São Paulo, domingo, 22 de julho de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O CÉU INTERIOR

TEIXEIRA COELHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Congonhas já teve um céu. No teto da entrada principal, sua entrada monumental (comum à época, como no estádio do Pacaembu), acima do saguão central ovalado de onde hoje partem as escadas rolantes, havia um céu. A abóbada oval cobrindo o saguão era um céu pintado feito de nuvens brancas sobre o azul clássico.
Um céu interior. Simples, nada pretensioso, eficaz. Depois que o descobri, não consegui e não quis livrar-me dele.
Toda as vezes em que ia a Congonhas, passava para vê-lo: subia por uma das alas da escadaria, ela também monumental; parava num patamar intermediário e deixava-me aspirar pelo céu interior, sugestão de um céu maior em tudo dispensável.
Subia por um lado e descia pelo outro: vê-lo duas vezes. Não tinha nada a fazer no mezanino ao qual chegavam as escadas, cheio de lojas minúsculas e inúteis. Subia só para olhar e me perder no céu interior.
Um céu maneirista, em "trompe-l"oeil", como nos palacetes italianos dos séculos 16 ou 17. O céu maneirista abria imaginariamente o teto, rompia os limites da arquitetura para ampliar a esfera de presença de quem o olhava.

Personagem de romance
Depois que o descobri, não me livrei mais dele. Transformei-o em personagem de um romance, em seguida perdido, inédito.
Quando o escrevi, o céu ainda existia, acho, na cúpula central do aeroporto.
Depois, numa das reformas, algum ideólogo do design, algum burocrata do design, o substituiu por banais luzes frias. Se precisaram de algum pretexto, devem tê-lo encontrado: ninguém o via.
Por que um céu interior quando se está no teto da cidade e, por cima da cabeça, só o céu verdadeiro? É que hoje não se entende mais a arquitetura como antes, quando Congonhas se fez.
Os fanáticos do "patrimônio" que correm sempre a congelar tudo não viram esse detalhe. Detalhe que não prejudicava ninguém, não impunha nenhum encargo econômico a ninguém.
Não me livrei desse céu interior, livraram-me dele: no lugar do céu, vieram as anônimas, gerais luzes frias. Que ninguém vê (não são para ver).

Cariocas não entendem
Mas havia mais de um céu em Congonhas. Uma malha de céus. O céu de ver avião chegar e partir, desde o terraço que então, em tempos de pré-terrorismo (terrorismo nativo, nos tempos da ditadura), existia e ficava aberto.
A cidade não tem porto de onde ver navios e imaginar vidas. Cariocas nunca entenderam isso. Era um outro céu. O céu verdadeiro estava ali à frente, imenso sobre a cidade: mas sem o céu imaginado desde o terraço de onde se viam os aviões que lhe davam o necessário efeito de mundo, o céu verdadeiro não existia.
E havia o céu do café do aeroporto: ir tomar café no aeroporto, fascinante numa cidade cujo trânsito ainda fluía. Tomar café no aeroporto, ver o céu interior e ver avião subir e descer.
E havia os bailes do aeroporto e os bailes de Carnaval do aeroporto, que por alguma razão eram chamados (chamávamos?) de os bailes do Araken. Um céu de delírio, esses bailes. Ver o céu maneirista, ir ao baile que era o céu na terra, tomar um café, ver avião no terraço.
Tudo sumiu.
No lugar, o inferno em conta-gotas do descaso diário e da incompetência diária humilhando lá dentro os passageiros vivos; e o inferno, pesadelo sem despertar, da bola de fogo lá fora.

TEIXEIRA COELHO é professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP e curador-chefe do Museu de Arte de São Paulo.


Texto Anterior: SÃO PARKING
Próximo Texto: + Urbanismo: Industrial chic
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.