mal", presentes em toda a sua argumentação em torno da questão psicanalítica, ele está preocupado com os sofrimentos do tradutor e da tradutora que gostariam de respeitar, em suas traduções, cada uma dessas palavras singulares do idioma francês.
Como herdeiro da língua francesa, questiona se tem culpa nessa suposta impossibilidade de traduzir e nessa impossibilidade de uma tradução econômica palavra por palavra. Por um lado, responde não ter culpa, essa impossibilidade faz parte da língua, ele a herdou; por outro tem culpa, e essa herança faz com que ele traia a sua verdade. Encerra o livro perguntando: o álibi ainda é inevitável? Não seria muito tarde? O tradutor Antonio Romane Nogueira e a tradutora Isabel Kahn Marin entram no jogo da tradução e da desconstrução e, numa nota surpreendente, aos leitores, afirmam: "Herdeiros da língua portuguesa, os tradutores acreditam ter traduzido Derrida. Sem álibi" (pág. 93).
Na coletânea "Três Tempos sobre a História da Loucura", a organizadora Maria Cristina Franco Ferraz reuniu três textos em torno das questões da história da loucura. O primeiro, a conferência "Cogito e História da Loucura", traduzido por Pedro Leite Lopes, é um dos textos que, como foi publicado na França, faz parte do livro "A Escritura e a Diferença" (editora Perspectiva, 1971. Não há nenhuma explicação dos editores, nem na primeira nem na sua reedição de 1995, do porquê da ausência desse texto e de mais outros dois na publicação em português).
Nessa conferência, Derrida desconstrói de maneira implacável o pensamento foucaultiano que sustenta a sua "História da Loucura na Idade Clássica" (tradução de José Teixeira Coelho Netto, coleção "Estudos", Perspectiva, 1978). Ataca a lógica da história da loucura e todo o projeto de Foucault e para isso concentra sua desconstrução discutindo um trecho das "Meditações" em que Foucault faz sua leitura do "cogito" cartesiano.
Nove anos depois, na "Resposta a Derrida", tradução de Vera Lucia Avellar Ribeiro (publicada na segunda edição francesa, em 1972), Foucault, mesmo admitindo que Derrida é, na França naquele momento, o filósofo mais profundo e radical, afirma que ele não leu "devidamente" Descartes. Não hesita ainda em afirmar que tanto Derrida como o seu discurso são ingênuos. "Fazer Justiça a Freud -A História da Loucura na Era da Psicanálise", tradução de Maria Inês Duque Estrada, é o título da conferência proferida em 1991, num seminário em homenagem à história da loucura, 30 anos depois da defesa da tese "Folie et Déraison -Histoire de la Folie à l'Âge Classique" por Michel Foucault, em 20 de maio de 1961.
Derrida não retoma diretamente a antiga questão com Foucault nem estuda exclusivamente o papel da psicanálise no projeto foucaultiano da história da loucura. Procura mostrar que Foucault objetiva e reduz a psicanálise àquilo do que ele fala, mais do que àquilo a partir de que ele fala (pág. 98).
A coletânea tem o mérito de reunir essa polêmica num único volume para o leitor brasileiro, mas o fato de os tradutores do "Cogito e História da Loucura" não fazerem referências ao livro de Foucault em português e também não recorrerem às traduções já existentes de Derrida produziu um descuido linguístico-filosófico com consequências graves. O neografismo "différance" tem um funcionamento peculiar, crucial e econômico no pensamento derridiano; qualquer tentativa de traduzi-lo -e há uma dezena de possibilidades- será sempre motivo de polêmica.
No final do texto (págs. 60-1) e também no livro "Estados-da-Alma da Psicanálise" (pág. 74), esse neografismo foi traduzido por "diferença", sem nenhuma explicação, o que provoca não só uma confusão como compromete significativamente a leitura do pensamento derridiano. Quem é o responsável por esse "erro de tradução"? É somente de responsabilidade dos tradutores? Nesse caso não ocorreu simplesmente a tradução inadequada de uma palavra por outra. É um acontecimento que compromete a língua, o idioma e a nacionalidade não só do tradutor. Como falantes dessa língua, devemos também nos considerar responsáveis?
Questionado sobre a tradução dos seus textos, Derrida comenta que os textos traduzidos nunca dizem as mesmas coisas que os textos originais, sempre ocorre algo de novo; o paradoxo da tradução é o fato de que um texto traduzido chega a outra coisa, mas outra coisa que está em relação consigo mesma. Traduzir não seria dar nossa língua, nosso idioma, o que não nos pertence, para o outro? Como é possível, então, traduzir Derrida a partir de Derrida, sem a psicanálise, com a psicanálise e às vezes contra a psicanálise? E fazer com que ele, cada vez mais, fale nossa língua e nosso idioma?


Paulo Ottoni é professor associado do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. É autor de "Visão Performativa da Linguagem" e organizador da coletânea "Tradução - A Prática da Diferença", ambos pela editora da Unicamp.


Mal de Arquivo
130 págs., R$ 18,00 de Jacques Derrida. Trad. Claudia de Moraes Rego. Ed. Relume-Dumará (travessa Juraci, 37, RJ, CEP 21020-220, tel. 0/ xx/21/ 564-6869).



Três Tempos sobre a História da Loucura
151 págs., R$ 22,00 de Jacques Derrida e Michel Foucault. Maria Cristina Franco Ferraz (org.). Relume-Dumará.



Estados-da-Alma da Psicanálise
104 págs., R$ 15,50 de Jacques Derrida. Trad. Antonio Romane e Isabel Kahn Marin. Ed. Escuta (r. Dr. Homem de Mello, 351, CEP 05007-001, SP, tel. 0/xx/11/ 3865-8950).




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