São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2004

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Produção de fatos impactantes é um imperativo para validar interpretações preexistentes na sociedade

As novas razões da mentira

Jacques Rancière

No início do verão [europeu], uma notícia policial sacudia a França. Num trem de subúrbio, uma jovem que viajava com seu bebê fora assaltada e brutalizada por um bando de adolescentes magrebinos e negros. Constatando, ao roubarem seus documentos, que nascera nos "bairros ricos", eles haviam concluído que ela era judia. Conseqüentemente, o roubo se transformara em agressão anti-semita: eles marcaram seu rosto à faca, pintaram nela suásticas e fizeram cortes selvagens em seus cabelos. Nenhum dos passageiros do trem interveio para defender a jovem e seu bebê, nem sequer para puxar simplesmente o sinal de alarme. Em 48 horas viam-se multiplicar as declarações de responsáveis políticos e os comentários dos jornais. Mais ainda que a agressão, era a passividade dos passageiros que levantava a indignação. O comportamento monstruoso dos jovens era visto como uma realidade infelizmente muito explicável: as colunas dos jornais não cessam de evocar os delitos de pequenos bandos de jovens da periferia, geralmente oriundos da imigração. A tensão entre as comunidades muçulmana e judaica é também uma realidade muito presente bem como as agressões contra pessoas e instituições judaicas nos últimos meses. Mas como explicar a passividade dos passageiros? É assim que o "Le Monde" aproximava dois tipos de comentários. Uma socióloga explicava doutamente que os jovens magrebinos da periferia devolviam à sociedade a imagem que esta fazia deles, a de jovens brutais, machistas e fanáticos. Já um editorialista comentava o comportamento dos passageiros como algo bem mais grave: um fenômeno de covardia coletiva, de derrocada dos valores coletivos mais tradicionais. O acontecimento devolvia assim à sociedade a imagem de uma dupla decomposição: de um lado pequenos bandos de selvagens, de outro uma massa amorfa de indivíduos egoístas. Dois dias mais tarde ficou-se sabendo que todo o caso fora pura e simplesmente forjado. A jovem quisera, por essa encenação, chamar para si a atenção de um companheiro pouco sensível a seus problemas. As falsas notícias são tão velhas quanto o mundo assim como sua utilização no quadro de conflitos entre comunidades. Esta, porém, parece mostrar claramente um novo regime da mentira. Com efeito, conhecem-se duas formas tradicionais da mentira de massa. Há a forma do "rumor popular" -por exemplo, o que, na Idade Média, acusava os judeus de raptos de crianças destinadas a mortes rituais. E há a forma da mentira deliberadamente inventada por um poder, estatal ou outro, para atiçar em seu proveito o ódio contra uma comunidade que serve de bode expiatório. A mentira da jovem Marie-Léonie não se enquadra em nenhuma das duas. A máquina de informação, nos dias de hoje, é mais rápida que todo rumor popular. E nossos governos consensuais não têm nenhum interesse em alimentar a guerra das comunidades. Portanto, não se pode aqui pôr em causa nem a tradicional "credulidade" das massas populares nem a imaginação perversa dos homens do poder.

Pelo avesso
Mas não se pode tampouco considerar essa mentira como uma pura criação individual. Pela maneira mesma como simula para fins privados um "fenômeno de sociedade", ela mostra uma nova forma do falso. Essa forma não está ligada a nenhum excesso ou carência, mas ao funcionamento normal da máquina de informação, à relação normal entre informação e poder em nossas sociedades. A invenção "individual" dessa agressão racista era possível e plausível porque o acontecimento era de certo modo esperado pela máquina social de fabricação e de interpretação dos acontecimentos. Precisemos as coisas. Não se trata de dizer, como alguns críticos da mídia, que a tela de TV torna a realidade e o simulacro equivalentes e que os acontecimentos não têm mais necessidade de existir de verdade porque suas imagens existem sem eles. Não importa o que digam esses críticos, não é a imagem que constitui o núcleo do poder midiático e de sua utilização pelos poderes. O núcleo da máquina de informação é, mais exatamente, a interpretação. Tem-se necessidade de acontecimentos, mesmo falsos, porque suas interpretações já estão aí, porque elas preexistem e chamam esses acontecimentos. Desse ponto de vista, a indignação coletiva contra a "covardia" das testemunhas é significativa. Do fato de nenhuma testemunha ter-se manifestado, nenhum comentador pensou em tirar a conclusão mais simples: se nenhuma testemunha do acontecimento fez alguma coisa, é talvez porque nada havia a fazer, é porque o acontecimento não ocorrera. O que é insuportável aos olhos do jornalista moralista é, na verdade, a idéia mesma de que nada tenha se passado, é a falta de acontecimentos. A interpretação deve então funcionar pelo avesso: se não há testemunha, é porque as testemunhas se mostraram covardes. E é essa covardia que se torna o núcleo do acontecimento, o fenômeno de sociedade a ser questionado. É preciso que sempre haja acontecimentos para que a máquina funcione. Mas isso não quer dizer apenas que é preciso o sensacional para vender notícias. Não basta simplesmente noticiar. É preciso fornecer material à máquina interpretativa. Esta não tem necessidade apenas de que aconteça sempre alguma coisa. Tem necessidade de que aconteça também um certo tipo de coisas, os chamados "fenômenos de sociedade": acontecimentos particulares que ocorrem num ponto qualquer da sociedade a pessoas comuns, mas também acontecimentos que constituem sintomas por meio dos quais o sentido global de uma sociedade possa ser lido; acontecimentos que atraem uma interpretação, mas uma interpretação que já está aí antes deles. Em última instância, a interpretação se reduz sempre à mesma explicação, em dois pontos: primeiro, há perturbação na sociedade moderna porque ela não é bastante moderna, porque há grupos que não são ainda realmente modernos, que continuam a veicular os valores tribais tradicionais. Segundo, há perturbação na sociedade moderna porque ela é moderna demais, porque perdeu muito rapidamente o sentido das solidariedades coletivas que caracterizam as sociedades tradicionais e porque nela todo mundo é indiferente a todo mundo. Barbárie dos jovens habitantes ainda não socializados das periferias, indiferença dos passageiros comuns dos transportes coletivos. A extraordinária agressão imaginária sofrida por Marie Léonie não faz senão confirmar o ordinário do funcionamento da máquina de interpretar.

Coleta de fatos
Não se trata simplesmente da coerção que pesa sobre a mídia, submetida à dura lei das vendas ou das pesquisas de audiência. Trata-se, mais amplamente, do modo de exercício e de legitimação da máquina social e estatal. É o que explica a celeridade, ou mesmo a imprudência, com que reagiram os governantes franceses. É verdade que eles não têm interesse algum em fazer circular notícias suscetíveis de atiçar as querelas entre as comunidades. Mas eles têm um interesse vital em mostrar sua vigilância em relação a tudo que possa engendrar essas querelas, o ouvido atento a todo "fenômeno de sociedade" que traduza um mal-estar do corpo coletivo. Nossos governos não têm necessidade da mentira para excitar as multidões. Mas têm necessidade, eles também, de acontecimentos e de interpretações, porque sua legitimidade mesma vem dessa coleta contínua dos fatos e dessa leitura incessante dos sintomas.
A ordem consensual representa-se como a da grande família em que os chefes são antes de mais nada médicos atentos a todos os sintomas de uma doença incubada ou mesmo de um mal-estar capaz de engendrar fantasmas perigosos para a saúde coletiva. O risco de sancionar um falso sintoma é, nesse sentido, menor que o de ignorar um verdadeiro, menor sobretudo que o de não parecer interessar-se pelos sintomas. O cuidado paternal dos governos está então em harmonia com a atividade de uma sociedade incansavelmente ocupada na tarefa de auscultar-se e de auto-interpretar-se. O essencial é que haja sempre acontecimentos a interpretar, sintomas a decifrar. Um gracejo famoso dizia que um homem bem de saúde é um doente que se ignora. Essa lógica tornou-se hoje a lógica global de uma sociedade em que um não-acontecimento é sempre um acontecimento que se ignora.


Jacques Rancière é professor na Universidade de Paris 8 e autor de "O Dissenso" (ed. 34). Ele escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Paulo Neves.


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