São Paulo, domingo, 22 de outubro de 2000

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A busca de uma nova teoria

É verdade que o sr. curou um paciente com uma única sessão?
Houve uma certa distorção do caso. De fato, foi um tratamento de apenas uma sessão, mas não quero dizer que foi uma psicanálise. O interessante é que o paciente foi capaz de fazer o resto do trabalho sozinho. O homem tinha um dilema. Ao mesmo tempo em que era um executivo, possuía um talento considerável como guitarrista de jazz. Mas nunca tinha tido educação musical. Para ele era muito importante tirar um ano para fazer essa formação e se consolidar como músico. Mas tinha medo de sujeitar a família a uma situação difícil. A família o apoiava na decisão, mas ele tinha medo. Quando me procurou, não me falou logo do dilema. Começou a falar das suas preocupações gerais, sobre o seu trabalho, sobre seu casamento e suas filhas. Só quando lhe perguntei o que queria com a psicanálise é que o assunto emergiu.
Aí eu lhe disse que o tema trazia várias questões à baila. O problema de ele precisar de uma autoridade para tomar uma decisão. O conflito entre criatividade artística e o mundo dos negócios. O equilíbrio entre o interesse próprio e a responsabilidade para com as pessoas amadas. Disse também que poderíamos discutir todas essas questões, mas que isso não eliminaria o fato de que, no final, ele teria que tomar uma decisão e que ela implicaria arcar com os aspectos desagradáveis dessa decisão, qualquer que fosse.
Sugeri que continuássemos a conversa e marcamos um novo encontro. No ínterim ele me ligou, disse que por então já tinha o suficiente, cancelou a consulta e afirmou que manteria contato. Depois me escreveu, dizendo que havia decidido estudar guitarra e que estava bem.
Dez anos depois, um amigo meu, que era presidente de uma grande companhia, contratou aquele homem. Meu amigo o havia conhecido dez anos antes e ficara muito impressionado com a transformação. O homem era obsessivo, sempre em dúvida quanto a si próprio, hesitante, com problemas no casamento. Agora estava equilibrado, calmo, falava da mulher com prazer e estava funcionando muito bem no trabalho. O meu amigo perguntou a ele como havia melhorado tanto e ele disse que tinha tido ajuda de um analista que o auxiliara a perceber muita coisa sobre si próprio.
Quer dizer, não foi apenas uma sessão de psicanálise, mas todo o grande trabalho que ele realizou por si mesmo a partir daquela sessão.

O sr. acha que a psicanálise tem que mudar as pessoas?
As pessoas que procuram a psicanálise querem se sentir melhor, menos angustiadas e mais satisfeitas. Essa tem que ser a meta e o critério da psicanálise, do contrário não atenderá às necessidades dos pacientes e morrerá. Os psicanalistas têm se tornado muito impopulares porque os pacientes sentem que os analistas viraram um grupo religioso. Só vai fazer análise quem quer ser analista. Torna-se um esquema piramidal. Não que não ocorram mais insights importantes nos consultórios. Mas precisamos de critério para avaliar o quão importantes eles são, e esse critério só pode ser o das mudanças reais no desconforto do paciente.

Para alcançar isso, o sr. acha que o psicanalista precisa ser desidealizado?
Sim. O analista tende a ser uma autoridade inquestionável. Mas essa não é a relação de trabalho mais efetiva. O melhor caminho para permitir ao paciente se investigar é um trabalho cooperativo, que permita aos dois trabalharem juntos, formando um par. Criar e manter essa relação deve ser a principal função do psicanalista e não saber o que se passa na cabeça do paciente. Só assim poderá ajudar o paciente a perceber o que se passa com ele mesmo.

É necessário também derrubar o mito da neutralidade do analista?
Sim. O psicanalista oferece ao paciente um ponto de vista diferente daquele que o próprio paciente tem. Só isso. A neutralidade significa que ele não deve tomar partido nos conflitos, e acho essencial que ele tome partido nos conflitos. Se sou um paciente excessivamente crítico quanto a mim mesmo, eu preciso que o meu analista se coloque contra isso. A neutralidade é proposta como uma segurança para o paciente, de que não haverá imposição da autoridade do analista. Mas a melhor solução para esse problema é deixar claro que o analista não é uma autoridade externa e sim alguém com um ponto de vista diferente.



A psicanálise precisa ter uma teoria que não esteja presa aos padrões de uma cultura ou de uma época, uma teoria do sofrimento humano e uma teoria da libertação do sofrimento humano


Se o psicanalista deixa de ser um espelho neutro, como o paciente vai projetar as emoções nele?
Se fosse fácil fazer as pessoas pararem de projetar, o nosso negócio seria muito simples. Na verdade, o paciente sempre projeta no analista. Mas ele vai ter mais clareza sobre suas próprias projeções se ficar nítido como o analista experimenta a relação, mais do que se o analista fingir ser um espelho neutro. A relação analítica é como qualquer outra relação. A diferença é que pedimos ao paciente para ser muito franco. Para que isso ocorra, o analista também precisa ser muito franco. Se ele se esconde sob o mito da neutralidade, o paciente também vai se proteger.

Se a subjetividade do analista é importante, isso significa que cada análise é única?
Sim. Por isso, nós precisamos ter métodos e procedimentos que dêem conta disso. Nós precisamos ter princípios gerais que valham para todas as análises, mas o método tem que levar em conta que a subjetividade do analista é muito importante.

Quais são as grandes mudanças da subjetividade hoje?
Se subjetividade é a maneira idiossincrática e pessoal pela qual o indivíduo percebe a realidade, então os princípios que descrevem como essa subjetividade é construída não mudam com as circunstâncias. Mas os conteúdos mudam. As crianças que usam computadores são diferentes das da minha geração. Viver em um mundo onde a Internet domina a comunicação nos aproxima de forma um organismo multicelular, o que muda a subjetividade.

Há uma regressão do individualismo?
As fronteiras entre o que se percebe como "self" e os outros está mudando. Na Índia, por exemplo, fala-se de um "self" familiar. Os indianos não pensam em si mesmos como existindo à parte da família. Isso em função dos conteúdos da subjetividade lá. No Ocidente nos acostumamos a pensar sobre nós mesmos claramente como indivíduos que têm uma nítida fronteira em relação aos outros. À medida que o mundo se junta e a diferença entre as culturas se oblitera, nossas percepções de nós mesmos e da nossa relação com os outros e com o mundo mudam. Vê-se isso entre os jovens. Eles não paqueram mais sozinhos ou em casais, mas sim em grupos. Isso é porque o conteúdo da subjetividade mudou.

No simpósio, o sr. apresentou um trabalho em que trata dos sonhos como estratégias de sobrevivência. Poderia explicar a idéia?
Há um equívoco no tratamento que a psicanálise dá aos sonhos ao não perceber o valor adaptativo deles e sua relação com a sobrevivência. Estamos só preocupados com a riqueza dos sonhos enquanto expressão psíquica. Se procurarmos uma visão mais ampla, veremos que a auto-expressão psíquica não é diferente da sobrevivência. É uma maneira de expressar a experiência subjetiva de como nós aprendemos a sobreviver. Procurar o prazer e evitar a dor, os vários meios pelos quais o fazemos, a beleza e a estética dos caminhos pelos quais o prazer se torna mais e mais complexo, tudo isso simplesmente descreve como aprendemos a sobreviver em um ambiente crescentemente complexo e sofisticado.

O sr. é otimista quanto à psicanálise hoje e no futuro poder trazer mais prazer e menos sofrimento?
Sim, sou. A psicanálise tem sido e pode continuar a ser um tremendo instrumento de ajuda para os seres humanos fabricarem melhores meios de sobrevivência. Sobrevivência psicológica, no sentido mais rico da expressão. Mas, para fazer isso, a psicanálise precisa ter uma teoria. Uma teoria do sofrimento humano e uma teoria da libertação do sofrimento humano. Essa teoria não pode estar presa aos padrões de uma cultura ou de uma época. Tem que ser uma teoria flexível, dinâmica o suficiente para se desenvolver ao longo do tempo. Nós podemos fazer isso.

O sr. acha, então, que a psicanálise precisa de uma nova teoria?
Precisa de uma teoria que continue a se desenvolver. Não adianta ter uma teoria velha e estática.



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