São Paulo, domingo, 22 de julho de 2007

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De vitrine a vidraça

Cercado pela cidade e por sua mentalidade "moderna", Congonhas dava à elite a deliciosa sensação de uma garagem de suas casas e de sua vida de "jet set"

FRANCISCO ALAMBERT
ESPECIAL PARA A FOLHA

A construção do aeroporto de Congonhas é vizinha histórica da derrota paulista na Revolução de 1932 e aconteceu apenas dois anos após a fundação da USP.
Sua existência deveria trazer de volta o orgulho do derrotado que sabia ser, ainda assim, o portador da modernidade brasileira.
As operações do aeroporto começaram no dia 12 de abril de 1936, quando a cidade tinha cerca de 1 milhão de habitantes.
Já na época, a escolha do local foi bastante criticada. Dizia-se que era um lugar muito distante (quer dizer: distante de onde vivia a elite) e descampado.
Mas a escolha "técnica" se justificava justamente por isso e pelas boas condições de visibilidade e drenagem da terra.
O novo aeroporto substituiria o Campo de Marte (que começou a funcionar em 1920, dois anos antes da Semana de Arte Moderna), às margens do rio Tietê, onde as chuvas provocavam alagamentos constantes.

Pista de terra
A princípio havia apenas uma pista de terra. Seu nome atual deriva de um tipo de erva comum em Minas Gerais, na região de Congonhas do Campo, onde nasceu Lucas Antônio Monteiro de Barros (1823-1851), o Visconde de Congonhas do Campo, primeiro governante da Província de São Paulo após a Independência do Brasil.
A erva e o poder imperial batizaram o novo espaço moderno.
Antes disso, o local era chamado de Campo de Aviação da Companhia Auto-Estradas.
No dia da inauguração, 8.000 pessoas assistiram à exibição de pilotos consagrados, heróis da maquinaria moderna, que atestaram a qualidade do terreno.
O primeiro vôo partiu para o Rio de Janeiro, operado pela Vasp, empresa que foi um dos orgulhos do gigantismo da cidade de São Paulo e de sua pretensão de ser um país dentro do país.
Como se sabe, ela vem falindo desde os anos 80.
Na década de 40, foi construído a primeiro estação de passageiros, e Congonhas decolou.
Ele foi duplicado e, a partir de 1947, o movimento se tornou tão grande que foi cogitada a construção de outro aeroporto, só inaugurado em 1985.
No auge do surto de modernização dos anos 50, Congonhas tinha um movimento de 1 milhão de passageiros/ano, quase a metade da população da cidade.
Em 1957, já era o terceiro aeroporto do mundo em volume de carga, ao mesmo tempo em que os bairros do entorno também cresciam. Em 1958, a seleção campeã mundial desceu ali, para delírio dos torcedores.

Centro da nova cidade
Em plena era JK, quando Brasília começava a ser desenhada, éramos o país do futuro, tínhamos Pelé e ganhávamos o mundo. Se o avião era a maravilha maior da modernidade, as mercadorias (não menos maravilhosas) e seu jeito de ser aconteciam também no aeroporto.
Congonhas era o centro da nova cidade, dando à elite e a seus apreciadores serviços como engraxate, barbeiro, florista, radiotelegrafia internacional, pronto-socorro, agência bancária e salão de festas com restaurante e palco com camarins de luxo, como notou Giselle Beiguelman em seu livro "No Ar - 60 Anos do Aeroporto de Congonhas" (1996).
O aeroporto era o lugar da sociabilidade moderna na cidade ainda muito provinciana.
Ele oferecia seu espetáculo junto com o Café do Aeroporto (um dos poucos lugares que ficavam abertos a noite toda), para apreciar pousos e decolagens. Ou então para conhecer os murais de Clóvis Graciano e Di Cavalcanti (executados em 1953) na sala que se abria para a pista.
As escadarias arredondadas e o geométrico jogo de preto e branco no piso davam o ar concretista de nossa boa arquitetura moderna. Cercado pela cidade e por sua mentalidade "moderna", ele dava à elite a deliciosa sensação de uma espécie de garagem de suas casas e de sua vida de "jet set".
O mundo ficava "logo ali", enquanto a periferia pobre ficava cada vez mais longe.
Na década de 70, em plena ditadura militar, no auge do "milagre econômico", o salão do aeroporto com vista para a pista era usado para festas de formatura, casamentos e demais atividades.
Como disse Sérgio Buarque de Holanda em seu clássico "Raízes do Brasil" (Cia. das Letras), curiosamente publicado no mesmo ano em que o aeroporto de Congonhas foi inaugurado, desde sempre nos esforçamos para criar "asas para não ver o espetáculo detestável que o país" nos oferece.
Nessa festa nacional, em um tempo em que ainda não havia shopping centers, os ricos viajavam elegantes, enquanto os pobres ficavam felizes vendo as subidas e descidas.

O fantasma de Cumbica
Quando a ditadura militar agonizava, e o "milagre" chegava ao fim, Congonhas iniciava também seu período de crise.
Nos anos 80, a maioria dos vôos mudava para Cumbica. Em 1986, Congonhas perdera 50% de passageiros e 30% de aeronaves. Nesse momento, foi cogitado tanto seu fechamento definitivo quanto sua transformação em shopping center.
A recuperação veio no início dos anos 90. Em plena era do Plano Real, os aeroportos centrais passaram a gozar da impressão de "renascimento" econômico. Congonhas voltou a operar para "o mundo" e a elite voltou a se sentir em casa.
Mas esse sonho de progresso era só o pesadelo de sempre. Tragicamente, no mesmo ano de sua "recuperação" e da comemoração de seus 60 anos, aconteceu o terrível acidente com o Fokker-100 da TAM, que vitimou 99 pessoas -algumas delas atingidas em suas residências à margem de nossa aero-modernidade urbana.
Desde a última reforma da era do "renascimento", a vocação para shopping center parece que veio para ficar. É muito significativo que as obras de construção do novo estacionamento tenham ficado prontas antes das reformas das pistas dos aviões.
Tragicamente, o aeroporto fica assim: mega-estacionamento, lojas, bancos, "conveniências" mil.
Cereja no bolo ladeado por casas e bairros deteriorados, avenida movimentada e uma pista em que nem os pilotos confiam. Não muito longe dali, em 12/1 passado, um buraco enorme nas obras do metrô tragou várias vidas.
Congonhas é, cada vez mais, o retrato desta cidade que afunda, hoje ainda mais triste e enlutada.

FRANCISCO ALAMBERT é professor de história contemporânea e de história social da arte na Universidade de São Paulo.


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