São Paulo, domingo, 22 de julho de 2001

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+ polêmica

Moralidade e senso comum


O físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite responde a artigo do filósofo José Arthur Giannotti


Rogério Cezar de Cerqueira Leite
Articulista da Folha

Chega de tergiversações. Vamos dar os nomes aos bois. O professor José Arthur Giannotti vem tentando elaborar um indecifrável argumento filosófico para justificar o comportamento e o discurso casuístico de seu amigo Fernando Henrique Cardoso, presidente do Brasil. Seu esforço tem uma clara finalidade política, embora de alcance limitado. Está portanto sujeito a críticas. Em artigo publicado nesta Folha em 3/6/01 critiquei alguns atos do presidente e a defesa filosófica apresentada pelo aludido professor e filósofo.
Para o professor Giannotti existiria para ações políticas uma zona neutra, intermediária entre a imoralidade e a moralidade, que abrigaria comportamentos que não seriam nem morais nem imorais, mas amorais. Em meu artigo, não conseguindo entender o que significa um ato amoral, por motivos que explico abaixo, usei o termo imoral onde o professor Giannotti usa o vocábulo amoral. O filósofo de fama municipal insinua então que não tenho caráter por causa disso (Mais!, 24/6/01). Digo "de fama municipal" porque não consigo encontrar uma única citação à sua obra filosófica mencionada no "Social Sciences Citation Index".
Pois bem, eu não compreendo por que o professor Giannotti não desenvolveu sua teoria filosófica a favor de Maluf, por exemplo, quando este esteve na crista da onda. Maluf e Fernando Henrique, ambos, ajustam o discurso e a "verdade" às circunstâncias. Ambos compram votos e apoio político. Ambos se aproveitam de "sobras de campanha". Ora, se existe uma banda de permissividade moral para um, existe para o outro. O mínimo que podemos deduzir é que o professor Giannotti é parcial e que sua teoria da banda de amoralidade foi encomendada.
Se o sr. Giannotti tivesse defendido o presidente Fernando Henrique porque lhe é fiel, porque é seu amigo, então eu estaria disposto a elogiar-lhe a imensa coragem. Mas esconder-se atrás de um argumento pseudofilosófico sem ter coragem de tornar explícito o seu propósito me parece acovardado, para dizer o menos.
Chamamos de "sistema moral" um conjunto complexo e integrado de preceitos, valores e idéias sobre o que é certo e o que é errado e com o qual julgamos atos e pensamentos de indivíduos ou grupos da mesma sociedade ou cultura a que pertencemos. Dizemos que um ato é moral, ou imoral, quando está em acordo, ou em desacordo, com o nosso sistema moral. O conceito de moralidade está portanto indissoluvelmente ligado ao processo de avaliação, de julgamento.
É óbvio que diferentes culturas podem possuir diferentes sistemas morais e que essas diferentes culturas podem conviver em um mesmo espaço físico. Um mesmo ato, uma certa prática, pode, portanto, estar em acordo com um sistema moral e em desacordo com outro, em um mesmo espaço físico. E, portanto, pode ser considerado moral por um indivíduo e imoral por outro, de acordo com a subcultura a que pertençam.
Mafiosos têm seu código de honra peculiar. Al Capone era considerado um facínora pelo cidadão comum americano, mas um benemérito líder entre os seus comandados. Imaginemos apenas o que aconteceria se o juiz, reconhecendo a prevalência do código moral da Máfia em seu próprio meio, considerasse justificáveis suas ações criminosas. E o que aconteceria no julgamento de Nuremberg se o racismo, inerente à "moral nazista", viesse a ser respeitado como legítimo integrante de um sistema moral.
Sou capaz de entender como "amoral" o comportamento de uma aranha viúva-negra (latrodectus matans) que saboreia o amante imediatamente após as núpcias, quando ele ainda está inebriado de amor. Simplesmente porque ela não dispõe de um sistema moral. Sou até mesmo capaz de aceitar que o mundo político tenha um sistema moral próprio divergente daquele que prevalece em nossa sociedade. Todavia não vejo como posso julgar um político senão por esse sistema do cidadão comum ao qual me submeto.
Isso é muito diferente de admitir a existência de uma banda de amoralidade, em que atos específicos não podem ser avaliados. Não sou capaz de imaginar um filósofo, por mais kantiano que seja, observando um grupo racista linchando um negro e conjeturando que o ato é aceitável, porque está de acordo com um princípio moral racista ou porque pertença a uma banda de amoralidade.
Eu diria mesmo que falta de caráter é elaborar uma justificativa filosófica para atos que estejam em desacordo com o próprio sistema moral. Falta de caráter é defender o direito de mentir, de comprar votos, de embolsar resíduos de campanha, com ou sem suporte de uma banda de amoralidade.


Rogério Cezar de Cerqueira Leite é físico, professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e membro do Conselho Editorial da Folha.


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