São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2004

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+ cinema

O silêncio ausente da revolução

Roney Cytrynowicz
especial para a Folha

A trajetória de Olga Benário percorre o epicentro da história do século 20. Filha de uma família judaica alemã, engajou-se jovem na militância comunista que fervilhava na Alemanha na década de 1920 após o sucesso da Revolução Russa de 1917. Aos 16 anos, Olga já estava engajada no movimento revolucionário. Depois de participar de uma ação armada em Berlim, em 1928, viajou clandestinamente para a Rússia, onde se tornou agente da revolução mundial e foi designada para servir junto com Luiz Carlos Prestes, que preparava uma insurreição comunista no Brasil em 1935. Fracassada a tentativa, Olga é presa e deportada pelo governo Vargas para a Alemanha nazista, onde seria depois assassinada aos 33 anos como comunista e judia, em meio ao processo de genocídio na Segunda Guerra Mundial. A ação do filme "Olga" se concentra em duas décadas, 1920 a 1940, de intensidade ideológica e política que soa quase extemporânea às sensibilidades deste século 21.

Melodrama
O eixo central de "Olga" é a sua vida, a trajetória revolucionária, a história de amor com Prestes e a barbárie de que foi vítima nos campos de concentração e de extermínio nazistas. Mesmo que se possam apontar vários clichês melodramáticos, o filme de Jayme Monjardim é um ótimo thriller histórico-político, e a atuação da atriz Camila Morgado é notável. Ela encarna de forma convincente a dureza revolucionária e a ternura amorosa que imaginamos em Olga a partir do ótimo livro pesquisado e escrito por Fernando Morais, que tornou a história conhecida. Prestes também está bem caracterizado na atuação de Caco Ciocler.


"Olga" é eficiente como thriller histórico-político ao retratar a mulher de Prestes, presa e deportada para a Alemanha nazista por Vargas, mas peca por falta de sobriedade


Um texto de Anita Leocádia Prestes, filha de Olga e de Prestes, publicado na revista "Nossa História" (Biblioteca Nacional, julho de 2004), mostra que a personagem do filme está de acordo com o perfil traçado pela filha historiadora. Monjardim evita os equívocos cada vez mais recorrente em filmes, nos quais a história é tratada como cenário e esmerada caracterização de época. Em "Olga", os personagens falam diálogos verossímeis e a época é bem trabalhada, não é reduzida a mero cenário contextual. Assim, listar eventuais impropriedades históricas seria um exercício de mau humor, diante de temas que possuem uma larga e consistente historiografia brasileira e internacional. Também é desnecessário discutir o que é "recriação histórica" e o que é ficcionalizado, o que é ancorado em pesquisa e o que não é. A caracterização histórica é consistente. No entanto algumas referências básicas acabaram sendo ligeiras, como a importância da Aliança Nacional Libertadora e o caráter de frente antifascista das decisões de Moscou, inclusive no apoio ao episódio de 1935. Uma informação relevante nos letreiros finais poderia ser a do apoio de Prestes a Vargas, após o fim do Estado Novo (presente no livro de Morais). Mas, no geral, mesmo funcionando muito bem no gênero thriller, o diretor poderia ter investido mais no contraponto com a história na seqüência das prisões e campos de concentração na Alemanha. O filme preenche toda possibilidade de silêncio e isso o torna às vezes excessivo. Monjardim ultrapassou uma barreira que poucos diretores se arrogaram: filmar o extermínio nas câmaras de gás. Costa Gavras, em seu excelente thriller "Amém" [2002], filmou a reação dos rostos e dos olhares pelo orifício externo de uma câmara de gás, em uma cena de força única; mas jamais ultrapassou o limite de recriar a morte pelo gás, como fez Spielberg.

Violência banalizada
A cinematografia sobre o Holocausto possui um denso debate estético (sempre é bom lembrar clássicos como os filmes de Claude Lanzman e de Alan Resnais ou mesmo a experiência de cinema político de Gavras). A cena no filme de Monjardim em que Olga, espancada de cabeça para baixo, recita poesia, suscita a indagação: será que tantas imagens de corpos brutalizados não acaba por banalizar a violência? Não caberia aqui outro recurso, mais documental?
Nessa seqüência das prisões e campos na Alemanha, as cartas de Prestes e Olga -esse impressionante conjunto de documentos históricos- poderiam ser mais valorizadas assim como a presença de uma personagem: Anita Leocádia Prestes, a filha de Olga e Prestes. Em "Diário de Motocicleta", Walter Salles mostra ao fim a imagem real do companheiro de Che, um belo contraponto à reconstituição ficcional da viagem de Che. Não deixa de ser comovente assistir à seqüência final de "Olga", com o nascimento de Anita em 1936, sabendo que a menina sobreviveu ao horror nazista -graças à mãe e à irmã de Prestes, que lideraram uma campanha para salvá-la- e se tornou historiadora da trajetória de Olga e de Prestes.
A história, a imagem, de Olga, de agora em diante, será a do filme. Sua vida existirá a partir do cinema. Olga, como Che Guevara, poderia tornar-se um ícone emblemático da revolução. O filme envolve, comove, cativa e nos prende solidariamente ao destino desta biografia tão intensa em seus 33 anos. Sua vida é um thriller histórico de primeira, mesmo para aqueles que apreciariam um pouco mais de sobriedade, de contrapontos históricos e, sobretudo, mais silêncios diante de uma biografia cuja brevidade e intensidade entre a revolução e o amor, entre o comunismo e o embate antifascista, entre Alemanha, Rússia e Brasil, é um emblema das possibilidades históricas do século 20.

Roney Cytrynowicz é historiador e doutor em história pela USP. É autor de "Guerra sem Guerra - A Mobilização e o Cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial" (Edusp/Geração Editorial) e "Memória da Barbárie - A História do Genocídio dos Judeus na Segunda Guerra Mundial" (Edusp).


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