São Paulo, domingo, 22 de julho de 2007 |
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Plano piloto
Para historiador, Congonhas é símbolo de uma urbanização imitada dos EUA, que determinou a deterioração das metrópoles
Inaugurado em 1936, Congonhas ultrapassou o pioneiro Campo de Marte (1920) em volume de passageiros num período em que ainda ficava distante do centro de São Paulo; mas o centro da cidade migrou para mais perto dele. FOLHA - Durante a ampliação de Congonhas nos anos 50, o Pavilhão de Autoridades foi inaugurado em 1954, antes do Terminal de Passageiros (inaugurado em 1955 e concluído em 1959) e antes da conclusão das obras nas pistas (1955). Dá para fazer um paralelo entre esse fato e a forma como pensamos as obras públicas hoje? NICOLAU SEVCENKO - Essa formulação serve como análise cristalina do processo, desde seu início até o que assistimos hoje, de quanto esse modelo tem assumido a feição cosmética de construir a cidade como espetáculo, como vitrine, numa situação em que o conjunto dos problemas fica escondido, camuflado. O que prevalece é a ostentação, a especulação, a corrupção e a exclusão. FOLHA - O aeroporto de Congonhas surgiu como símbolo de sofisticação e desenvolvimento de uma cidade que se reafirmava, pouco depois da Revolução Constitucionalista; hoje, tornou-se um monstro trágico no meio da urbe? SEVCENKO - Em princípio, acho que não; mas qualquer pessoa pode entender que o que aconteceu agora é um descalabro provocado por uma situação de incompetência da administração presente. Criou-se tal mazorca no sistema de tráfego aéreo brasileiro que, tendo acontecido o que aconteceu, em escala tão catastrófica, todo mundo haverá de concordar -mesmo aqueles que resistiam- que, nas condições em que Congonhas tem operado, não poderá continuar. Algo terá de ser mudado em grande escala, e muito rapidamente. É terrível dizer que a gente possa aprender com uma calamidade dessa, mas vamos ter de tirar alguma lição. A primeira, e mais urgente, é redimensionar o sentido de Congonhas dentro da cidade, no contexto do tráfego aéreo de São Paulo e do país. FOLHA - Comparando a evolução da cidade à evolução do aeroporto, já era de esperar essa crise aérea desde quando? SEVCENKO - Precisamos pensar numa escala histórica mais ampla e complexa. Quando o aeroporto foi projetado e construído, era uma região relativamente afastada. Não tinha esse impacto urbano e ambiental que passou a ter. O que redefiniu o papel de Congonhas, em boa parte, foi a mudança na concepção urbanística ocorrida no pós-guerra. Foi o grande divisor de águas na relação entre cidade e aeroporto: a mudança na política urbanística dos EUA no pós-guerra. FOLHA - O que caracteriza essa mudança? SEVCENKO - O governo dos EUA deu-se conta de que era extremamente fácil destruir uma malha rodoviária, paralisando um país que dependesse de ferrovias. Os bombardeiros americanos rapidamente neutralizaram a malha ferroviária alemã. O desafio eram as "autobahns", rodovias de alta velocidade construídas no contexto da guerra, que eram as artérias pelas quais circulava a economia. Depois da guerra, os EUA mudaram sua política, promovendo uma desurbanização: cidades são vulneráveis, estradas de ferro são vulneráveis. O projeto americano foi desinvestir na cidade e conectar os subúrbios por grandes vias expressas, ligadas a redes de aeroportos. Só populações pobres seriam largadas nas cidades; empresas também seriam redistribuídas, para evitar pólos industriais vulneráveis. FOLHA - A ampliação de Congonhas na década de 1950 seguiria essa lógica? SEVCENKO - Como os EUA emergiram da guerra como a economia vitoriosa, mais próspera, vitrine da sociedade do consumo, o conceito de "modernização" se confundiu com "americanização". Americanização era priorizar o transporte rodoviário e o aeroviário em detrimento do ferroviário. E "suburbanização" é o que se vê no modo como, no final dos anos 40 e nos anos 50 e 60, há um processo de reconfigurar o desenho urbano em razão da zona sul, do parque Ibirapuera. O parque é coligado ao eixo de vias expressas, que se liga diretamente ao aeroporto. A avenida 23 de Maio faz um ângulo monumental com a Nove de Julho, que não por acaso tem como pináculo simbólico o Obelisco e o Monumento às Bandeiras [de Victor Brecheret]. São Paulo voltou-se completamente para esse lado, para essa simbologia da modernidade, que é o Ibirapuera com o Museu de Arte Moderna (MAM) e o pavilhão da Bienal, vitrines da modernidade. Coisa semelhante acontece em Belo Horizonte: o parque da Pampulha, o Museu de Arte da Pampulha e a via expressa em conexão com o aeroporto. A mesma coisa no Rio, com o parque do Flamengo, o MAM, a via expressa e a conexão com o aeroporto Santos Dumont. Nem precisamos falar de Brasília, que nasceu sob o signo do avião: o Plano Piloto é um avião e a cidade a princípio só era acessível por avião. FOLHA - Essa valorização do entorno do aeroporto foi acompanhada pela construção de prédios... SEVCENKO - Essa imitação colonialista de uma situação típica dos EUA -pois não havia o temor de bombardeio aéreo no Brasil-, incorporada por elites que queriam ser modernas sendo americanizadas, trouxe seqüelas que até hoje são responsáveis pela maneira como esta cidade é completamente caótica e amarrada. Em particular, implicou no desinvestimento no transporte ferroviário e sua estrutura urbanizada, o metrô. FOLHA - Nos anos 60, o aeroporto de Congonhas era ponto de encontro e lazer -ia-se ao restaurante ver pousos e decolagens. O aeroporto, com sua arquitetura art déco/futurista ao gosto da classe média, é sintoma da preponderância do símbolo de status sobre a funcionalidade? SEVCENKO - Exatamente. Isso prejudicou a economia, pois se optou por dois sistemas mais onerosos que o ferroviário. Essa é a diferença entre por que é tão caótico, dramático viajar nos EUA e por que é tão agradável e simples viajar pela Europa: porque a malha ferroviária foi preservada, e o investimento na redistribuição do transporte de massa em redes de metrô tornou a situação praticamente equacionada. Os EUA hoje lutam desesperadamente para reverter os erros cometidos, numa política, que vem desde os anos 80, de revalorizar o centro histórico das cidades, atrair novamente a população aos centros urbanos, como ocorre em Nova York, Boston, Chicago e Baltimore. Talvez precisássemos de um desastre dessa escala colossal para que se comece a repensar o conjunto de enganos desse modelo que pune o país dos pontos de vista econômico, social e da qualidade de vida da população. FOLHA - Pelo movimento histórico, diria que as sociedades paulista e brasileira estejam amadurecendo para perceber essa situação? SEVCENKO - Acredito que não. São situações de choque, como as duas calamidades sucessivas [as quedas do Airbus-A320 da TAM, na terça, e do Boeing da Gol, em setembro passado] e o quadro de descalabro clamoroso, que talvez se comece a pensar em alternativas. Porque, até então, isso não estava no debate público. Texto Anterior: De vitrine a vidraça Próximo Texto: Decolagens e arremetidas de Congonhas Índice |
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