São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2004

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O DISCURSO SOBRE O MÉTODO

UM DOS PRINCIPAIS DIRETORES DA HISTÓRIA DO TEATRO BRASILEIRO, ANTUNES FILHO EXPLICA E MOSTRA SEU PROCESSO DE CRIAÇÃO, DIZ QUE SUA "ANTÍGONA", QUE ESTRÉIA EM 2005, SERÁ MAIS "VISTOSA" E "AUTORAL", FALA TAMBÉM DO FUTURO DE SEU CENTRO DE PESQUISAS E AFIRMA NÃO TEMER A MORTE

Caio Liudvik
free-lance para a Folha

Minha motivação é hoje a mesma de sempre. Fazer teatro é a razão da minha vida." Assim Antunes Filho, 74, avalia o sentimento com que segue conduzindo o dia-a-dia de atividades do CPT (Centro de Pesquisa Teatral), no sétimo andar do Sesc Consolação, em São Paulo.
O Mais! pôde constatar, acompanhando um pouco da rotina de trabalho de Antunes, que essa felicidade vai além da retórica. Traduz-se no entusiasmo que se sente em cada um de seus gestos, sobretudo quando trabalha diretamente com seu elenco, a mais nova safra de um dos mais importantes núcleos de pesquisa e criação teatrais do país. O CPT foi criado em 1982 e abrigou montagens célebres do diretor, como "Macunaíma" e "Nelson 2 Rodrigues". Por ali já passaram centenas de atores.
Na última terça-feira, dia em que o Mais! presenciou um ensaio do grupo, ficou patente essa alquimia, impossível para muitos, realidade para Antunes, entre a rotina de sempre e o desafio e o prazer de aproveitar cada instante.
Inquieto, ele se senta, levanta, dá alguns passos, volta a sentar, escuta, fala. Sua "partitura" corporal inclui, quando sentado, o deslocamento constante dos braços, embora o esquerdo muitas vezes repouse a mão sobre o queixo. Às vezes, enquanto ouve seus jovens atores -a primeira hora dos trabalhos costuma ser dedicada a diálogos, por exemplo sobre um filme a que tenham assistido-, parece faltar só um cachimbo, objeto aliás que ele adora, para que estivesse completa a figura de um atento analista (de preferência, no seu caso, junguiano).
Mas a melhor imagem para captar Antunes em ação talvez seja mesmo a de um professor, por mais desgastada que esteja. Há, inclusive, um quadro negro fixado logo à entrada da sala. Numa das vezes em que recorre a ele, a semelhança com um docente fica ainda mais forte, quando se queixa: "Mas este apagador está uma porcaria, quanto mais apago, mais suja a lousa".
A ambição "pedagógica" desse professor não é pequena. Como nos ritos de passagem, é preciso, exige ele, nascer de novo, começar do zero, voltar às origens. E, para ele, coisas como saber andar e falar não serão jamais "prosaicas", bem o contrário, trata-se da base da conquista do poético. O que no cotidiano pareceria mais óbvio e adquirido é, para um ator seu, um problema em aberto, da mais alta relevância artística, e tema de um incessante aprendizado.
Um dos pilares de seu "método" de preparação de atores [leia entrevista com Sebastião Milaré, que irá lançar livro sobre o tema, à pág. 7] é a distinção entre projeção e ressonância da voz. Antunes, de fato, insiste em que seu ator não fale, literalmente, "da boca para fora", isto é, não caia no esforço sôfrego de fazer, para usar um velho clichê teatral, "a velhinha surda da última fila do teatro escutar". O caminho da voz não deve ser uma linha reta, mas uma curva que passa "por trás", pela nuca onde se aloja o que, no vocabulário do diretor, é o "vaga-lume", antes de ir para o ambiente externo. Dessa maneira, diz no ensaio, será muito mais fácil para o ator preservar a voz, por mais "bifes" (falas longas) que ele encare numa peça, e, de quebra, se evitam calos nas cordas vocais. Num intervalo do trabalho, um ator nos confessa: "Não é fácil fazer a ressonância, muitas vezes, quando você acha que a está mantendo, já a perdeu". Em verdade, nada do que Antunes quer de seus atores é fácil. E o diretor não se deixa seduzir pela máscara de um "professor Pardal", cheio de fórmulas abstratas a impor. Sabe que as fontes inspiradoras da criação, como quer que as chamemos, pairam num nível muito virtual da psique, sendo de uma leveza quase imperceptível, complicadíssima de atingir para atores que, antes que profissionais, são seres humanos que carregam condicionamentos e embotamentos da vida fora dos palcos. É dessa penosa transição do rotineiro ao teatral, que é também a ida do profano ao sagrado, que ele trata, ao comentar: "Eu começo falso, com o estereótipo, mas na interação com o outro vai surgindo a complexidade da personagem", diz, enquanto se achega a um, depois a outro dos atores para demonstrar como uma declaração de amor pode ser feita, em teatro, de modo estereotipado e canastrão ou, ao contrário, de modo complexo. Uma das muitas inscrições espalhadas pela sede do CPT diz: "A arte não se ensina, se aprende". E Antunes tenta fazer com que aprendam. Para tanto, não se contenta em falar ao "elenco" em geral. Gosta de instigar cada um para que acrescente uma opinião nova ao que os outros já disseram. Em momentos mais empolgados, pode se aproximar e esticar os dois braços sobre os ombros da "vítima", olhando-a nos olhos e conferindo a "lição de casa": "O yin é inspiração ou expiração?" ou, noutro momento: "Por que você quer sofrer? Isso aqui [fazer um determinado personagem] é um jogo ou um sofrimento no palco? É preciso ter sempre esta palavra na cabeça: jogo". Seus pupilos, a bem dizer, por vezes parecem "discípulos", no sentido religioso do termo. Um deles chegou a dizer que, se ouvisse Antunes falar muito mal de um determinado espetáculo, provavelmente desistiria de assisti-lo. Antes do chamado do diretor (um simples "vamos lá, pessoal") para que entrem na sala de ensaios, por volta das 13h15, eles, esperando num hall ao lado, até lembrariam, pela descontração e bom humor, uma turma convencional de estudantes de artes cênicas.

Disciplina latente
Mas, iniciados os trabalhos, a disciplina antes latente se explicita, embora haja espaço para as brincadeiras. Sobretudo por parte do diretor, que "democraticamente" distribui apelidos a quase todos os que ele incita a dizer alguma coisa: "Vai, psiquiatra, fala o que você acha sobre isso"; "ô, Carandiru, agora é sua vez".
Durante a discussão inicial, eles ainda estão com a roupa do corpo, embora já descalços, só de meias. Mais tarde, vestiriam os figurinos predominantemente negros que deverão usar na montagem de "Antígona" [tragédia grega de Sófocles (século 5º a.C.)], prevista para estrear no primeiro semestre do ano que vem e que terá Juliana Galdino -ex-Medéia (2001)- no papel da heroína sofocliana. Sobre sua concepção de "Antígona", aliás, Antunes não conta muitos detalhes e nem mesmo permite presenciar parte dos ensaios dedicada especificamente à peça.
Mas adianta algo de essencial: será uma montagem "mais autoral", diz, e um retorno a um modelo de espetáculo talvez mais "vistoso", depois da absoluta rarefação de suas últimas montagens. Ele pretende inclusive retomar elementos de antigos clássicos, como seu "Macunaíma". "Eu ajudei os atores esses anos todos, agora é a vez de eles me ajudarem. Eu pensei: "Estão pegando muito no meu pé [refere-se aos críticos], eu quero voltar agora a dirigir". "O Canto de Gregório" [peça de Paulo Santoro, um dos integrantes do seu núcleo de dramaturgia, e em cartaz nas próprias dependências do CPT, juntamente com a sexta edição do "Prêt-à-Porter"] é minha última peça no sentido do ator, de ficar só no ator, e esquecer minha parte, de "espetáculo". Em "Antígona" vou começar a dirigir de novo. Eu quero voltar a dirigir como antigamente".
Os atores, na primeira parte dos trabalhos, sentam-se em frente ao diretor, que traja os costumeiros jeans e tênis, mais uma blusa laranja. Alguns anotam o que ele diz, outros só escutam. Embora pergunte se alguém discorda de algum ponto do que está falando, a chance de haver vozes dissonantes, ao menos quando discorre sobre sua doutrina da "correta" interpretação teatral, parece quase nula.
Foi curioso o resultado da experiência de fazer, em momentos distintos, a mesma pergunta para Antunes e para parte do elenco: "O CPT é para vocês uma espécie de monastério?". Os atores foram quase unânimes em dizer que sim. Minutos depois, após entrar na sala, Antunes, para gargalhada geral, responde que "dizer isso é reacionário, é coisa de quem está fora daqui e quer nos rotular".
Se é para receber a alcunha de "mestre", diz ele, que seja pelo que realmente se propõe a ser: um homem de teatro, mais especialmente, um "diretor de ator" (por contraste com o que ele chama de "diretor-designer", amigo mais dos efeitos especiais que do trabalho consciente do intérprete). "Sem falsa modéstia, de ator eu sei. Se eu pegar qualquer ator, em 15 segundos eu sei de todos os defeitos e qualidades que ele tem, até de costas dá para saber. É porque é hábito, eu fiquei muito tempo nisso, não é genialidade, é prática." Já a imagem de "mito" é algo que não lhe agrada, embora, em suas peças, bem como em seu método de atuação, seja tão marcante a busca dos símbolos mitológicos, moldes arquetípicos do que Jung chama de inconsciente coletivo. "Ser encarado como um mito", diz ele, "é o lado mercadoria de uma sociedade de consumo, que precisa inventar mitos, então me transformam em um. Por aí eu sou mercadoria, quem vem trabalhar comigo percebe que isso é uma bobagem".


"O "Prêt-à-Porter" tem que ser sempre um falso naturalismo, para ser um realismo psíquico; parece uma contradição, mas, para ter um vórtice espiritual muito grande, preciso fingir o realismo"


Num momento de bronca, ele repreende, em público, uma das atrizes por algum comportamento no dia anterior. Começa um rápido bate-boca, que mais tarde cede lugar aos sorrisos recíprocos. "É preciso enxotar o diabo quando ele quer entrar", diz, ao metaforizar seu hábito de não deixar nenhuma roupa suja sem lavar. Melhor falar tudo, mesmo que seja incômodo. Isso porque o recalcado, a "sombra", sempre volta e poderia prejudicar a coesão e o trabalho do grupo. Nem só quando instrui o elenco Antunes deixa ver aspectos de sua personalidade artística. Também o fez nas duas sessões de entrevista que nos concedeu. As conversas giraram em torno, principalmente, do livro "Prêt-à-Porter 1,2,3,4,5...".

"Nova teatralidade"
O "Prêt-à-Porter" apresenta, desde a estréia, em 1997, uma série de "movimentos" -em geral três cenas a cada edição-, com duração de 15 a 20 minutos, em que uma dupla de atores contracena sob condições de grande simplicidade de cenografia, figurinos, luz e som. A idéia era fazer do "PP", como o projeto é chamado internamente, a base de uma "nova teatralidade". Pela queima dos estereótipos cênicos, o intérprete pretende alcançar soberania sobre o próprio corpo, voz e imaginação -inclusive imaginação dramatúrgica, pois os atores se encarregam também da elaboração dos textos que vão encenar. Antunes chega até a abrir mão do posto de diretor dessas cenas, preferindo o de coordenador. Ele diz que, pelo que vê nos testes anuais de acesso ao CPT, o nível dos aspirantes a ator no Brasil tem melhorado bastante. Menos gritaria, menos impostação de voz, menos "mãozinha de garçom". Esse avanço geral, diz sem falta modéstia, pode em parte ser creditado aos esforços de seu grupo. E comenta que "o "Prêt-à-Porter" tem que ser sempre um falso naturalismo, para ser um realismo psíquico. Parece uma contradição. Para ter um vórtice espiritual muito grande, preciso fingir o realismo. Se eu fizer o realismo, eu fico empenhado no real e perco aquilo que nós poderíamos chamar de "atos simbólicos'". Para explicar esse princípio dramatúrgico, que ele considera análogo ao da corrente simbolista de fins do século 19, o diretor troca a roupagem de "entrevistado" por aquela de que mais gosta, a de homem de ação. Pede que o repórter desligue o gravador e o acompanhe ao espaço de ensaios do grupo, onde há, no chão, uma inscrição de giz: uma linha horizontal cortada por três linhas verticais. A primeira representa o transcorrer do que Antunes chama de "tempo profano". É nesse nível que estariam a causalidade, a ação externa, o conflito objetivo, enfim os componentes do conceito tradicional de drama. Mas as linhas verticais, marcando os eventos que vão se sucedendo, abrem também intervalos entre os fatos externos, brechas que o diretor chama de "vida vivida". São espaços que deitariam raiz no universo subjetivo das personagens, por mais simples, precárias que elas sejam. A galeria do "Prêt-à-Porter" inclui, ao longo desses anos, figuras como prostitutas, funcionários de cartório e uma anciã que já não fala, não anda e está confinada em um asilo.

A riqueza de cada ser humano
"Nessa trama em vertical, você chega ao mistério, à riqueza íntima de cada ser humano", diz Antunes, no que concretiza um princípio narrativo de que também Jung, um de seus mestres, lança mão na célebre autobiografia "Memórias, Sonhos, Reflexões": "Em última análise", diz ali Jung, "só me parecem dignos de ser narrados os acontecimentos da minha vida em que o mundo eterno irrompeu no mundo efêmero (...). Mesmo aquilo que em minha juventude, ou mais tarde, veio do exterior, ganhou importância, estava colocado sob o signo da vivência interior". Trata-se aqui, não de causalidade, mas de sincronicidade (uma "coincidência" significativa) entre o externo e o interno. O diretor revela, em outro momento da entrevista, como seu modo de trabalhar não se separa nunca de seu modo de ser. Talvez aqui esteja um dos segredos do seu entusiasmo com a labuta de cada dia. Stanislávski queria um método de atuação que traduzisse aos aprendizes menos dotados aquilo que, nos atores geniais, vem pelo talento inato. Antunes dá um passo a mais: seu método é também uma forma de traduzir vivências íntimas dele, pessoais. Ou melhor, transpessoais. "Eu já cheguei lá, faltam eles [os atores] chegarem lá." O "lá" em questão seriam os "estados alterados de consciência", estudados por um dos autores que mais lhe interessam atualmente, Stanislav Grof , um dos fundadores da psicologia transpessoal e autor de livros como "Psicologia do Futuro" e "A Mente Holotrópica" (ed. Rocco). O diretor enfatiza que essa, mais que uma utopia intelectual distante, é para ele uma vivência razoavelmente familiar. "Eu sou capaz de estar aqui conversando com você e, de repente, "tchau", por meio da respiração eu vou embora, não é que eu pire, eu fico mais íntegro, eu vejo todos os tempos e espaços, fora do tempo e do espaço. Na época de "Macunaíma", havia muita repressão, e todo mundo ficava de índio em cena, todo mundo pelado pelo teatro todo, de repente, numa apresentação no Teatro de São Pedro, uma porção de coisas começou a "cair" dentro de mim, sem querer. E eu precisei ir para a Itália com meu filho, mas durante a viagem eu continuei nesse estado alterado de consciência, eu via as coisas de uma outra maneira, de vez em quando me dá esse estado alterado." A conversa então toma rumos que inspiram uma pergunta que a madrinha do filho de Antunes, a escritora Clarice Lispector, faz a Hélio Pellegrino, numa das entrevistas por ela conduzidas e depois reunidas em "De Corpo Inteiro" (ed. Siciliano): "Antunes, viver é bom?". Depois de uma pausa de alguns segundos, ele responde: "É um privilégio, é isso, um privilégio. Quatro coisas são fundamentais para mim, a vida, a saúde, a alegria, e a beleza, não a externa, a interna, espiritual. São meus quatro mandamentos, a isso agradeço sempre".

O que vem depois do banquete
E a morte, assusta? "Me assustava, não me assusta mais, não. Mas, de qualquer maneira, a morte tem um sentido muito chato, é que você vai se despedir de tantas coisas, a gente fica amarrado a certas coisas, pessoas, então a morte é ruim no sentido da saudade, que pena, né, não estar mais com aquela pessoa, que pena não conhecer mais aquilo, então é uma despedida. É como quando você está no cais e as pessoas, com lencinho. Nesse sentido tem uma certa melancolia, mas não esqueça de que você está num transatlântico. Como é que os epicuristas diziam? "Pô, está se queixando porque está morrendo, mas você passou por um puta banquete, e se queixa?". É muito engraçado isso, né? [risos] Não sei que apóstolo foi se queixar para Cristo: "Pô, isso aqui está me doendo, será que você não pode me ajudar?". E Cristo: "Como? A minha graça, você quer mais ajuda, já tem minha graça", acabou."
Antunes diz acreditar que o CPT sobreviverá a ele, quando for a vez de se despedir. "Eu acho que tem aqui um pessoal que pode agüentar a barra. Porque a história do CPT até o ano 2000 é uma, depois é outra, eu [desde então] aprofundei o método, precisei o método, coisas que pareciam intocáveis, "indizíveis", "inefáveis", hoje em dia dá para falar. "Isto é isto, a soma disto com isto dá isto" é palpável, é tangível, antes era intuição. Hoje eu uso a intuição para outras coisas, não para isso."
Ele descarta, por ora, qualquer possibilidade de fazer uma autobiografia ou um livro de memórias. Um livro desses só serviria, exagera, para alguém, numa noite de inverno, usar as folhas para reforçar o fogo da lareira de casa. Antunes quer o mito em seu teatro, e não o fetichismo em torno de si mesmo. Quer explorar o imaginário, e não ser presa da fantasia ou da reputação fantasiosa. "Você acha que eu vou fazer uma vida para ter um nome no teatro ou para não sei o quê? Ah, tem dó! A vida tem que ser vivida plena, viva! E a vida é trânsito, é caminhar, caminhar, não tem aonde chegar, vamos em frente."


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