São Paulo, domingo, 22 de julho de 2007

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+ Urbanismo

Industrial chic

Com projetos de arquitetos badalados, como Norman Foster, David Chipperfield e Tadao Ando, Milão resgata suas antigas regiões fabris e se torna o maior e mais sofisticado canteiros de obras da Europa

MADELEINE JOHNSON

Leonardo da Vinci pode ter sido um dos planejadores de Milão, mas a cidade parece, com freqüência, ter mais em comum com Detroit ou a região britânica das Midlands do que com Roma, Veneza ou Florença.
Lar da revolução industrial da Itália, a capital empresarial do país é repleta de fábricas que, no passado, produziam carros (Maserati), pneus e cabos (Pirelli), aço (Falck), cerâmica (Richard Ginori) e produtos químicos (Montedison).
Em breve, porém, as casas fechadas com tábuas e a arqueologia industrial que caracterizam outras ex-cidades industriais serão coisa do passado em Milão.
Com 20 projetos importantes e 6 milhões de metros quadrados em construção, Milão é hoje o maior canteiro de obras da Europa e está passando por uma transformação de escala jamais vista desde que Leonardo da Vinci modernizou as fortificações de seus patronos da família Sforza, 500 anos atrás.
Milão deixará de ser uma cidade povoada por estilistas desprovida de design importante em matéria de edificações.
Até 2015, praticamente todos os arquitetos novos de maior prestígio -Daniel Liebeskind, Norman Foster, Zaha Hadid, David Chipperfield, Kohn Pedersen Fox, Pei Cobb Freed, Cesar Pelli, Tadao Ando- terão deixado sua marca na cidade.
Existem vários fatores por trás do boom. A morte da indústria pesada milanesa deixou vagos terrenos imensos e razoavelmente centrais.
Em outras cidades do mundo, áreas como essas se tornaram palcos de decadência e criminalidade que formaram obstáculos aos investimentos.

Reciclagem de espaço
Mas a base industrial diversificada de Milão fez com que as crises atingissem diferentes setores em ondas sucessivas, dando às empresas tempo suficiente para se adaptar. Antigas fábricas de turbinas e motores a vapor hoje abrigam estúdios fotográficos e showrooms de moda.
Os governos municipal e regional entraram em ação a partir dos anos 80, comprando imóveis desativados e modificando os procedimentos de zoneamento.
Com uma lei adotada em 1999, a região da Lombardia substituiu práticas rígidas dos anos 1950 por outras que incentivam as cooperações com o setor privado. Uma parceria mutuamente benéfica leva empreiteiras a satisfazer necessidades públicas -parques, instituições culturais e infra-estrutura- em troca de maior flexibilidade de zoneamento e redução de riscos.
Os escândalos de pagamento de propinas do início dos anos 90 levaram à desaceleração considerável das obras de construção em Milão.
Apenas mil novas unidades residenciais foram construídas entre 1982 e 1991; desde 1991, foram acrescentadas apenas 657, de acordo com o Scenari Immobiliari, um instituto independente de pesquisas imobiliárias.
Mas isso deixou uma demanda importante não satisfeita, sobre a qual as empreiteiras estão capitalizando agora.
A geografia ainda é o recurso mais importante de Milão. Situada na intersecção das rotas comerciais que atravessavam a Europa, a cidade era o Mediolanum romano, ou "campo do meio".
Hoje as autoridades usam fotos noturnas feitas por satélite para mostrar que a cidade é uma estrela grande na constelação que vai de Genebra a Veneza.
Ela é a porta para o rico norte da Itália, ligando o país inteiro ao resto da Europa. Órgãos governamentais nacionais e locais estão promovendo, ainda que lentamente, ligações ferroviárias de alta velocidade e melhoras nas rodovias, de modo a facilitar o trânsito nos subúrbios de Milão.
O desenvolvimento imobiliário residencial é a linha de frente do novo boom da construção milanesa. A prefeitura da cidade quer reverter a fuga demográfica causada pelos preços altos praticados nos bairros centrais.
As autoridades esperam que os italianos se radiquem em áreas que nem sempre foram tradicionalmente residenciais e, colaborando com empresas e empreiteiras privadas, vêm convencendo instituições culturais a agir como ímãs desse processo.
Extensões das universidades Statale e Politecnico, além de um novo teatro e um centro de design, se transferiram para as áreas de Bovisa e Bicocca, antigas sedes da Pirelli e da indústria química italiana. Novas unidades residenciais as seguiram.
Entretanto, apesar de as duas áreas ficarem a apenas meia hora do centro da cidade e de seus preços serem menos da metade daqueles dos bairros mais centrais, nenhuma das duas parece até agora ter se entranhado na psique milanesa como sendo lugares para viver "realmente".
Do outro lado da cidade, a região transformada de Via Savona já está mais integrada à cidade. A "recuperação criativa" do bairro começou em 1983, quando dois fotógrafos conhecidos transformaram uma garagem de trens no Superstudio, um complexo de moda e fotografia.

Centro cultural
As pessoas que os seguiram para a área criaram nela um misto de empresas e residências (nem sempre legalizadas), espalhadas em lofts e espaços industriais convertidos.
A intervenção do setor público limitou-se à compra pela prefeitura, em 1990, da fábrica de locomotivas Ansaldo e à cessão de parte dela às oficinas do teatro La Scala, onde David Chipperfield está criando um centro cultural com museus para abrigar arte e arqueologia não-européias.
Espaços antes ocupados pela General Electric, Schlumberger e Nestlé foram reformados e agora abrigam agências de modelos, a academia Domus de design, um hotel e o teatro e showrooms de Giorgio Armani.
Dentro em breve, a fábrica da Osram será convertida no residencial San Cristoforo, com 22 mil metros quadrados para abrigar 230 famílias.
O construtor Alessandro Cajrati Crivelli se orgulha dos avanços feitos na área. "Nossas renovações guiadas pelo design estão transformando Via Savona na verdadeira "città della moda" (cidade da moda)", disse ele.
A expressão se referia originalmente a um plano para converter pátios ferroviários, um parque de diversões desativado e acampamentos de nômades do centro da cidade num complexo multifuncional. O plano não decolou.

Cidade da moda
Hoje, décadas mais tarde, a "città della moda" se encontra em construção.
Ela cobre uma área de 290 mil metros quadrados, e, quando ficar pronta, em 2010, terá novos escritórios regionais e municipais (projetados pela Pei Cobb Freed & Partners), o terceiro maior parque de Milão, um shopping center e espaços para escritórios e museu do setor de moda.
Gianni Verga, o assessor da prefeitura de Milão responsável por terrenos públicos e habitação da cidade, diz que o projeto foi "a faísca que acendeu a colaboração público-privada" que vem movendo a transformação recente da cidade.
Fazendo fundo para os bairros caros de Corso Como e Brera, onde os imóveis custam entre 6.300 [R$ 16.300] e 9.000 [R$ 23.300] o metro quadrado, os terrenos pertenciam a 20 proprietários e abrangiam várias categorias de zoneamento, de modo que havia grandes disparidades de preços, o que impossibilitava sua venda como unidade.
A idéia de Verga de tratar a área inteira como "condomínio", cobrando preços pela média, independentemente das finalidades públicas ou comerciais dos terrenos, fez com que a área chegasse ao mercado.
Em 2001 a Hines americana a comprou e confiou o projeto a Cesar Pelli e uma equipe internacional de 24 arquitetos.
Erguida acima das ruas e linhas de bonde afundadas, a nova área vai finalmente fazer a ligação física entre o centro da cidade, de alto padrão, e o distrito de Isola, antes de classe operária e hoje visto como moderno e cool.
O CityLife é o outro cartão-postal da nova Milão. Ocupando um terreno que no passado era usado em feiras comerciais, o projeto, cuja conclusão está prevista para 2014, ilustra (bem demais, segundo alguns) a cooperação entre a prefeitura e empreiteiras privadas.
Um consórcio abrangendo as subsidiárias imobiliárias das seguradoras Generali, Fondiaria e RAS e uma construtora importante satisfizeram as exigências feitas em termos de espaços verdes e museus infantil e de design, reformando um velódromo já existente e promovendo melhorias na infra-estrutura viária.
Os preços das residências na região, que custam cerca de 7.500 [R$ 19.400] por metro quadrado, ainda não foram afetados.
O coração da área será formado pela maior área de pedestres da Europa, e Daniel Liebeskind, Zaha Hadid, Arata Isozaki e Pier Paolo Maggiora foram convocados para colaborar na localização dos 36 edifícios.
Cada um dos três primeiros arquitetos criou um arranha-céu e um complexo residencial baixo, de 148 mil metros quadrados, projetados para se harmonizar com o bairro já existente. "Queríamos arquitetos de culturas diferentes e queríamos originalidade", disse o presidente da CityLife, Ugo Debernardi.
Tendo em vista que quase 60% dos imóveis residenciais de Milão datam de 1919 a 1961, residências projetadas por arquitetos, como essas, constituem novidade. Os espaços abertos e culturais adjacentes representam uma atração adicional.

Revitalização "cool"
Mas nem a Cidade da Modanem a CityLife respondem ao que Verga considera o desafio de Milão: atender às necessidades de uma população crescente imigrante, estudantil e de terceira idade, criando "habitações para pobres, não habitações pobres".
Uma moradora de uma praça que dá para a CityLife diz que o projeto seria melhor para uma área decadente, necessitada de transformação, do que para um bairro que já é "elegante". Ela se preocupa com a possibilidade de "torres bloquearem nossa vista das montanhas".
Outros moradores se irritam com os erros largamente reconhecidos no cálculo das ligações de transporte. Enquanto isso, em Via Savona, moradores lamentam o trânsito crescente, a vida noturna barulhenta e a perda da solidariedade proletária.
A escala e o estilo das novas construções certamente são estranhos à textura urbana de Milão. Como reconhece Hadid, "numa cidade histórica, como Milão, é muito difícil impor novos projetos em escala tão grande".

Este texto saiu no "Financial Times". Tradução de Clara Allain.


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